Recém-desembarcados do ferry que liga a ilha de Iloilo à principal urbe de Negros, saímos directos para almoçar num buffet com comida tradicional de um centro-comercial de Bacolod.
Estávamos esfomeados e, de acordo, compenetrados no que tínhamos trazido nos pratos. Betsy Gazo, a guia nativa que nos acompanharia ao longo dos dias, não se deixou demover. Betsy, é – não temos, agora, qualquer dúvida – uma das cidadãs de Bacolod mais orgulhosas da sua cidade e ansiosas por que os visitantes a admirassem pelo muito que tinha por louvar.
Assim mesmo, armada de mapas e folhetos, Betsy serve-nos a sugestão aturada de itinerário que havia delineado. Esforçamo-nos para acompanhar as suas catadupas de raciocínios, demasiadas vezes em vão, perdidos entre as delícias gastronómicas da refeição e sucessivos e inevitáveis desvios temáticos.
Não vimos Betsy desarmar. Como nunca a vimos perder o foco da missão de nos desvendar o que em Bacolod mais a deslumbrava.
Negros é a quarta maior ilha das vastas Filipinas. De longe, a suprema do sub-grupo das Visayas que continuávamos a explorar.
As Famílias e as Mansões Históricas de Negros
Destacam-se dos seus tesouros históricos as mansões erguidas pelas famílias abastadas, algumas dessas famílias com nomes hispânicos, outras pré-hispânicos: os Lopez, os Ledesma, os Locsin. Outras ainda, fruto das fusões estratégicas levadas a cabo, caso da Locsin-Ledesma.
Com o passar das décadas, vários dos seus antigos lares foram restaurados, aprimorados e transformados em pequenos museus. No polo oposto, muitos outros viram-se votados a um abandono que custava a Betsy constatar.
Findo o almoço, a cicerone levou-nos e a Michael – o guia que nos acompanhava onde quer que fossemos nas Filipinas – a um destes últimos casos. “Bom, vou só dar aqui um empurrãozinho e deve ficar resolvido, isto tem donos mas tenho a certeza que não se importariam com a nossa visita, muito pelo contrário.”
De Visita ao Malacañang Palace
Passamos por um portão de ferro mal fechado. Em frente, resplandece uma mansão de base de tijolinhos com adornos de pedra trabalhada. O Malacañang Palace, como ficou conhecido, é considerado a primeira Residência Presidencial das Filipinas.
Foi erguido pelo General Aniceto Lacson durante a década de 1880, num estilo denominado “Bahay na Bato”, com a tradução simples de Casa de Pedra.
Numa altura em que muitos filipinos se tinham fartado sem retorno das imposições da Coroa Espanhola, Aniceto Lacson levou a insatisfação a outro nível. Parte de um grupo regional de insurrectos, liderou a revolta katipunera (anti-hispânica) geral da ilha de Negros contra a guarnição colonial de Bacolod, em 5 de Novembro de 1898. As forças espanholas não tardaram a render-se.
Na ressaca, Aniceto Lacson foi designado presidente da recém-formada República de Negros. Estabeleceu o escritório da sua presidência naquela mesma mansão que admirávamos, primeiro por fora, pouco depois, no seu interior desmobilado e a partir da varanda panorâmica que dá a volta ao piso superior.
Ao longo do século XX, até 1970, a mansão foi habitada por uma sucessão de filhos e netos de Aniceto Lacson. Nesse ano, como acontece todos os anos nas Filipinas, os tufões entraram em acção. Um em particular assolou Negros e danificou o telhado do edifício.
Os descendentes de Lacson ainda ponderaram a sua reparação mas, confrontados com a magnitude dos estragos, viram-se forçados a abandoná-lo. O Malacañang Palace entrou num processo de degradação que desolava Betsy.
Para seu contento, em 2002, foi formada uma fundação de co-proprietários apostados em reunir fundos para a restauração. Quando por ali cirandámos, estava longe de terminada.
A Victor Fernandez Gaston Ancestral House…
Ditavam os planos de Betsy que, até ao sol se instalar no seu leito ao largo do Estreito de Guimaras, ainda visitaríamos outro velho mas resplandecente domicílio, a Victor Fernandez Gaston Ancestral House.
Victor Gaston era filho de um normando de nome Yves Leopold Germain Gaston, que se revelou um dos pioneiros do cultivo de cana-de-açúcar nestas partes das filipinas. A construção da casa teve lugar em 1897, quando Victor Baston vivia ainda em casa do pai, uma tal de Hacienda Buen Retiro.
Nesse mesmo período, a sua esposa faleceu. A casa ficou pronta a tempo de acolher o viúvo e os doze filhos desde 1901 até à sua morte em 1927, ano em que a família deixou de a habitar. Abandonada por completo, em 1970, começou a degradar-se.
Ao contrário do que sucedeu com o Malacañang Palace de Aniceto Lacson, a sua recuperação veio a gerar um dos patrimónios culturais mais valiosos de Negros. Um dos herdeiros, o padre Monsignor Guillermo Ma. Gaston, decidiu doá-la à Autoridade de Turismo das Filipinas.
Esta Autoridade recorreu à sua capacidade nacional de angariação de fundos, incluindo estatais e investiu cinco milhões de pesos filipinos, (em redor de cem mil euros) para a reparar e mobilar com adereços e mobília da época. Conseguido esse desígnio, transformou a mansão no museu Balay Negrense que nos entretemos a examinar.
… Agora, museu Balay Negrense de Bacolod
O museu exibe um exemplo quase-vivo do lar e do estilo de vida de um barão do açúcar negrense. Está assente em fundações de madeira dura filipina balayong, e as tábuas longas, largas e espessas dos soalhos foram cortadas desse mesmo material.
O andar superior surge coberto de um telhado de ferro galvanizado em vez de telhas, de acordo com as indicações difundidas pelas autoridades de Manila, na ressaca dos sismos que devastaram várias localidades da ilha-mãe Luzon.
Com Negros tranquila e segura, apreciamos o salão superior da casa-museu em todo o seu esplendor revigorado. Um casal de namorados que a visitava em simultâneo chega à janela arqueada tripla e espreita o cenário de Silay ajardinado-luxuriante à sua frente, sob um candeeiro secular com luz quente.
Lá fora, o sol estava prestes a desligar-se. Nós, já usávamos as últimas energias do dia pelo que, momentos depois, recolhemos ao abrigo modernizado do hotel em que nos tinham hospedado.
O Masskara Festival e a Vida a Sério de Bacolod
Chegamos ao Domingo determinado para o Masskara Festival, uma espécie de Carnaval criado para animar a cidade e a ilha após o afundamento trágico do ferry M/S Don Juan. Aos poucos, Bacolod enche-se de vida.
Enquanto os participantes se prepararam para a loucura mascarada e saltitante do evento, seguimos Betsy em mais uma série de voltas e incursões cirúrgicas na vida local. Sob a arcada de uma das ruas da cidade, uma curandeira idosa atende pacientes de todas as idades.
Temos umas ligeiras dores de fundo das costas, quase inevitáveis de tempos a tempos pelo peso das mochilas de fotografia que carregamos.
Mais curiosos com aquele consultório ao ar livre que em necessidade, colocamo-nos na fila, ao lado de um banco usado pelos doentes mais fracos e de uma banca repleta de frasquinhos com óleos, medicamentos caseiros e afins.
A senhora revela-se sobretudo pediatra mas atende um ou outro adulto com maleitas que domina. Quando se inteira do que nos queixávamos, recruta os serviços de uma quiropatra que, para bem dos nossos pecados, se esquiva a tratamentos radicais.
O Taj Mahal de Negros
Na sequência, visitamos as Ruínas de Talisay, chamadas de “Taj Mahal de Negros”, o que resta de uma mansão erguida pelo barão filipino do açúcar Mariano Ledesma Lacson em homenagem à sua esposa macaense-portuguesa Maria Braga Lacson, que faleceu vítima de um acidente doméstico, quando estava grávida do décimo primeiro filho do casal.
A caminho do que resta desta outra mansão incendiada pela resistência filipina para evitar a sua ocupação pelos japoneses na 2ª Guerra Mundial, atravessamos uma das plantações de cana-de-açúcar a perder de vista da ilha.
Um grupo de jovens trabalhadores corta cana sob o sol tropical. Outros, transportam-na para cima da caixa de um camião já meio-cheio de caules ressequidos.
A Produção Histórica e Artesanal de Cana-de-Açúcar
Betsy mostra-se comovida: “Por incrível que pareça, por cá ainda se corta a cana assim. E ainda temos gente como eles: tão pobres que aceitam trabalhar do nascer ao pôr-do-sol para ganhar uns míseros pesos.”
Séculos depois da introdução da cana-de-açúcar na ilha às mãos de mercadores árabes que terão trazido a planta das Celebes, algum tempo menos desde que a expansão e o aperfeiçoamento do cultivo enriqueceram várias famílias de proprietários da ilha, a economia de Negros evoluiu e diversificou-se.
Ainda assim, Negros é a maior produtora e exportadora de açúcar das Filipinas, a nação, por sua vez, a nona produtora do mundo desta matéria-prima. Mas não é só o açúcar. Uma grande refinadora situada em Cadiz, garante a produção de uma boa série de derivados: acetileno, fertilizantes e até rum.
Mais para o fim da tarde, regressamos a Silay. Betsy leva-nos ao cimo de um prédio que aloja serviços estatais da cidade. Passamos por uma série de salas e gabinetes.
Expedição Panorâmica a um Terraço Estatal de Bacolod
Já no terraço que encerrava os pisos do edifício, admiramos a urbanidade verdejante do centro daquela espécie de sub-cidade de Bacolod, com a cúpula prateada da catedral San Diego Pro, bem destacada da vida abaixo: a dos condutores de tricycles que a percorrem sem descanso.
A dos adolescentes entregues a um jogo de basquete, a dos jardineiros que regam e aparam a vegetação da Silay Public Plaza.
Desde manhã cedo que andamos entregues ao critério cultural e histórico de Betsy Gatso. Possuída por um espírito benéfico de missão, Betsy pede-nos que recorramos às nossas derradeiras energias, que as empregássemos numa última viagem a um lugar em tudo diferente dos anteriores e que prometia não nos desapontar.
Viajamos cerca de 20km para sul, quase sempre à beira do Estreito de Guimaras. Em três quartos de hora, mudamo-nos de Silay para a vizinha Victorias City.
A mando de Betsy, o motorista deixa-nos à porta de uma tal de St. Joseph the Worker Chapel que encontramos vazia. “Já percebi que não são propriamente Cristãos devotos, muito menos beatos. Melhor assim. Preparem-se que vão ter uma grande surpresa.”
O Polémico Jesus Zangado de Victoria City
Entramos na nave moderna da igreja. No imediato, apercebemo-nos apenas de que o altar seria o mais colorido e exuberante que tínhamos alguma vez visto. Calibramos a vista e aproximamo-nos.
Perante os nossos olhos, umas mãos escarlates mantêm de braços abertos um Cristo de olhos azuis fulminantes e o coração atormentado por espinhos e fogo. Irado, como não sabíamos ser possível, aquele messias parecia julgar-nos antes de tempo.
Confrontamo-lo por um momento, até que Betsy volta a ceder à ansiedade e nos esclarece o muito que ali havia para esclarecer.
“Se querem que seja sincera, nem sei bem como isto foi possível em Negros e nas Filipinas em geral, onde a Igreja é tão conservadora. A verdade é que cá está e eu tenho uma enorme admiração por este trabalho.”
A pintura em questão, criada pelo artista abstracto filipino-americano Alfonso A. Ossorio fez jus à arquitectura sacro-moderna e anti-terramoto do arquitecto checo Antonín Raymond. Foram ambas encomendadas pela maior empresa sacarina das Filipinas, a Victorias Milling Company.
A relativa autonomia religiosa desta empresa face à Igreja deu azo ao capricho artístico mas, como nos confirma Betsy “a facção católica mais rígida de Manila não achou piada e tentou mundos e fundos para que a pintura fosse removida. Até à data em vão.”
Nas Filipinas do açúcar, há séculos que a abertura de espírito e a doçura do carácter das gentes estão acima de tudo.