Não era a primeira vez que partíamos de Seal Beach, nos arredores de Los Angeles, para longos périplos rodoviários pela Califórnia e outros estados do Oeste norte-americano.
Dessa vez, no entanto, Tia Lily e Uncle Guy – assim nos habituámos a tratar estes familiares do outro lado do Mundo – pareciam-nos mais inquietos que o normal e repetiam vezes sem conta um mesmo pedido: “Não se esqueçam de ligar, O.K.? Pelo menos quando chegarem aos hotéis. Vejam lá se não se esquecem!”
Resistimos à curiosidade por algum tempo. É precisamente quando estamos prestes a perguntar o porquê de tanta preocupação que Uncle Guy aparece com seis ou sete paletes de garrafas de água para colocarmos no porta-bagagens e resolvemos o mistério: o Vale da Morte!
Estavam com receio do Vale da Morte e que não lhe resistíssemos.
Fazemos os possíveis para sossegamos os anfitriões. Assim que a missão nos parece cumprida, saímos para o asfalto do Orange County, apontados para as profundezas da Califórnia.
Rumo às Profundezas Dantescas da Califórnia
Percorremos centenas de quilómetros da Highway 15, em grande parte, ao longo do deserto de Mojave. Passamos a cidade perdida no nada de Barstow. Pouco depois, cortamos para norte.
À medida que completamos os quilómetros finais do percurso na Highway 190, a temperatura sobe a olhos vistos. O termómetro digital verde-fósforo do carro só a informa em Fahrenheit e é com saltos surpreendentes nesta escala que constatamos como a fornalha se intensifica no exterior: 103F … 107F … 109F…
Quando chegamos a Dante’s View, o calor já vai nos 47.2º (117F) e ainda estamos bem acima da depressão coberta de sal afundada por sismos pré-históricos consecutivos, no sopé da cordilheira de Panamint.
BadWater Basin faz parte daquela vista longínqua. Marca o ponto mais profundo da América do Norte.
Brota, ali, do subsolo alguma água para a superfície mas a salinização é tal que, por muito que ao longo da história do Oeste, as caravanas de mulas sedentas a quisessem beber, aquela nascente só serviu de salvação às algas, insectos e caracóis intrépidos que a continuam a colonizar.
Demasiado Quente para se Suportar
O dia avança e é cozinhado pela radiação solar. Para evitarmos que nos aconteça o mesmo, regressamos ao interior de estufa do carro e, enquanto invertemos para o coração habitacional do vale, ligamos o ar condicionado na sua máxima força.
Pelo caminho, ainda desviamos para espreitar o Natural Bridge Canyon e o percurso íngreme mas insignificante até à primeira sombra concedida pelo desfiladeiro prova-se uma espécie de tortura infligida pelo ar ardente e seco nos pulmões.
Conduzimos ao longo das encostas coloridas do Artist Drive quando reparamos que o sol já está a pique. Ocorre-nos que é melhor recuperarmos da exaustão num ambiente refrigerado de Furnace Creek, antes de nos metermos em novas incursões.
Um bar prenda-nos e a outros visitantes com sprinklers a todo o comprimento da sua arcada. No interior, encontramos limonada gelada e a bebida complementa aquele tratamento misericordioso.
Os Resilientes Nativos-Moradores Timbisha
Por outros motivos de que só eles e os seus deuses estarão a par, os índios Timbisha habitam o Vale da Morte e o oásis de Furnace Creek há séculos e a tribo tem inclusive uma reserva na zona.
São, hoje, apenas 15 ou 16 elementos mas formam a maior parte da população local que diminuiu para 24 pessoas. Em tempos, a comunidade foi bastante mais significativa e forneceu os artesãos e trabalhadores que ajudaram a erguer os edifícios do resort original da companhia Fred Harvey bem como as infraestruturas do parque.
Muito antes disso, outras sociedades tinham explorado as riquezas geológicas do vale, caso da Pacific Coast Borax Company que, com recurso a 20 parelhas de mulas, extraía o mineral e transportava-o através do deserto de Mojave para vender a empresas químicas e produzir o seu então famoso sabão Boraxo.
Na altura, o local que acolhia as instalações chamava-se Greenland Ranch, um nome que nunca iludiu os trabalhadores, massacrados pelo sol dia após dia.
58º: Demasiado Quente para Ser Verdade
1913 revelou-se um ano climático extraordinário, com calor bastante mais intenso que o habitual. Em 10 de Julho, a estação meteorológica da povoação registou 56.7º.
Nesse mesmo mês, tinha sido verificada uma sequência de 5 dias com máxima de 54º ou superior e, coincidência ou não, a 8 de Janeiro, o Vale da Morte vivera a sua temperatura invernal mais baixa: -10º. O record positivo não tardou ter competição.
Desde 1919 que os militares italianos estacionados numa base situada 55 km a sul de Tripoli, levavam a cabo medições de temperatura extremas. Três anos depois, as autoridades comunicaram ter obtido 58º em Al-Aziziyah, a 13 de Setembro de 1922.
Este valor conquistou a aceitação generalizada da temperatura mais elevada do Mundo, registada sob condições standard. O recorde consta ainda em incontáveis obras geográficas e manuais escolares mas encontrou diversos opositores ao longo do tempo.
Amilcare Fantoli e a Medição Errónea de Al-Azizyah
Um deles, o fisicista italiano Amilcare Fantoli analisou as condições em que havia sido realizada a medição. Questionou-as em diversos artigos dedicados e esclareceu no volume 18 da Rivista di Meteorologia Aeronautica, de 1958: “em 1922, não podíamos deixar de crer no número exibido, também explicitamente confirmado, via rádio, pelos militares situados em El-Aziz, (outro dos grafismos de Al-Azizyah) que permanecia isolada há algum tempo por razões estratégicas e, pouco depois, pela observação das folhas de registos… quando era possível ver esses dados… “.
Depois de descrever de forma exaustiva os instrumentos e procedimentos usados na medição, Fantoli opinou que “a temperatura máxima extrema terá sido de apenas 56º”.
Cenário desgastado pelas chuvas raras mas abrasivas que se abatem uma vez por outra sobre o Vale da Morte.
No passado dia 17 de Setembro, a OMM – a agência meteorológica das Nações Unidas – comunicou o resultado de uma investigação levada a cabo em 2010 e 2011 por um painel de peritos líbios, italianos, espanhóis, egípcios, franceses, marroquinos, argentinos, norte-americanos e britânicos que concluiu existirem cinco problemas distintos com a medição de Al-Azizyah.
Falhas Diversas e as Improbabilidades Geográficas do Velho Record
O primeiro a considerar foi a instrumentação problemática: o termómetro habitual da estação tinha-se recentemente danificado e foi substituído por um outro convencional parecido com os usados nas estufas. Apontou-se, em seguida, um mais que provável observador inexperiente que a OMM concluiu ter feito a medição com base na extremidade oposta do cilindro no interior do termómetro.
Assinalou-se ainda o facto de “o ponto de medição estar colocado sobre um material de tipo asfalto não representativo do solo nativo do deserto e, por fim, “a pobre equivalência daquela temperatura extrema face às registadas em localidades próximas e má equivalência de temperaturas subsequentes registadas no mesmo local”.
Malgrado os ventos quentes Ghibli, que sopram do coração do Deserto do Saara sobre as montanhas Jabal Nafusah e são aquecidos à medida que descem das encostas viradas a norte, a distância de Al-Azizyah para o Mar Mediterrâneo não parecia permitir uma temperatura tão extrema.
Ao serem verificados os dados de lugares circundantes para essa data – Tripoli, Sidi Mesri, Homs, Zuara Marina, entre outros – todos ficavam demasiado abaixo do esperado, nalguns casos, tanto como 20º.
99 anos depois, um Vale da Morte mais quente que nunca
Em jeito de condenação final, os peritos concluíram que a medição de 1922 terá sido cerca de 7 graus centígrados mais elevada que o valor real. A agência comunicou recentemente a sua invalidação e a reabilitação do recorde de Greenland Ranch, de 1913.
A medida era há muito aguardada e comentada. Em Novembro de 2010, o Daily Telegraph, por exemplo, tinha já publicado um artigo irónico com o título “Broken Termometer led to a record breaker”.
Os poucos habitantes do Vale da Morte e os E.U.A., em geral, receberam a notícia com enorme agrado. O título do lugar mais quente tem o mesmo peso para os meteorologistas que o do Monte Evereste ostenta para os geógrafos.
A sua reconquista deverá trazer notoriedade acrescida e muitos mais forasteiros intrigados que, como nós, o visitam em plena época estival pelo privilégio de comprovar a sua agreste realidade climatérica. Mas, no passado, alguns visitantes não a compreenderam ou respeitaram como era devido. Saiu-lhes caro.
A Vista Marciana a Partir do Zabriskie Point
Falta-nos a paciência necessária para esperar que arrefeça. Furnace Creek e o Vale da Morte ainda escaldam quando deixamos o bar e voltamos ao volante.
Apontamos para o famoso Zabriskie Point, uma secção da cordilheira de Amargosa em tempos submersa pelo lago pré-histórico de Furnace Creek que recebeu o apelido de Christian Brevoort Zabriskie, vice-presidente e gerente da Pacific Coast Borax Company.
Do topo do miradouro, percebem-se os trilhos que atravessam a superfície extraterrestre de Badlands. As linhas sinuosas do percurso convidam à aventura mas um aviso do Death Valley National Park alerta sobre os riscos envolvidos e não se coíbe de descrever uma das tragédias passadas para desmobilizar os mais incautos.
Ingrid e Gerhard Jonas: Morte no Vale. A Dois.
Tinham decorrido apenas alguns dias das férias norte-americanas de Ingrid e Gerhard Jonas quando chegaram ao Vale da Morte. O guia que usavam descrevia a excentricidade do cenário entre o Golden Canyon e Zabriskie Point. Gerhard estava habituado a caminhadas bem mais longas.
Mal aconselhado pela aparente insignificância dos 4.8km do percurso e pela proximidade da povoação de Furnace Creek, desprezou que se estava em Junho e já era meio-dia, que a temperatura ia nos 37º e iria aumentar bastante. Equivocou-se também ao concluir que menos de um litro de água seria suficiente para se manter hidratado.
Combinaram que Ingrid conduziria até à outra extremidade do percurso e se encontrariam em Zabriskie Point, de onde poderia, inclusive, observá-lo a aproximar-se na paisagem colorida.
Passadas três horas, Ingrid não via sinal do marido. Avisou os rangers do parque e estes iniciaram uma busca sob uma temperatura de 45º. Um breve sobrevoo da avioneta de serviço revelou Gerhard, inconsciente, nas terras mais baixas de Gower Gulch. Os rangers alcançaram-no uma hora e meia depois do alerta.
Tinha sucumbido à insolação e ao esgotamento apenas 5 horas depois de ter deixado a esposa. O Vale da Morte fez jus ao nome e reclamou nova vítima. Desde o meio dos anos 90 foram pelo menos doze. A título de curiosidade, o uso displicente dos GPS’s com que vêm equipadas as viaturas alugadas contribuiu para alguns dos casos.
O Perfil Extremo e Excêntrico do Vale da Morte
Em termos de geologia e geografia, o Vale da Morte justifica tanto as temperaturas recordistas como alguma apreensão e receio. Nenhum outro exibe uma combinação tão radical de profundidade e morfologia, a principal razão para as temperaturas de Verão extremas.
O Vale da Morte forma uma bacia longa e apertada situada a 85 metros abaixo do nível do mar. Apesar de depressivo, é enclausurado por montanhas íngremes iminentes e outras mais distantes, com auges óbvios no monte Telescope (3367 m) – o mais destacado da serrania de Panamint – e no Monte Whitney (4.421m), este, a maior elevação dos Estados Unidos contíguos, a apenas 136 km de distância.
São quatro as cordilheiras que retêm as nuvens procedentes do oceano Pacífico. As mesmas que as forçam a subir e a descarregar sob a forma de chuva ou neve ainda nas suas vertentes ocidentais. As provenientes do Atlântico e do Golfo do México, em particular, distam demasiado para ali poderem chegar com frequência significativa.
De acordo, o ar sobre o Vale da Morte é seco e rarefeito e a sua escassa vegetação convidam o sol a aquecer a superfície do deserto. O calor que irradia das rochas e do solo sobe mas fica aprisionado entre as encostas que o cercam e é forçado a descer.
As bolsas de ar descendente são apenas ligeiramente menos quentes que o ar circundante. À medida que regressam ao solo, a baixa pressão atmosférica submete-as a uma forte compressão e aquecem ainda mais que na origem.
A Panóplia de Temperaturas Recordistas do Vale da Morte
De Junho a Outubro, a repetição deste processo resulta nas temperaturas atmosféricas mais altas à face da Terra, um fenómeno que se pode arrastar sem fim aparente. Em 2001, o Verão do Vale da Morte teve 154 dias consecutivos com máximas superiores a 37º.
Em 1996, foram quarenta dias acima dos 48º e cento e cinco com mais de 43º. Na manhã do passado dia 12 de Julho, o Death Valley bateu dois outros recordes não tão badalados mas relevantes. Imediatamente antes do nascer do sol, o termómetro de Furnace Creek tinha descido de uma máxima diurna de 53.3º para uns módicos 41.7º.
Registaram-se, assim, a temperatura mínima mais elevada à face da Terra e a sua temperatura média mais alta em 24 horas: 47.5º.
Na data em que o exploramos, ao invés, o fim da tarde concede um alívio bastante aceitável que aproveitamos para examinar outros recantos e cenários: a pequena estação rodoviária de Stovepipe Wells, as ruínas da Harmony Borax Works, o Mustard Canyon e as expansões de dunas de Mesquite e Eureka.
Entretanto, o grande astro cai para detrás da cordilheira de Panamint. A sombra instala-se, depois o lusco-fusco e logo a escuridão. Apesar da pseudo-frescura da noite, o Vale da Morte já era, de novo, o lugar mais quente à superfície do Planeta.