O Chile e sobretudo o PN Torres del Paine, atraíam mais e mais forasteiros.
A determinada altura, os responsáveis da companhia de navegação NAVIMAG que assegurava as ligações Puerto Natales-Puerto Montt viram-se confrontados com a pedinchice permanente de mochileiros ávidos por descobrir a área remota e inóspita entre estas cidades.
Consciente do potencial financeiro do negócio, esta empresa estatal chilena apressou-se a dotar os seus navios Puerto Eden e Magallanes de acomodações à altura. Sem nunca abandonar o transporte de carga, passou admitir os interessados.
Percorremos a rota Sul-Norte no Puerto Eden, três dias e meio na companhia de viajantes de diversas partes do mundo – e também de gado. Entre cenários inacreditáveis e acima e abaixo das vagas assustadoras do Golfo de Penas.
21h15 – Puerto Natales/Región de Magallanes y Antártica
Embarque
A pouco e pouco os passageiros sobem e, desconfiados, olham em redor. Muitos não sabem sequer, ao certo, no que se estão a meter. Partilham perguntas, respostas e comentários que, em vários idiomas e sotaques fazem, da plataforma que nos conduz à coberta, uma espécie de elevador de Babel.
Já passa das 21h. Está previsto o Puerto Eden zarpar de Puerto Natales na madrugada seguinte. Por questões de segurança e organização, estabeleceu-se que os passageiros deviam embarcar na noite anterior e pernoitar no barco.
E assim foi. Depois de conduzidos pela tripulação aos respectivos camarotes, pouco mais nos resta nessa noite, senão dividir o espaço exíguo que vamos partilhar, quatro a quatro, nos próximos tempos.
1º Dia de Navegação
06h45 – Canal White
Começa cedo e em alvoroço a viagem. A algumas milhas espera-nos o Paso White – a passagem mais estreita de todo o percurso, com apenas 80 m de largura.
Os passageiros são convidados para se juntarem ao comandante e assistir às manobras. Apesar do cansaço do dia anterior e das escassas horas de sono, levantamo-nos de imediato. Corremos para a ponte, entretanto invadida. A tripulação parece não se importar. Habituada à intrusão, concilia as operações com esclarecimentos aos mais curiosos.
Quando o estreito se revela realmente próximo da proa do navio, a visão das suas quatro enormes torres de rocha reforça a ilusão de que vamos ficar presos na rocha.
O comandante, esse, deixa-se fotografar. O momento é delicado, mas Marcelo Sanchez Alcazar divide-se, imperturbável, entre o fazer soar a buzina grave do navio, saborear o seu chá e observar inúmeros visores.
Com a mesma tranquilidade, a embarcação deixa para trás a tangente do Paso White. Continua a sulcar as águas lisas do canal. A plateia de observadores não arreda pé da ponte de comando, emocionada pela proeza e fascinada pela maquinaria.
Do pequeno-almoço ao almoço, apesar do frio e chuva próprios destas latitudes austrais, passamos grande parte do tempo nos decks superiores.
Longas conversas acompanham horas de observação pachorrenta das margens e do gado que segue, apertado, sobre os camiões. À tarde, a exibição de uma aventura 007 na sala de estar sabota o espírito de convívio que se alastrava.
Para alguns, a paisagem patagónica dos canais e fiordes, com a sua vegetação minimal, torna-se repetitiva.
17h45 – Glaciar Amália
Por esta altura, os passageiros reagem ao apelo estridente dos altifalantes. Acorrem ao exterior do navio, preparam as máquinas fotográficas e de filmar para a chegada do glaciar Amália.
Vencidos os dois últimos meandros apertados do canal surge por fim, o rio de gelo, de um azul tão forte que nem a névoa circundante consegue ofuscar. Seguem-se cenas de regozijo.
Enquanto o comandante Alcazar faz o navio apitar para assinalar o momento com solenidade, dois passageiros mais irrequietos não resistem a imitar o famoso “I’m the King of the World”, cena do filme Titanic, empoleirados sobre a proa do Puerto Eden.
De imediato, o comandante brinda-os com alguns apitos adicionais, dessa vez, castradores.
Entretanto, a noite começa a cair. O comandante faz o navio dar meia-volta, de regresso à rota principal. A temperatura baixa de tal forma que poucos se atrevem a continuar no exterior. Perdem um pôr-do-sol que deixa o céu nublado em fogo.
Depois do jantar, fazem-se ouvir, de novo, os apelos amplificados de Maria Inês – a anfitriã do ferry – que anuncia uma happy hour especial: “En este momento el Señor Pollo está ofreciendo Pisco Sour en el bar del salon comedor. Por solo mil pesos pruebe la bebida más popular de Chile”.
A noite terminou mais animada que nunca.
2º Dia de Navegação
05h45 – Puerto Eden / Región de Magallanes y Antártica
Acordámos já em Puerto Eden, um porto piscatório cuja única ligação fiável à civilização é o barco da NAVIMAG.
Situado na proximidade da Ilha de Wellington, Puerto Eden é o último bastião do grupo étnico Qawéshkar, formado pelos trinta derradeiros indígenas originários da Terra do Fogo.
Como outros, ao longo dos tempos, este grupo foi perseguido e desenraizado da sua cultura pelos colonos e governos chilenos. Mais recentemente, passou a ser protegido e subsidiado. Segundo os vários chilenos que pudemos ouvir, será difícil a situação inverter-se.
Por volta das 14h, o navio entra em mar aberto. Começamos a sentir o intensificar de um balanço que prenuncia sarilhos marítimos. Informam-nos que esta é a zona ideal para avistar baleias e lobos-marinhos.
A maior parte dos passageiros já só anseia por atenuar os sintomas do enjoo.
18h45 – Golfo de Penas / Region de Aisén
Apesar da tormenta, o jantar é servido à hora certa. Em vez dos habituais dois turnos repletos de gente, apenas umas poucas mesas estão ocupadas pelos felizardos imunes ao enjoo.
Nos corredores e camarotes reina uma agonia generalizada que sentimos agravar-se. À medida que as ondas aumentam, o navio, até então, apenas balouçante, passa a ser sacudido pelo embate violento das vagas no casco. Além do sofrimento físico, instala-se o medo.
Devido ao balanço, a inclinação dos beliches (principalmente dos superiores) aumenta. Torna-se tal que quem está deitado já só evita cair a agarrar-se com determinação à cabeceira. Ao mesmo tempo, os beliches da camarata central, soltos, batem com estrondo nas paredes.
Com a bonança matinal, levantam-se, queixosos, os muitos enjoados a bordo e inteiram-se dos restantes estragos: um camião que resvalou contra a casa das máquinas; um potro que morreu esmagado pelo peso dos cavalos desgovernados; os beliches da camarata central destruídos; muita loiça partida e comida entornada.
Mais tarde, o comandante deixou escapar que aquela tinha sido a tempestade mais terrível que já tinha enfrentado no Golfo de Penas.
3º Dia de Navegação
13h45 – Golfo de Corcovado/ Región de Los Lagos
Deixada para trás a zona de canais da Bahia Ana Pink e Pulluche, entre o continente e a mítica ilha de Chiloé, o novo golfo brinda os passageiros com ondulação mais suave. Avistamos baleias ao longe, mas é o vislumbre do vulcão Corcovado, com o seu cume nevado, a 2300 metros de altitude, que centra as atenções.
Aproxima-se Puerto Montt. À boa moda de mochileiro, muitos viajantes ainda não têm decidido para onde seguir após o desembarque.
Surgem planos improvisados para a continuação das viagens e as trocas de moradas e e-mails prosseguem mesmo após o jantar, partilhados por europeus, americanos, australianos e neozelandezes, por guatemaltecos, israelitas, sul-africanos, chineses e singapurenses, entre outros.
O convívio aberto de quem viveu uma verdadeira aventura dá lugar a festa. A sala – entretanto convertida em pista de dança – fica à mercê dos passageiros e pessoal de bordo mais bem disposto. A noitada, improvisada, mas genuína acaba por ser de arromba.
Por volta das 10 da manhã do dia seguinte o barco atraca em Puerto Montt e tem início o desembarque.
Primeiro, os passageiros, e depois, os camiões e o gado. Três dias de navegação depois, chegávamos, por fim, ao porto de destino.