O pequeno veleiro sulca as águas gélidas e azuladas do Canal Beagle.
Revela-nos, a cada milha vencida, perspectivas da cordilheira semi-nevadas em redor.
Pouco ou nada mudaram estas montanhas nos quase cinco séculos que passaram desde a incursão pioneira de Fernão Magalhães e as seguintes, de outros navegadores europeus, por estas paragens.
Estamos no início do Outono do Hemisfério Sul. Apenas 1000 km a norte da Antárctida. Se os primeiros dias de exploração nos concederam surpreendentes tardes solarengas que até de t-shirt se suportavam, a meteorologia vingou-se do imprevisto.
Lançou uma frente fria das profundezas do continente gelado que avisou a região para o que a esperava e agitou as águas até então tranquilas do Canal Beagle.
A Passagem do HMS Beagle, de Fitz Roy e de Darwin pelo Canal Beagle
Por sorte, ou mais provavelmente devido ao bom senso náutico do reputado capitão Robert Fitz Roy, na sua segunda expedição, o “HMS Beagle” avistou a Terra do Fogo a 18 de Dezembro, em pleno Verão austral.
Na primeira expedição do Beagle, um grupo de indígenas Yaghan terá roubado uma das embarcações auxiliares do navio. Em troca, Fitz Roy decidiu tomar como reféns os familiares dos acusados, à espera de uma devolução que nunca veio a acontecer.
Como resultado, os nativos acabaram por viajar até Inglaterra. Lá receberam educação e formação aristocrata e religiosa até que se transformaram em celebridades exóticas.
Fitz Roy, um crente inveterado, tinha outros planos: trazê-los de regresso à Terra do Fogo onde deveriam assumir o papel de missionários anglicanos entre os seus.
À medida que exploramos a Isla de Los Lobos e a de Los Pajaros encontramos apenas colónias barulhentas e conflituosas de leões-marinhos, focas, mergulhões, pinguins e outras que por certo deslumbraram Darwin.
Nem em terra firme nem nas ilhotas rochosas que salpicam o canal Beagle detectamos sinais de vida humana. É algo que reforça o misticismo fronteiriço daqueles confins.
O Regresso de Jemmy Button e a Abordagem dos Indígenas Yaghan
Com Fitz Roy e Darwin as coisas passaram-se de forma diferente.
Assim que detectaram as formas familiares do território em que antes viviam, os três Yaghan raptados rejubilaram com a iminência do regresso. Dezenas de nativos apareceram no topo dos penhascos, seguiram o navio ao longo da costa e gritaram para os tripulantes durante horas a fio.
Na manhã seguinte, Fitz Roy decidiu estabelecer contacto com os indígenas. O grupo que desembarcou ofereceu-lhes tecido vermelho vivo. Os nativos mostraram-se, de imediato, amigáveis.
Seguiu-se um diálogo improvisado em que Jemmy Button – o mais famoso dos nativos raptados – funcionou como interprete.
Darwin ficou abismado com a habilidade e tendência dos nativos de imitar os gestos e as palavras dos ingleses – chegavam a conseguir repetir frases inteiras.
E descreveu a sua impressão inicial sem cerimónias: “estes pobres desgraçados não cresceram o que deviam, as suas faces medonhas manchadas de tinta branca, as suas peles sujas e gordurosas, o cabelo desgrenhado e as vozes discordantes, os seus gestos violentos e sem dignidade.
Ao ver tais homens, dificilmente podemos acreditar que se tratam de criaturas semelhantes e habitantes do mesmo mundo”.
Foi apenas o primeiro de muitos contactos do naturalista com os nativos. E, se Darwin depressa se habituou a analisá-los sob uma perspectiva antropológica, Fitz Roy persistiu na sua ideia de estabelecer missões anglicanas. Apesar de vários contratempos desesperantes, teve relativo sucesso.
Uma Pequena Navegação pelo Canal Beagle mais próximo
Quase 200 anos atrasados para acompanharmos os acontecimentos originais, concentramo-nos no melhor que a navegação do veleiro nos oferece e em sentirmos o rasto histórico do lugar.
Contornarmos o farol emblemático Les Eclaireurs, invertemos a rota e regressamos ao ponto de partida. Mesmo surpreendidos por uma tempestade fulminante, desembarcamos em segurança.
Sem o esperarmos, nessa noite, já com os pés bem assentes em terra, continuamos a seguir a aventura do capitão e do cientista.
O recente fluxo de visitantes chegados do norte e interessados em Ushuaia, a cidade mais meridional do mundo, foi o móbil que Raúl Podetti – um empresário com outros negócios na Argentina – buscava para colocar em prática um projecto cultural que guardava na manga: levar à cena um espectáculo multimédia que reconstituísse as peripécias de Fitz Roy e Charles Darwin na Terra do Fogo.
Para tal, ergueu uma réplica do bergantim HMS Beagle apoiada por uma sala adjacente.
O Centro Beagle e a Reconstituição Teatral do Beagle Show
Surgiu, assim, o Centro Beagle. É lá que uma mistura mal paga de jovens actores fueginos e porteños (de Buenos Aires) combinam cenografia, títeres, marionetas gigantes, teatro negro, jogo de sombras e efeitos especiais, tudo a desenrolar-se sobre um palco que imita o convés do navio original, com vista para o canal homónimo.
À parte do Beagle show, o Centro Beagle revela-se também um bar, sala de estar e de refeições. Após o espectáculo, o público convive com alguns dos actores e figurantes.
Pode ali jantar, ou num espaço que alude à Plymouth do século XIX – o porto inglês de onde zarpou o HMS Beagle – ou noutro contíguo, que imita as aldeias e as canoas Yaghan e Yamaná encontradas por Fitz Roy e Darwin ao longo dos canais.
Neste último, as mesas são iluminadas por pequenas fogueiras semelhantes às que quase sempre aqueciam os indígenas e que acabaram por fazer com que os navegadores europeus baptizassem a região de Terra do Fogo.
Achamos mais piada ao espectáculo do que estávamos à espera. Acabamos por ficar para jantar. Durante uma conversa afável com o encenador, conseguimos autorização para fotografar nova exibição do espectáculo com acesso total aos bastidores.
Dois dias depois voltamos. A acção já decorre quando um dos rapazes figurantes nos conduz por corredores escuros e escadarias até à zona dos camarins.
Os Bastidores Agitados do Beagle Show
Passamos ao lado do palco também pouco iluminado em que Fitz Roy introduz a sua epopeia. E damos com as cabinas de madeira em que se vestem e despem os restantes actores.
Como é de esperar naquele mundo de marinheiros, não há mulheres no elenco. Deparamo-nos com camarins desarrumados, repletos de pinturas e recados escritos nas paredes e um certo odor a testosterona.
De início, quase todos estranham a presença do casal forasteiro mas diálogos curtos em castelhano quebram o gelo. Dão origem a piadas e brincadeiras que quase sempre nos divertem. Os espelhos predominantes confundem a ordem das coisas e ajudam a desregular o tempo.
Por nossa culpa, em mais do que uma cena, Arius e Marcos – os actores que fazem de Fitz Roy e Darwin – têm que sair a correr para evitarem quebrar a sequência da representação.
E entre cabeleiras, trajes de marinheiros, vassouras e tábuas de passar a ferro, os restantes fazem fila no corredor, de marionetas nas mãos e preparados para se juntarem aos protagonistas numa longa cena musical. O grupo actua e convive há meses na Terra do Fogo.
Partilha uma intimidade que nem sempre se prova saudável. De volta aos bastidores, dois figurantes empurram-se e trocam insultos: “Callate boludo!” ou fazendo fé no forte sotaque porteño: “Cajate boludo” é a expressão que dá azo ao exagero e a brincadeira corre mal.
Enquanto o espectáculo prossegue, os dois pós-adolescentes acabam por se envolver numa pancadaria infantil que só termina com a intervenção de vários colegas. Não sabemos o que dizer nem temos nada que dizer.
Era aquele o show real dos bastidores e ocorre-nos apenas continuarmos a fotografar. Só que o uso do flash está proibido desde início e tudo se passa numa área de penumbra por debaixo do palco.
Não foi só na história verdadeira que Fitz Roy comandou o Beagle. Arius regressa do longo monólogo dramático em que confessa a sua desilusão perante as ideias hereges de Darwin. Inteira-se do que se passa e sana a desavença.
Pouco depois, é Marcos – o Darwin – quem aparece. Informa-nos que já só volta para o agradecimento final. Aproveitamos para falar com ele e fazer uns retratos descontraídos.
Segundo nos dizem, o Beagle Show já teve mais espectadores e melhor saúde financeira. Os rapazes do elenco usufruem do seu trabalho o mais que podem.
Espera-os algo de que nem Fitz Roy nem Darwin puderam alguma vez desfrutar: a vida nocturna aconchegante de Ushuaia.