Admiramos, sobre o areal, a excentricidade geológica daquele cenário luxuriante.
Enquanto nas nossas costas, as ondas se desfazem com uma suavidade caribenha, para diante, as montanhas cobertas de vegetação elevam-se abruptamente acima das nuvens.
Apesar de a névoa não nos permitir vislumbrar os seus picos derradeiros – o Cristobal Cólon e Simón Bolívar – deslumbra-nos saber que, em menos de 42 km, a Sierra Nevada sobe do nível do mar para a altitude de 5.700 metros que justifica o seu baptismo.
E mais ainda a consciência de que ali se situa o mundo sagrado da civilização Tayrona, hoje representado e defendido por 45.000 indivíduos pertencentes a três povos esotéricos: os Kogi, os Wiwa, os Arhuaco. E a um outro bastante mais integrado na realidade moderna da Colômbia, os Kancuamo.
Até ao início do século XVI, os Tayrona ocupavam toda aquela vasta zona tropical encaixada entre o litoral e os cumes.
Cresciam em termos demográficos e prosperavam. Eram também mestres na arte de trabalhar o ouro e de criar objectos preciosos que usavam com fins espirituais.
Para seu inesperado prejuízo, quando os espanhóis chegaram àquela parte do mundo, tanto o ouro como esses artefactos abundavam.
A Tragédia Tayrona do Desembarque dos Espanhóis
Em 1525, o conquistador Rodrigo de Bastidas tinha-se já apercebido das riquezas que podia subtrair aos nativos. Por forma a facilitar o seu desvio para a coroa espanhola, fundou a cidade de Santa Marta, à entrada da serra homónima.
A resistência dos indígenas revelou-se feroz. No fim do século XVI, a civilização Tayrona foi vencida e “empurrada” pelos invasores quase até às altitudes nevadas da cordilheira.
Aí se refugiou dos ataques e das doenças dos europeus e protegeu, até hoje, o seu saber “cósmico”, assente num equilíbrio entre o potencial da mente e do espírito com as forças naturais.
Quando deixamos a praia, acossa-nos o poder dessas mesmas forças. Estamos em plena época das chuvas do Caribe colombiano. Sem qualquer aviso, nuvens escuras como breu apoderam-se do céu e soltam uma carga de água diluviana que reduz a visibilidade a quase nada.
À falta de abrigos que nos protegessem, continuamos a caminhar pela selva, ensopados, entre escorregadelas e tropeções nas raízes salientes das árvores e do mato.
Tão depressa como havia chegado, a tempestade esgota-se. As nuvens abrem-se para um sol escaldante que nos seca em três tempos.
Reaquecidos, continuamos a subir em direcção a Chairama, uma das maiores povoações tayrona por altura da chegada dos espanhóis com mais de duzentos e cinquenta terraços erguidos sobre a selva e uma população de 3000 nativos.
Os colonos habituaram-se a tratá-la por El Pueblito.
O Longo Caos Colombiano Que Ameaçou a Sobrevivência dos Indígenas Tayrona
A proximidade da costa e a vulnerabilidade aos ataques espanhóis, ditou a retirada precoce da população de Chairama e o abandono às pilhagens e à natureza. Tal abandono só foi travado recentemente pelo apaziguar da situação politico-militar nesta zona da Colômbia e porque o governo começou, por fim, a valorizar o património histórico e étnico único do país.
Muito graças ao seu maior isolamento, actualmente, a povoação Tayrona mais emblemática é Teyuna, a misteriosa Ciudad Perdida, situada a três dias de caminhada de Chairama.
A partir da sua descoberta, em 1975, Teyuna originou o que ficou conhecido por Infierno Verde, uma autêntica guerra entre grupos de ladrões de artefactos (os guaqueros) que se prolongou por vários anos.
Apesar das pilhagens e de tantos outros traumas, os descendentes dos seus construtores sobreviveram. Voltaram a habitar a zona e descem a Chairama e às povoações colombianas da beira da estrada onde interagem com os colombianos “invasores”.
Serra Acima, a Caminho de Chairama, El Pueblito
A subida para Chairama prova-se mais íngreme do que o esperado. Mesmo exigente, dezenas de pessoas distintas percorrem aquele trilho todos os dias entregues aos seus afazeres.
Entre outros transeuntes, cruzamo-nos com um agricultor crioulo que carrega uma enorme saca de maracujás. E pela casa abarracada de uma família campesina em que guerreiam três irmãos irrequietos.
Mais acima na montanha, deparamo-nos com os primeiros indígenas Kogi e Arhuaco, que identificamos facilmente pelas roupas brancas e pelos seus cabelos escuros e longos.
Trocamos algumas palavras casuais em castelhano mas estes povos são conhecidos por dizerem apenas o estritamente necessário e pela desconfiança justificada com que abordam os contactos dos forasteiros.
Stephen Ferry, um repórter da National Geographic que visitou os seus retiros elevados da Sierra Nevada e assistiu a cerimoniais dos Mamas (sacerdotes) descreve alguns exemplos mais concretos: “… quando os Mamas comunicam percebe-se, de imediato, que as suas referencias não pertencem ao nosso mundo ocidental.
Uma Concepção Pura do Mundo. E o Dever Tayrona de o Defender da Inconsciência dos Brancos
Mencionam a conquista espanhola como se tivesse acontecido recentemente. Falam abertamente da força da criação, ou Se, o centro espiritual de toda a existência. E de aluna, o pensamento, a alma e a imaginação dos homens …”
Ainda segundo a descrição de Ferry, os Kogi, os Arhuaco e os Wiwa consideram que as coisas realmente valiosas estão subjacentes nos significados e ligações retiráveis das realidades palpáveis do mundo.
A sua cosmologia contempla, por exemplo, um universo feito de nove camadas. O templo em que se reúnem tem igualmente nove degraus, como são nove os meses de gestação de uma criança.
Para eles, uma colina pode ser vista como uma casa, os pelos do corpo humano como as árvores da floresta. Já os chapéus brancos dos homens arhuaco representam os campos de neve dos cumes em que vivem enquanto o todo das suas montanhas forma o Cosmos.
Os índios da Serra Nevada consideram-se os irmãos mais velhos, guardiães genuínos do planeta e à sua montanha o “Coração do Mundo”. Vêem ainda os colonos forasteiros como os irmãos mais novos.
Num raro documentário da BBC em que acederam participar “The Elder Brothers’ Warning”, os Mamas avisam que não vão manter a atitude condescendente que têm defendido para sempre: “Até agora ignorámos o Irmão mais Novo. Não nos dignámos sequer a dar-lhe umas palmadas. Mas não podemos continuar a tomar conta do mundo sozinhos … “
A Guerra Civil Colombiana, a Cocaína e Toda a Devastação Que Geravam
Até há algumas décadas, os descendentes das etnias Tayrona viam a sua missão de protecção espiritual do mundo cada vez mais complicada.
Produtores de cocaína, guerrilhas, paramilitares e o exército colombiano apoderavam-se das suas terras ou trespassavam-nas e nelas se confrontavam e perturbavam a harmonia natural das coisas.
No fim dos anos 90, o governo colombiano começou a controlar a situação. Derrotou aos poucos os exércitos privados, fumigou as plantações de coca e concedeu perdões e apoios à reconversão. Muitos produtores de cocaína aproveitaram essa oferta.
O sucesso das operações militares anulou a guerrilha e concedeu novas oportunidades. Como a usada por Luís e Richard Velázquez que aderiram ao Plano Colômbia e se juntaram à “sua” querida Asociación Posadas Ecoturísticas.
Como nos desabafou Richard Velazquez, “estos son cambios muy chéveres” adjectivo que se pode interpretar como “à maneira”.
Não obstante, entre tantas outras, os povos descendentes dos Tayrona continuam a sentir a pressão dos agricultores convencionais que ambicionam as suas terras para cultivarem bananas e palmeiras-de-azeite. Sabe-se também, de antemão, que a questão da cocaína nunca está realmente resolvida.
No regresso do Pueblito, cruzamo-nos mais uma vez com indígenas. Blás é o segundo e o mais misterioso. Trocamos cumprimentos e um curto diálogo. Logo, ficamos os três a descansar junto a um ribeiro.
Quando o interrogamos sobre o cansaço das viagens de ida e volta a Chairama, percursos que cumpre para vender artesanato aos poucos visitantes da povoação, arrancamos-lhe uma explicação elementar e aparentemente alienada.
Assim que pode, Blás entrega-se a uma nova recarga de folhas de coca e conchas moídas. Enche a sua poporo (cabaça) e devolve-nos aos sons da selva.
Sentimos a energia da natureza e a paz de espírito absoluta do nativo.
E não conseguimos deixar de pensar em quem salvará os indígenas tayrona da inconsciência dos irmãos mais novos.