Exploramos a planície fluvial vasta porque se espraia Bagan, sobre pasteleiras velhas e rangedoras.
Pedalada após pedalada, deixamo-nos deslumbrar pelos templos grandiosos por lá erguidos, a começar pelo Ananda que foi construído pelo rei Kyazinttha em forma de crucifixo, baptizado com o nome de um dos primos veneráveis de Buda.
A beleza exótica de Ananda funde a arquitectura Mon com o estilo de construção hindu adaptado pelos birmaneses que contempla quatro Budas no seu âmago, virados para os diferentes pontos cardeais, com posições e expressões distintas granjeou-lhe o título colonial de Westminster Abbey de “Burma”.
Em frente do templo de Thatbyinnyu, o espanto renova-se. O mesmo volta a acontecer no sopé do impressionante Dhammayangyi que, de tão ambicioso, nunca chegou a ser terminado pelo rei Narathsu.
Narathsu procurava perdão divino por ter assassinado o pai e o irmão mais velho para ascender ao trono. A obra e o indulto ficaram a meio.
O templo continua a destacar-se como o maior de Bagan, com 61 metros de altura.
Quando a luz se começa a desvanecer, incontáveis ciclistas percorrem as estradas de terra batida que conduzem aos templos. Atrapalha-os o pó levantado pelos autocarros turísticos, pelos táxis e pela frota de carroças que circulam nas redondezas.
Ao chegarmos à base do pagode, damos com um exército de vendedores de recordações a acossar os estrangeiros armado de recordações e do mais genuíno charme birmanês.
Sem Rumo pela Planície dos Pagodes e Templos de Bagan
O sol cai sobre o horizonte. Os terraços mais elevados do templo ficam à pinha, preenchidos por dezenas de monges budistas e por uma multidão internacional que, a esforço, se coordena na partilha do monumento.
A iminência do ocaso, aumenta a urgência de subir a escadaria íngreme, de encontrar um espaço e apreciar a paisagem surreal. Coloca as compras em segundo plano até porque, no dia seguinte, os mesmos vendedores e produtos surgirão neste e noutros templos, tão disponíveis como sempre.
Do topo, as cores da planície de Bagan somem-se no crepúsculo e numa névoa difusa formado pela mescla da condensação tardia e do fumo libertado por fogueiras longínquas.
A visão revela-se quase extraterrestre. Em redor, para todas as direcções, centenas e centenas de templos vermelho-tijolo com pontas aguçadas, projectam-se do solo.
Geram uma atmosfera solene que cada uma das almas sobre os terraços e escadarias de Shwesandaw sorve no mais profundo espanto.
A Incompatibilidade de Bagan com os Preceitos da UNESCO
Até há algum tempo, esta reacção contrastava com a de qualquer interessado em história e arquitectura quando apurava que Bagan e esta sua esplendorosa herança não estavam sequer classificados pela UNESCO.
Tal como aconteceu em relação a tantos outros aspectos, o governo dictatorial do Myanmar isolou-se também quanto à recuperação do seu património. Em pouco tempo de sistemático desrespeito pelas regras vigentes no resto do Mundo, inviabilizou-a.
Em 1996, o governo do Myanmar chegou a apresentar uma candidatura de Bagan à UNESCO mas diversos danos já infligidos e a recusa em pactuar com as indicações dadas pela organização inviabilizaram o esforço.
Por essa altura, a junta militar tinha já restaurado o património de Bagan – stupas, pagodes, templos e outros edifícios seculares – sem qualquer critério e causando a profanação do estilo base dos monumentos com materiais modernos que destoavam dos originais.
Como se não bastasse, os governantes de Naypyidaw ergueram ainda na planície de Bagan um campo de golfe, uma via asfaltada e uma torre de vigia com 61 metros.
Malgrado este paradigma de sacrilégio, Bagan foi finalmente inscrita pela UNESCO como Património Mundial, em Julho de 2019. Vinte e quatro anos após a Junta Militar ter pedido a sua nominação.
E, no entanto, estas e outras atrocidades são insignificantes se comparadas com os crimes económicos e sociais cometidos para permitir a construção da nova capital do Myanmar, Naypyidaw.
Desde cedo, os birmaneses foram instruídos a confiar o seu destino a reis e divindades que reverenciavam com fervor. Algumas dessas personagens terrenas e celestiais destacaram das demais e fizeram história.
As Fundações Históricas da Planície dos Pagodes de Bagan
Em 1047, Anawratha, um rei precursor da nação birmanesa anexou Thaton, um domínio que lhe fazia sombra. A narrativa desta conquista explica, em parte, a espiritualidade e grandiosidade de Bagan.
Manuha, o todo-poderoso rei do povo rival de Mon tinha-lhe enviado um monge para o formar religiosamente. A determinada altura, Anawratha exigiu-lhe uma série de textos sagrados e de relíquias importantes, negadas por Manuha, que duvidava da seriedade da sua crença.
Anawratha enfureceu-se. Apoderou-se de Thaton e levou para Bagan tudo o que valia a pena pilhar, incluindo 32 exemplares das escrituras clássicas budistas, os monges e escolásticos de Thaton que as guardavam e estudavam e o próprio líder derrotado, Manuha.
Anawratha adoptou ainda o Budismo como religião única do reino.
Nos 230 anos seguintes, Anawratha e os reis bagari provaram-se devotos à religião que se havia alastrado ao Sudoeste Asiático a partir do território actual do Bangladesh.
Em nome daquela forma híbrida de Budismo Theravada – em parte Tântrica, em parte Mayahana – construíram uma média de 20 templos por ano, disseminados por uma área com 40 km².
A vitória militar estrondosa que lhes deu origem surpreendeu e inspirou a vida dos súbditos que se habituaram a mencionar Bagan como Arimaddanapura, A Cidade do Rei que Esmagou o Inimigo.
Anawratha, em particular, ergueu alguns dos mais grandiosos edifícios da planície, ainda hoje, destacados entre os milhares que sobreviveram às invasões tártaras de Kublai Khan – a quem os birmaneses recusaram pagar tributo – e ao longo abandono que se seguiu.
São os casos do Shwezigon, do Pitaka Taik (a biblioteca das escrituras) e da elegante Shwesandaw paya, construída após a conquista de Thaton.
Quase um milénio depois, a religiosidade dos birmaneses equipara-se a do resto do Mundo: vai da mais pura fé à crendice superficial e interesseira.
Planície dos Templos. A Procura de Redenção dos Birmaneses
Um bom exemplo da última das modalidades foi narrado por George Orwell em “Dias na Birmânia”.
Surge na personagem de U Po Kyin, um magistrado nativo corrupto e ambicioso que conjura todas as intrigas possíveis para desgraçar a vida do Dr. Veraswami, este, um médico indiano que U Po Kyin abomina e a quem quer conquistar a única vaga não “british” no European Club de Kyauktada, o districto fictício da Birmânia Imperial em que a acção se desenrola.
Como descreveu Orwell, a determinada altura, “U Po Kin tinha feito tudo o que um homem mortal podia fazer. Era tempo de se preparar para o próximo mundo – em resumo, de começar a construir pagodas…”.
No seu caso particular, esse provou-se dos poucos planos que lhe correram mal. U Po Kyin sofreu um ataque cardíaco e morreu antes que mandasse assentar o primeiro tijolo.
Não terá sido caso único mas, ao longo da história, milhares de birmaneses precaveram-se a tempo. As suas obras foram erguidas para a eternidade um pouco por toda a nação. Bagan – mais ou menos a meio do território actual do Myanmar, nas margens do grande rio Irrawaddy a norte das de Amarapura e da famosa ponte u-Bein – acolhe uma concentração única.
Verdade seja dita que ninguém sabe ao certo quantos edifícios religiosos abriga Bagan.
No final do século XIII, a contagem oficial indicava 4446. Por volta de 1901, estudos britânicos contabilizaram 2157 monumentos ainda de pé e identificáveis.
Mas, em 1978, apenas alguns anos depois do forte tremor de terra que abalou a região, um novo cálculo estimou que existiam mais que na contagem anterior: 2230.
A conclusão a que se chegou só espantou quem não conhecia o modo de vida birmanês: os templos de Bagan simplesmente não paravam de aumentar.
Com tantos budistas ávidos por salvaguardar a sua próxima vida, os residentes mais ricos de Yangon, entre outros, (incluindo muitos oficiais do governo militar) continuam a acreditar que obra feita em Bagan, lhes garantirá a redenção.
Reconstroem e erguem novos pagodes ao seu critério e a um ritmo inesperado (cerca de trezentos só no princípio do século XX) demasiadas vezes indiferentes à arquitectura do património original.
Mesmo se indigna os técnicos da UNESCO, esta dinâmica faz parte da forma de vida birmanesa.
É vista, no país, como natural.
A Azáfama Também Espiritual de Nyang U, a Porta de Entrada em Bagan
Alvorada atrás de alvorada, novos dias abafados despertam em Nyang U.
O mercado da povoação entra em frenesim. Mulheres de rostos pintados de thanaka dourado – uma protecção natural contra o sol – gerem as suas bancas de fruta e vegetais coloridos.
Vendedores de bilhetes de autocarro, gritam os seus destinos entre a multidão e redobram esforços para completar lotações sem fim.
Quando menos se espera, autocarros bem mais modernos estacionam nas imediações e despejam hordas de turistas curiosos, quase todos de máquinas fotográficas em punho e carteiras recheadas de kyats voláteis.
Em absoluto contraste, na rua em frente, freiras budistas passam em fila pelas portas de domicílios e pequenos negócios.
Portam recipientes que os crentes lhes enchem de arroz e um ou outro complemento mais rico, alimentos que aliviam a sua árdua privação monástica.
Para diante, o mercado transforma-se numa feira ainda mais barulhenta e poeirenta, animado por passatempos e jogos básicos promovidos com a ajuda de altifalantes.
Transaccionam-se vacas e cabras e muita malagueta que os potenciais compradores apanham à mão cheia e deixam cair como que para comprovar o potencial explosivo.
Logo ao lado, a azáfama é espiritual. Uma alameda coberta, ocupada por vendedores de artigos religiosos, conduz à entrada da Shwezigon paya, um dos templos budistas mais antigos e mais frequentados de Bagan, considerado o protótipo das milhares de estupas disseminadas pelo Myanmar.
Erguido até 1102, Shwezigon paya foi uma das primeiras obras do rei Anawaratha.
A importância que encerra vai muito para lá da antiguidade.
Os fiéis crêem que um dos seus túmulos conserva um osso e um dente do Buda Gautama e que um dos seus pilares de pedra contém inscrições ditadas em dialecto Mon pelo rei Kyazinttha, que se encarregou de acabar a obra, após a morte de Anawaratha.
Estamos num suposto “Inverno” do sudoeste asiático. Ainda assim, mal o Sol sobe no horizonte, brilha inclemente e incide nos crentes que circulam em redor do núcleo dourado do templo.
Os fiéis rezam compenetrados, indiferentes ao burburinho gerado pelas primeiras excursões estrangeiras do dia.