Relatórios como este valem o que valem. Helsínquia é porta de entrada do país considerado, nos anos de 2016 a 2023, o “Mais Feliz do Mundo”.
A meteorologia da cidade, para começar e, logo, a sobriedade dos helsinquienses geram, em qualquer visitante do sul da Europa ou dos trópicos, forte suspeição. Chegados do cimo da Finlândia para, por fim, dedicarmos alguns dias à capital, começamos por nos indignar com o tempo.
Em Inari, Oulu, Saariselka e Kuusamo, tínhamos apanhado entre -12 e -34º , bem suportados, até agradáveis, sob as diversas camadas de roupa e o afago de um sol árctico ou sub-árctico que insistia em nos estimular.
O Clima sempre Caprichoso de Helsínquia
Chegados a Helsínquia, estão 0º, ou um pouco menos. Sobras de nevões cobrem porções das ruas mais sombrias, as margens de lagos e parte da panóplia de monumentos criativos e sofisticados que adornam a cidade. Enfrentamos uma atmosfera ventosa e cinzenta, salpicada de neve que já cai no solo aguada.
A gente local, pouco dada a espanpanâncias, adepta de uma humildade elegante, abriga-se em vestes escuras.
Como é apanágio de urbes que enfrentam o mar, a meteorologia muta depressa. Um dia e meio depois, o sol reage à afronta. Daí em diante, a partir das dez e meia, onze da manhã, irrompe. Revela as verdadeiras cores da Stadi, ainda sem gerar risos ou sorrisos gratuitos nos transeuntes.
Cada povo tem o seu jeito de viver. Nesta que é a capital mais setentrional da União Europeia, como noutras de semelhante latitude, o clima inclemente tornou mais raro os momentos em que a felicidade, a euforia e a interacção vencem a sobriedade.
Uma Capital Luterana, Ortodoxa e de outras Fés
E, no entanto, com o sol, os tons de pastel reluzem. O branco, a cúpula verde e os retoques de dourado da Catedral luterana – o edifício icónico da cidade – brilham acima da linha de telhados.
Desafiam-na a catedral rival, a ortodoxa de Uspenski, feita de tijolos, comparável à moscovita de São Basílio, se lhe retirarmos os adornos quase Disney, mirabolantes.
Foi o imperador russo Alexandre I que, decretou, em 1814, um imposto sobre a importação de sal, destinado a subsidiar dois templos, um ortodoxo e um luterano.
Entre ambas, passamos pelo Palácio Presidencial. Um soldado solitário, elegante, resiste ao sacrifício, em frente à guarida, aconchegado sob um gorro de pelo árctico e numa gabardina corta-vento.
Detemo-nos para o fotografar e à sua sofrida dignidade.
Espartano, o militar quase não pestaneja.
Prosseguimos na direcção de outra catedral luterana famosa, a Temppeliaukio, de 1969, e bem mais recente que as congéneres.
Temppeliaukio exibe-nos uma arquitectura revolucionária.
Em vez de sobranceira, é subterrânea, com paredes de rocha e entulho, o altar instalado numa fenda glaciar da idade do gelo.
A sua acústica provou-se de tal maneira especial que recebe frequentes concertos e recitais.
Vista de cima, parece-nos uma lapa incrustada.
A Estação de Caminhos de Ferro Grandiosa e Emblemática
A terceira estrutura que detectamos elevada face aos telhados, é a torre da Estação Ferroviária Central.
Numa altura em que a Finlândia se preservava um Grande Ducado subordinado ao Império Russo, o Imperador Alexandre II reclamou que a cidade necessitava com urgência da sua Helsingin Päärautatieasema.
O czar lamentava-se que o território carecia de ligações entre o interior pejado de rios e lagos e o litoral do Mar Báltico.
O próprio lugar em que se encontra a estação era, à partida, leito marinho.
Carl Albert Edelfelt, um arquitecto sueco, foi incumbido de vários projectos distintos para a estação. As autoridades reprovaram um edifício em madeira, menos dispendioso, mas altamente combustível.
Validaram um dos seus projectos onerosos, com três andares e uma fachada de estilo neogótico e neo-renascentista, diz-se que inspirado na estação russa de Petergof.
Sobretudo sobre o lusco-fusco, sobressai da sua frente o duo de granito dos Portadores das Lanternas.
São guardiães de um resplendor misterioso e secular que seduz os transeuntes, diz-se que com corte de cabelo sugerido pelos membros de um movimento religioso luterano finlandês.
O “Despertar”, teve origem em duas províncias do centro e leste. Mais tarde, integrou o Luteranismo finlandês considerado corrente.
No século e pouco volvido, os guardiães validaram a chegada de centenas de milhares de junantuomat, traduzível como “trazidos pelo comboio”, os nascidos no campo imenso dos País dos Mil Lagos, que migraram para a capital.
Lapões, Samis, Karelianos, toda essa gente que fez aumentar a população de Helsínquia de 190.000, no início do século XX, para os actuais quase 680.000 habitantes.
Capital e única Metrópole da Finlândia
Este número e a confluência de etnias e de línguas, reforçada pelos milhares de expatriados atraídos pela qualidade de vida insuperável, fizeram de Helsínquia à única metrópole suómi.
O aumento continuo de helsinquienses nunca chegou a representar um aperto. Em média, habitam pouco mais de três mil pessoas por m2 da cidade. Em Lisboa, são quase 5.500 por m2.
Cidade do Báltico repleta de Ilhas
Quanto mais a percorremos, mais constatamos como a abundância de parques, florestas e vida vegetal noutras formas, compensa o pior da meteorologia.
Mas há mais. Helsínquia é ainda arejada por uma linha costeira com 130km, com centenas de ilhas e ilhéus ao largo, a salpicarem o Báltico.
Ocultam domínios díspares e surpreendentes, algumas, servidas por ferries públicos e empresas de tours, as restantes, ao alcance dos proprietários de embarcações.
Por motivos distintos, visitamos duas das mais importantes, Suomenlinna e Seurasaari, situadas em extremos opostos da área urbana.
Viajamos até à ainda enregelada Seuraasari. Em época de Semana Santa e Páscoa, lá acompanhamos uma celebração pagã.
A Inevitável Influência Sueca e Russa
Em Suomenlinna, exploramos a fortaleza erguida pela Suécia, no período em que a Finlândia estava sob o seu jugo, com o objectivo de reter a provável expansão do Império Russo, expansão que, como já assinalámos, se veio a verificar.
O ferry para Suomenlinna parte da marginal de Kauppatori, o mercado estrela de Helsínquia, lugar de confluência da comida e bebida tradicional suómi, bem como de artesanato.
Em Outubro, o Kauppatori acolhe ainda um dos mercados específicos mais antigos deste norte da Europa, o Mercado de Arenque do Báltico, realizado desde 1743.
O trajecto do ferry permite-nos admirar a frente histórica e arquitectónica de Helsínquia: o seu Porto Sul.
Completam-no docas alinhadas em frente de alguns dos prédios mais antigos e resplandecentes da cidade, edifícios que, com o afastamento do navio, observamos a devolver o protagonismo à Catedral Luterana sobranceira.
Por altura do terminal de cruzeiros Olympia, vemo-la de tal forma destacada que percebemos a estátua de bronze azinhavre em homenagem ao Imperador Alexandre II, “O Libertador”, a sua cabeça, um pouso predilecto das gaivotas.
Tendo estado tantos anos sob o jugo russo e sueco, vizinha desses ex-impérios, Helsínquia sofreu óbvias influências arquitectónicas e urbanísticas de Estocolmo e, ainda mais, de São Petersburgo, a Janela Russa para a Europa.
Helsínquia carece da expansão e grandiosidade de São Petersburgo, de praças e palácios imensos como o conjunto da Praça do Palácio e o Hermitage. E de réplicas palacianas de Versailles, casos dos Palácios de Peterhof e de Catarina.
A partir da independência de 1917, as autoridades focaram-se em erguer edifícios homenageantes do nacionalismo suómi, alinhados com o progressismo político-social decorrente da implantação da república.
Arquitectura e Design Há Muito Inspiradores
Instigados pelo clima austero, a urbanizar, construir, equipar e decorar sem mácula, os países nórdicos formaram alguns dos melhores urbanistas, arquitectos e decoradores do Mundo.
Sobretudo durante a década de 1950, mas também daí em diante, Helsínquia beneficiou do talento de arquitectos e designers finlandeses que, ainda por cima, surgiram aos pares e aos trios:
Alvaar, Aino e Elissa Alto, Eero e Eliel Saarinen, Eero Arnio, Lars Sonck e afins, autores de obras como a igreja de Temppeliaukio, a biblioteca Oodi, o Salão da Finlândia, o Ateneu, o Palácio de Vidro e o Museu de Arte Amos Rex, o Museu de Arte Contemporânea Kiasma e, tantos outros.
Só a arquitectura da cidade dar-nos-ia que fazer para mais de um mês. E ainda há o design, a que já dedicámos um anterior artigo.
Com menos tempo do que desejávamos, sacrificamos momentos de lazer em esplanadas e bares.
Em vez, cirandamos, a pé, de autocarro e a bordo dos eléctricos verdes-amarelos emblemáticos.
Em busca das obras criativas que distinguem Helsínquia das restantes grandes urbes bálticas:
o monumento em forma de órgão musical ao compositor Jean Sibelius, no Sibelius Park.
Logo, a estátua inusitada dos três ferreiros, um dos pontos de encontro favoritos dos helsiquienses.
Mais pelo sistema de aquecimento instalado sob a rua Aleksanterikatu que previne a neve e o gelo, mesmo quando fazem -10ºC, que pela companhia dos trabalhadores encalorados e nus.
Conflitos Europeus que deixaram Marcas
A estátua, da autoria de Felix Nylund, preserva danos causados por um bombardeamento durante a Guerra da Continuação (1941-1944) quando, num contexto complexo e ameaçador, a Finlândia se viu forçada a aliar-se com a Alemanha Nazi, contra a União Soviética que bombardeou posições Nazis em vésperas do início da Operação Barbarrossa.
Com a reviravolta no conflito e a supremacia Soviética, a Finlândia viu-se forçada a ceder em definitivo à U.R.S.S. três partes do seu território, o seu “braço direito” de Petsamo, a região de Salla e a Karélia finlandesa. Mesmo assim mutilada, a jovem nação suómi sobreviveu ao pior conflito de sempre.
Helsínquia, essa, sofreu os danos de 350 bombas soviéticas, cerca de 50 edifícios destruídos, 90 vítimas mortais. Uma destruição comedida, se tivermos em conta a que devassou boa parte da Europa e do Mundo.
Para felicidade dos muitos forasteiros que, como nós, a descobrimos e voltamos a descobrir.