A longa viagem chuvosa e perigosa de São Petersburgo cobrava-nos, havia já muito, um cansaço cada vez mais difícil de disfarçar.
O cochilar no carro pouco o aligeirava. O raiar do dia e o momento em que pudemos subir a bordo do pequeno chegaram, assim, como um enorme alívio.
E foi com surpresa que após duas horas de navegação com partida em Kem, vimos definir-se, na projecção da proa, a silhueta imponente do mosteiro de Solovetsky, à imagem da ilustração das notas de 500 rublos em circulação.
O barco atraca a uma dezena de metros das suas muralhas. Recebem-nos os donos da casa em que nos íamos alojar. Mal entramos naquele lar de aluguer, percebemos que o íamos partilhar com hóspedes russos. Naquele momento, estavam ausentes.
Descansamos algumas horas. Por fim recuperados da directa rodoviária atroz da noite anterior, saímos para uma exploração inaugural.
Incursão Na Vida Pouco Ortodoxa de Bolshoy Solovetsky
Contornamos a marina humilde que serve a maior das Solovetsky e as águas escuras em que se reflectem as cúpulas do edifício imponente.
Cruzamo-nos com cabras à solta, gatos vadios, com freiras ciclistas e com moradores absortos nas suas tarefas.
E, num extremo da baía frontal à muralha, com um russo de olhar rasputiniano pouco concordante com a nossa passagem por aqueles domínios. Cultivava vegetais no jardim da vivenda de madeira que mantinha em restauro.
Um repicar místico dos sinos do mosteiro quebra o silêncio, até então, religioso. Minutos antes de terminar, vemos um batalhão de homens das obras aparecerem do portal que dá acesso ao domínio ortodoxo e refastelarem-se sobre a relva num breve repouso-convívio.
A sua presença tinha uma razão de ser superior mas que tardava em resolver o problema: Solovki, como é também conhecido o arquipélago que integra ainda a misteriosa Bolshoi Zayatsky foi o primeiro lugar da Rússia a ser reconhecido pela UNESCO como Património da Humanidade.
Mesmo assim, continuava a necessitar de renovações.
Quando seguíamos no barco, um dos passageiros do país dos czares queixava-se a outros visitantes: “aqueles andaimes estão nas cúpulas já nem sei há quanto. Os estrangeiros aborrecem-se porque lhes estragam as fotografias. Desilude-me muito que as coisas por cá, se façam sempre desta maneira!”.
A escuridão e o frio reinstalados convidam-nos a regressar aos aposentos. Quando entramos, cheira a comida. Ficamos a conhecer os russos com quem dividíamos a casa. E a saber que tinham feito jantar para todos.
O Acolhimento Caloroso de Andrey Ignatvev e Alexey Sidnev
Alexey Kravchenko, o anfitrião que nos trouxera de São Petersburgo depressa nos põe à vontade, mesmo se, eram apenas umas poucas as palavras inglesas que os seus compatriotas articulavam. “Estão desejosos para saber como se diz “lobster” em português, mas os mais pequenos, sabem?”, comunica-nos. E mostra-nos um papel que tinham desenhado. “Lagost…im? “
Não sei se vou conseguir dizer-lhes isto mas tenho que fazer um esforço. É o sonho de qualquer russo empanturrar-se com os peixes e mariscos frescos lá de Portugal!”
Sentamo-nos. Partilhamos uma longa entrada de vodka, rodelas de pepino em picles e de tomate fresco, ainda enriquecida por pedaços de saló, uma banha de porco esfriada que os russos se habituaram a consumir para aligeirarem os efeitos do muito álcool que ingerem.
Conversa puxa conversa, apuramos que Andrey Ignatvev – o ex-estudante de chefe de cozinha que havia confeccionado o jantar – e Alexey Sidnev formavam uma dupla de geólogos da vizinha cidade de Archangelsk.
Estavam ao serviço da região. Viajavam de Archangelsk com frequência para trabalharem em Solovetsky.
Considerada património mundial UNESCO há mais de 20 anos, a grande Bolshoi Solovetsky continuava a ver os seus esgotos desaguarem na baía em frente do mosteiro. Carecia de um verdadeiro saneamento básico.
Andrey e Alexey tinham à sua disposição uma velha carrinha soviética UAZ (Ulyanovsky Avtomobilny Zavod) verde militar, repleta de ferramentas gastas. Tinham como missão examinar o solo e recolher amostras para facilitar a decisão do tipo de canalizações (e profundidades ideais) a implementar.
Se tivermos em conta a verdadeira epopeia por detrás do assentamento do mosteiro naquelas paragens boreais da Rússia, a sua obra podia ser considerada menor.
A História Bélica do Mosteiro de Solovetsky
Em 1429, dois monges do mosteiro Kirillo-Belozersky fundaram um novo mosteiro na área da ilha grande de Solovetsky agora chamada de Savvatevo. Um terceiro monge, oriundo de Valaam e chamado Zosima, juntou-se-lhes.
Este trio, criou as bases para que o novo reduto religioso se tornasse abastado e poderoso.
Entre 1582 e 1594, foi dotado de uma fortaleza de pedra. O poder dessa estrutura adicional viabilizou que o mosteiro viesse a acumular terras vastas em redor do Mar Branco.
No século XVI, quando já acolhia mais de 350 monges e entre 600 a 700 servos, artesãos e camponeses, o mosteiro sucumbiu a um cerco de sete anos e a consequentes pilhagens das forças governamentais czaristas.
Nesse mesmo século e no seguinte, conseguiu repelir ataques da ordem Livónia (um ramo da Teutónica), da Suécia. Mais tarde, durante a guerra da Crimeia, resistiu até mesmo à incursão de navios britânicos.
O mosteiro de Solovetsky não resistiu, todavia, à revolução bolchevique e aos caprichos ateístas das autoridades soviéticas.
Em 1921, foi encerrado e substituído por uma quinta estatal.
O Campo de Trabalho Decretado por Lenine
Decorridos dois outros anos, em pleno mandato de Lenine, seria transformado num campo de trabalho para inimigos do povo. Um campo de trabalho em que, num início perdulário, os prisioneiros se limitavam a manter o jardim botânico e as bibliotecas.
Ausentes durante décadas, ao constatarem a iminência da queda da U.R.S.S., em 1980, os monges começaram a regressar. Por altura da nossa visita, eram já mais de dez.
Encontramo-los a toda a hora nas áreas interiores da fortaleza, sempre bem reconhecíveis pelos trajes negros e barbas longas, ocupados com os seus inúmeros afazeres eclesiásticos.
Enquanto exploramos o complexo, reparamos que um deles ora junto ao cemitério da Igreja da Anunciação, onde jazem os corpos de condenados mais importantes ao exílio no mosteiro.
Juntamo-nos a um grupo de visitantes russos.
Com recurso a traduções cirúrgicas de Alexey da narração na sua língua, impressionamo-nos com a crueldade lúgubre também eternizada nos calabouços pedregosos em que entrávamos.
Da Ilha-Mãe Gulag Ditada por Estaline à Recuperação da Espiritualidade Ortodoxa
Em 1937, Estaline transformou o mosteiro de Solovetsky num dos seus gulags mais severos.
A mãe de todos, assim o apelidou Aleksandr Solzhenitsyn em “Arquipélago Gulag” a obra em que descreve a vida e morte sub-humanas a que se viram submetidos dezenas de milhares de intelectuais, padres ortodoxos, membros de seitas religiosas e velhos bolcheviques e cúlaques. Destes, cerca de 40 mil foram executados ou mortos por doença.
Ainda assim, por estranho que pareça, a espiritualidade da ilha parece sanada. Bolshoi Solovestky e o mosteiro atraem uma vez mais gentes à procura de sentido.
Passeamos em redor das muralhas quando nos deparamos com um acordeonista que, em troca de alguns rublos para vodka, dá um recital de ocasião a moradores e visitantes.
Curiosa pelo interesse destes forasteiros, Ludmila, uma “refugiada” na ilha, aborda-nos. Acabamos a falar em francês. A senhora tinha trabalhado muitos anos emigrada em Nimes, Lá deixou os filhos e as suas famílias.
Desiludiu-se de tal maneira com a vida que só encontrou conforto entre a comunidade religiosa e as orações de Solovetsky. “Já não suportava mais aquilo.” desabafa-nos “Tratavam-me como gente de segunda” lamenta-se ainda sem esconder uma óbvia saudade dos seus. “Aqui sim. Aqui estou com Deus.”
Quando a ouvimos proferir aquelas palavras, vem-nos à mente a conclusão destemida de Solzhenitsyn para a revolução que tinha permitido a morte de 60 milhões de compatriotas, muitos em Gulags como o imposto a Solovetsky:
“Os homens esqueceram-se de Deus. É por isso que tudo isto aconteceu.”