Em plena era das Descobertas, James Cook, impressionado com a exuberância dos cenários e com a beleza e gentileza das mulheres polinésias, terá declarado Bora Bora a Pérola do Pacífico.
Dois séculos depois, Bora Bora faz parte do imaginário de meio mundo como um símbolo de paraíso luxuoso, tão hedonista como frívolo. As mais poderosas corporações turísticas, transformaram-na numa ilha geradora de enormes lucros.
À imagem de Moorea, Bora Bora prova-se uma obra-prima geológica que combina inúmeros picos vulcânicos aguçados cercados por um atol excêntrico que deixam deslumbrados os mais insensíveis às expressões do Planeta.
Há trinta anos, o hotel Bora Bora instalou-se a partir de um dos motus, os ilhéus que delimitam a lagoa. Daí para cá, dezenas de outros resorts se juntaram ao pioneiro e o marketing eficaz que promove a ilha a uma escala mundial passou a atrair milhares de casais em lua-de-mel, desejosos de viver a “dita” mais sofisticada experiência polinésia e de, no regresso, dela se poderem gabar.
Os hóspedes são essencialmente europeus, americanos e japoneses. Chegam a exibir malas Louis Vuitton. Instalam-se em bungalows requintados sobre a lagoa, esperançados em partilhar as suas férias com Pierce Brosnan, que se diz, por aqui, ser quase residente, ou outras estrelas de cinema.
Quanto às actividades de lazer, Bora Bora pouco oferece de novo em relação às irmãs. É da praxe participar-se pelo menos num lagoon tour que inclui paragens para snorkeling e um churrasco num ou vários bancos de areia.
Por algumas centenas de euros extra, os resorts proporcionam experiências inesquecíveis de mergulho com mantas e tubarões. Quando o mar azul-azulão da ilha começa a fartar, pode-se ainda passear a cavalo ao longo do motu Piti Aau.
Claro que, no arquipélago das Sociedade, todos os hotéis requintados se fazem pagar a condizer. No caso de Bora Bora, os preços afastam os aspirantes com carteiras menos recheadas. E, no entanto, a ilha também reserva lugar para quem, como nós, busca expressões da sua alma taitiana.
Chegada em Tempo de Chuva
Aterramos no motu Mote numa tarde de chuva, vento e céu cinzento. Já tínhamos tido a nossa dose de bom tempo e de vistas paradisíacas noutras ilhas. De acordo, prosseguimos com a visita conformados com o azar meteorológico.
Damos entrada na Chez Rosine, uma pensão familiar situada à beira da lagoa mas, ainda assim, no coração da ilha.
Duas horas depois, quando perguntamos à empregada o que nos aconselha a fazer num dia de chuva, responde com uma entediada sinceridade: “Meus amigos, em Bora Bora, tirando olhar para as cores da lagoa, há pouco que fazer“. Nem por isso desistimos. A chuva torrencial dá tréguas. Pegamos em bicicletas da pousada e saímos à descoberta.
Pelo caminho, observamos a paisagem mística do Monte Otemanu, difuso entre a vegetação densa e as nuvens baixas que o irrigam e às cascatas que por ele deslizam. Passamos por lojas e mais lojas orientadas para o turista e por uma ou outra casa humilde que resistiu à inevitável pressão imobiliária.
Só nos detemos em Faanui. Decorre uma missa na igreja protestante da povoação. Uma multidão de crentes, quase todos mulheres nos seus melhores trajes, aflui em massa. Após breves momentos de convívio no exterior, as fiéis entram. A igreja fica à pinha.
Deslumbra-nos uma imensidão de vestidos brancos e chapéus rendilhados que as predominantes senhoras mantêm na cabeça durante o cerimonial.
No dia seguinte, continuamos a explorar o que subsistia das raízes pré-turísticas de Bora Bora.
Um Salto no Arquipélago. À Descoberta de Raiatea
E recuamos ainda mais na história polinésia quando viajamos para Raiatea, a próxima ilha da Sociedade no mapa.
Decididamente à margem do glamour das antecessoras do grupo, Raiatea – mas não a sua extensão Taha’a que é apenas e só selvagem – revela-se tão sofisticada quanto reservada e antiquada.
Os seus habitantes vivem segundo os termos que estabeleceram. Confirmamos que a agricultura e os postos de trabalho governamentais são as principais fontes de emprego, os últimos, concentrados em Uturoa, porto local e a segunda maior cidade da Polinésia Francesa, a seguir à capital Pape’ete, esta situada na ilha-mãe Taiti.
Raiatea acolheu, há muitos séculos atrás, alguns dos santuários sagrados mais relevantes de toda a Polinésia. As suas terras verdejantes emanam um mistério e misticismo que não passa despercebido aos arqueólogos ou exploradores interessados na milenar cultura taitiana.
Delas se destacam determinados maraes, lugares de culto religioso e cerimónias sociais que os nativos limparam de vegetação e delimitaram. Encontramo-los em diversos pontos estratégicos do litoral.
É o caso do Taputapuatea que teve tanta importância para os polinésios que qualquer outro marae construído noutra ilha devia incluir uma das suas pedras, como símbolo de aliança. Esta lei aplicava-se até às longínquas Ilhas Cook ou ao arquipélago do Havai.
É ainda o caso do Tauraa, um recinto tapu (tabu) que preserva uma pedra elevada de investidura em que os jovens ari’i (chefes) eram coroados. Outros maraes com o Tainuu da aldeia de Tevaitou permitem continuar a acrescentar dados ao contexto histórico de Raiatea e à sua função no vasto universo taitiano.
Não é que lhe faltem os ingredientes sedutores porque se tornou tão desejado o arquipélago da Sociedade mas, se cada uma das suas ilhas é ideal para fins distintos, a Raiatea, cabia a nobre missão de revelar as origens enigmáticas da civilização polinésia. De acordo, abreviamos o voo para a ilha que seguia: Huahine.
Huahine, a Sociedade que se Segue
Tal como voltamos a apreciar das janelas do avião, à imagem do Taiti, Huahine é composta por duas ilhas: Huahine Nui e Huahine Iti.
Ambas estão cercadas por um anel de recife de coral e têm a companhia de diversos ilhéus, motus. Separam-nas Nui e Iti umas poucas centenas de metros de água que, durante a maré vazia, desvenda uma língua de areia que permite caminhar de uma a outra.
Huahine Nui e Huahine Iti formam o clássico conjunto geológico ilha-montanha com ponto mais alto nos 670 metros do pico Turi. E envolve-as um dos atóis abundantes no arquipélago das Sociedade. O duo prova-se mais um monumento natural da Terra exuberante e sedutor que mantém estas paragens do Planeta nos imaginários de paraíso de qualquer viajante ou pretendente a viajar.
As melhores praias de Huahine estão na pequena Iti. Em termos balneares e de cenário, ficam bem aquém das de Maupiti, Bora Bora e Moorea, para mencionar apenas três das ilhas do vasto arquipélago Sociedade.
A Vida Cosmopolita e Solarenga de Chez Guynette
Instalamo-nos na Chez Guynette, uma pousada familiar, gerida por um casal de franceses com dois filhos, donos da Guynette que inspirou o baptismo do negócio, uma cadela castanha. A meio da década de 2000, os proprietários mudaram-se de Nice, Côte d’Azur para a ainda mais solarenga Polinésia Francesa.
Dizem-nos que os seus melhores amigos são portugueses, de Chaves, que já os foram visitar durante as romarias de Verão de Trás-os-Montes.
Partilhamos o espaço comum da pousada com Gerald, um austríaco, como nós, numa longa viagem e que abordamos na brincadeira quando o vemos a folhear um grande e pesado atlas. “Andas a viajar com isso?” “Acham que sim? Por acaso até sou um bocado estúpido, mas não tanto como isso”, responde-nos e gera uma enorme gargalhada comunal.
Gerald descreve-nos os lugares do Alasca que tinha achado mais mágicos. Reforça o entusiasmo que já sentíamos por esse trecho americano da viagem de volta ao nundo a que nos entregaríamos daí a uns meses.
O Aussie Jim, a Espiritualidade e a Numerologia
Gerald vai à sua vida. Aparece Jim. Jim é um australiano de Byron Bay que, entre outros dotes, faz surf, constrói pranchas de surf, escreve música. Jim, confessa-nos que está prestes a iniciar um retiro de ioga e jejum na natureza, determinado em libertar toxinas do seu corpo.
Jim cultivou um forte interesse na numerologia. Pergunta se nos importamos que nos analise do ponto de vista numerológico. “Não, claro que não!” respondemos-lhe, entusiasmados e intrigados. Na sequência, tira nota de uma série de informações essenciais à análise: data de nascimento, idade, nomes.
Aplica as respostas a uma sua fórmula. Como resultado, atribui números correspondentes às nossas personalidades que afiança que já tinha mais ou menos definido, apesar de só nos ter estudado uns vinte minutos.
O mate Jim tem que fazer. Tal como nós. Despedimo-nos com um até mais logo a contar com um reencontro nocturno que se veio a verificar.
Na manhã seguinte, saímos num carro alugado aos preços exorbitantes da Polinésia Francesa.
Percorrem Huahine Nui estradas estreitas mas imaculadas que os financiamentos estruturais gauleses ajudam a manter. Na prática, é o mesmo efeito que têm no que diz respeito à dependência da Polinésia Francesa face à França.
Estas vias, desvendam a natureza luxuriante da ilha.
Damos-lhe mais que uma volta. Desiludimo-nos. Os cenários e a atmosfera eram os mesmos dos de Raiatea. Mais ainda que em Raiatea, praticamente não detectámos ou sentimos vida humana além de um ou dois nativos a tratarem das frentes das suas casas, de uma forma quase obsessiva.
A Surpreendente Desolação Tropical de Huahine
De tal maneira nos aborrecemos com a inesperada esterilidade demasiado ajardinada e arranjada da ilha que devolvemos o carro, quatro horas depois, ainda a meio do tempo de aluguer.
Huahine depressa transmite, a quem chega de fora, uma sensação de absoluto isolamento. Não é alheia a essa sensação a postura defensiva da população local face ao turismo milionário. Mesmo conscientes de como prejudicam as suas contas bancárias, os menos de 6000 habitantes da ilha sempre se mostraram contra a construção de resorts luxuosos.
Até à data da nossa visita, só um grande hotel daqueles que espraiam constelações de cabanas mar adentro tinha conseguido furar o bloqueio.
Desse hotel, brotou mais um pequeno mundo privado, pseudo-sofisticado e alienado no já de si universo retirado dos confins das Ilhas Sociedade.