Desde as nove da manhã que cruzamos a aridez de Kyzyl Kum, no primeiro terço do percurso, com o Turquemenistão iminente, a sul.
A via uzbeque que sulca o deserto pouco passa de um projecto de estrada. Só quase às cinco da tarde cumprimos os 450km que separam Khiva de Bukhara, duas das grandes urbes históricas da Ásia Central.
No tempo que levamos a dar entrada no hotel e nos refazermos do castigo rodoviário, o sol começa a assentar e a dourar a cidade, já de si, amarelada da pedra calcária milenar que a sustém.
Em Busca do Registão de Bukhara
Estamos a umas centenas de passos do Registão, o antigo cerne pulsante da cidade, praça pública, lugar do mercado e até das execuções de criminosos.
Em sua busca, por uma rua pavimentada de ladrilhos cinzentos, cumprimentamos dois jovens adversários.
Confrontam-se em sucessivas partidas de gamão, numa caixa-tabuleiro aberta.
Mal sentados, os miúdos jogam sobre um conjunto de tapetes tradicionais, escarlates e negros, com padrões geométricos comparáveis a tantos outros que não tardamos a detectar.
Damos com uma fachada lateral da grande praça. Logo, com a sua frente.
Preenchem a fachada da madraça Mir-i-Arab doze arcos ladrilhados, em ogiva, que remetem para uma ogiva integral que serve de pórtico central.
Trabalhado e colorido ao mais ínfimo pormenor, também este pórtico contem nichos ogivais, um padrão geométrico privilegiado e prevalecente na arquitectura islâmica da Ásia Central.
O crepúsculo rapta o amarelo-torrado dominante e o azul-turquesa das cúpulas da madraça e da mesquita Kalyan oposta.
Aos poucos, o domínio das silhuetas cede a um outro, tão ou menos efémero.
Uma luz artificial de um amarelo dramático que emana do interior dos pórticos ofusca o azul-celeste em declínio. Aos poucos, vai revelando as estrelas e planetas estudados por Ulugh Beg, a partir do seu observatório de Samarcanda.
O Minarete Kalyan, as Mesquitas e Madraças do Registão
Faz destacar, como foguetão de outro tempo, a estrutura sobranceira e mais antiga do Registão.
O minarete Kalyan data do século XII.
É vários séculos prévio aos restantes edifícios. Com quase 50 metros de altura, destaca-se bem acima do restante complexo.
Vê-se de grandes distâncias na planura desértica em redor, como um farol administrativo e religioso que os súbditos e os fiéis se habituaram a louvar. E, por motivos justificados, a temer.
Durante um largo período, as autoridades régias te-lo-ão usado como meio de execução. Limitavam-se a atirar, do cimo, os condenados pelos crimes mais graves.
Por ser demasiado alto para potenciar o chamamento para as orações dos muezzins, o minarete Kalyan manteve funções duplas de observação e cumprimento de pena capital.
Chegou a ser conhecido como a Torre da Morte.
Concede-nos o último vislumbre do Registão antes de recolhermos, para jantar, numa loja de tecidos e tapetes tradicionais, versátil o suficiente, para servir refeições.
Lá recuperamos energias a saborearmos pratos uzbeques. Lá aprendemos que os tecidos bordados à mão, por norma, como toalhas de mesa ou colchas de cama, se denominam Susanne.
Como sempre nesse périplo pelo Uzbequistão, temos a companhia de Ravshan, o condutor, e de Nilufar, uma jovem guia. Nilufar explica-nos isso e muito mais.
Já há quase uma semana a acompanhar-nos, também desabafa que ela e a sua família são dali, de Bukhara. Sente falta de os ver.
Só que os pais vivem a mais de 40km. “Tenho pena, mas não vou conseguir.” remata assim a frustração, pouco antes de encerrarmos o repasto e recolhermos ao abrigo do hotel.
Novo Dia em Bukhara. À Descoberta da Cidade Milenar
Na manhã seguinte, Nilufar dá início à sua volta explanatória de Bukhara. Do minarete supremo da cidade, avançamos até à quadra de torres de Chor Minor, um edifício de traça de mesquita única, em Bukhara.
Foi erguido já no início do século XIX como parte duma antiga madraça, entretanto destruída.
Das suas quatro torres, três serviram para armazenamento de mantimentos. A restante, continha uma escada que conduzia ao piso superior.
Em 1995, devido à acção de um lençol subterrâneo, uma delas desabou e, por causa do desequilíbrio estrutural gerado, o próprio Chor Minor entrou em risco de colapso.
O dano foi reparado. Ainda assim, o estranho edifício, mandado erguer por um morador da cidade de origem turcomena, com funções de liturgia e de abrigo, permanecia encerrado.
Limitamo-nos a apreciá-lo do pátio que se estende em frente, onde, à sombra de uma árvore baixa, um artista dava derradeiros retoques num quadro que fazia do monumento e do seu reduto bem mais verdejante que como a realidade o pintava.
O Mausoléu Ismail Samani e Mesquita de Bolo Khauz
Por indicação de Nilufar, dali, progredimos para um dos mausoléus reverenciados e pioneiros de toda a Ásia Central, o de Ismail Samani.
Como o nome deixa antever, foi mandado edificar por Ismail, no século X, como lugar de sepulcro dos reis Samanidas que o sucederam.
No interior abafado, uma família ora, sentada a um canto.
Nilufar sussurra-nos o que tem a explicar. Após o que passamos para a mesquita Bolo-Khauz.
Depressa a percebemos distinta das demais, bem demarcada pelas colunas de madeira que sustêm a pala no topo da sua fachada e pelo lago (khauz) arredondado na frente.
À entrada, artesãos trabalham em artesanato de estanho, compenetrados na minúcia das linhas dos monumentos de Bukhara que sulcam nas placas de metal.
Uns poucos fiéis rezam na sala de preces da mesquita, sob um novo jogo de grandes ogivas e ogivas menores que delimitam e decoram aquilo a que nos atreveríamos a chamar um peculiar altar islâmico.
Um Comércio Excêntrico de Joias e Relíquias Soviéticas
O dia já ia longo. O calor voltava a apertar. Obrigamo-nos a uma longa pausa para almoço. O restaurante fica junto a um complexo comercial.
Lá testemunhamos uma inesperada azáfama, sobretudo, de venda de jóias com pedras preciosas.
Uma mulher aprecia-as, dispostas sobre mostradores de veludo, com recurso a pequenas lupas reveladoras.
Duas potenciais compradoras em trajes nada islâmicos, conversam com um dono de negócio.
Atrás deste trio, insinua-se um estranho póster, com uma imagem do ritual hajj de Meca, sob o nome, em alfabeto cirílico, da sua joalharia.
Continuamos a por ali dar com preciosidades.
Um outro comerciante exibe toda uma panóplia de relíquias da era soviética do actual Uzbequistão, medalhas, pósteres de generais e líderes políticos.
Mesmo se menor a sua imagem que outras, lá se destaca a de Vladimir Lenine, um dos mentores ideólogos e políticos da formação da U.R.S.S.
Convicto de que nos aliciaria a comprar, o vendedor desfralda uma bandeira vermelha, com uma faixa azul central e uma foice e martelo acima.
Vistoso como se provava, o estandarte só traduzia 67 anos da incrível antiguidade de Bukhara.
As Sucessivas Metamorfoses de Bukhara
Bukhara evoluiu como cidade, estima-se que desde há mais de dois milénios.
A partir do século II a.C., integrou um dos principais itinerários da Rota da Seda que contribuíram para levar o Budismo ao oásis em que se situava.
A expansão do Budismo e, em menor escala, do Zoroastrismo, entre, pelo menos, o século I a.C. e o VII d.C. foi abruptamente interrompida pela invasão árabe do ano 709 d.C e pela promoção da cidade a capital dos canatos de influência Pérsia Samanida, Caracânida e Corásmio.
Interrompeu, por sua vez, esta nova direcção árabe, em 1220, a invasão Mongol de Ghengis Khan a que se seguiu a incorporação no império turco-mongol timurida, até 1405.
Por fim, Bukhara e o oásis em redor integraram um trio de canatos (reinos) uzbeques que a administraram de forma prolífica e a dotaram de boa parte dos monumentos religiosos que lá subsistem, incluindo os minaretes que definem o seu horizonte tão peculiar.
Em 1870, o Império Russo em forte expansão submeteu estes canatos.
Chegamos a 1917 e à Revolução Russa.
Bukhara e a Actual Fusão entre o Islamismo e a Herança Soviética
Assentes na recém-emergida etnicidade Uzbeque, os antigos canatos ajustaram-se à República Socialista Soviética do Uzbequistão de que o vendedor nos exibia a bandeira.
E que os Bolcheviques e sucessores soviéticos inundaram de marxismo-comunismo, de ateísmo e tantos outros dogmas e elementos culturais e políticos incompatíveis com o Islamismo.
Contornamos a milenar Ark, uma fortaleza completada no século V d.C., usada como um subdomínio régio de Bukhara pelos vários monarcas que controlaram a região, até à incorporação na Rússia e na U.R.S.S.
Nesse cirandar, quatro homens carregam mobiliário sobre o tejadilho de um Lada Vaz-2101.
Sobre umaverdadeira caixa motorizada, apenas um de milhares de exemplares que provam o quanto – trinta e três anos após a ruptura da U.R.S.S. e a Independência do Uzbequistão – perdura, em Bukhara, a mecânica e a herança soviética.
Um segundo vendedor de relíquias coloca um chapéu de pala de um qualquer oficial do Exército Vermelho para ali destacado.
Para nos reter, emula um discurso militar em russo.
Ao caminharmos sob uma grande arcada do Registão, próxima do minarete de Kalyan, um muezzin faz ecoar novo chamamento para a oração.
Como Ir
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