Amanhece mais um dia, a caminho do final do Verão do sul mediterrânico de África.
A forte evaporação das águas que Roma tratava por Mare Nostrum, reforça um véu celeste sobrecarregado de humidade. Mantém a ilha num casulo de aquosidade, num afago azul-abafado mais expectável a latitudes tropicais.
Avançamos ao longo do mar retido e do pântano entre a costa norte da ilha e a península de Ras R’mal, apontados à capital Houmt Souk.
Constatamos que o vento que sopra de leste, sobre o litoral e que propulsiona uma multidão de kitesurfers, evita uma panela-de-pressão estival, de outra forma, cruciante.
Afinal, também estamos às portas do grande Deserto do Saara.
Os comerciantes do “bairro do mercado” sabem bem com o que devem contar. Em dias normais, sentem a temperatura subir aos 30º ou um pouco mais para, gradualmente recuar para os suaves vintes.
A Vida Mercantil da Capital Houmt Souk
Quando o Saara projecta o seu brado para norte, então, Djerba e o Houmt Souk tostam sob poeiras alaranjadas, a caminho dos 50
Prenda-nos um dia normal.
Comerciantes da famosa e garrida olaria da ilha atendem donas de casa djerbianas, assim distinguíveis pelos seus trajes tradicionais Melhfa, também conhecidos por Domiatis.
Compõem-nos chapéus de palha Mdahlla, que coroam grandes véus brancos, raiados de laranja e vermelho, ou grená.
Com os tempos, estas vestes, que se estima originárias de Domiat, povoação egípcia próxima de Port Saíd, sofreram ajustes e improvisos mas, cruzamo-nos, por toda a Djerba, com as versões fidedignas do traje.
Em Houmt Souk, também damos com variações de tecidos e padrões em que até o Mdahlla difere do original.
Uma Panóplia de Trajes. Uns Tradicionais, outros, nem Tanto
De acordo com o seu estatuto de polo turístico, Houmt Souk e, por extensão, outras povoações modernizadas de Djerba, tornaram-se mais multiculturais e tolerantes.
Por estes lados, as jovens tunisinas andam de jeans apertados e conduzem, devagar e até com um braço à janela.
Passam por mulheres em extremos opostos, de outras gerações e/ou sujeitas à rigidez de outras correntes muçulmanas, enfiadas em longos hijabs e até niqabs.
No que diz respeito aos homens, a liberdade é outra. Quase todos trajam roupa ocidentalizada, sem grande critério, t-shirts, camisas, calças e até calções.
Em volta, encontramos uma excepção, em Fatih, um vendedor ancião refastelado sobre uma cadeira de ferro, com a idade marcada por uma barba grisalha entre o seu chapéu taqiah branco e o decote da jilaba que quase lhe cobre os pés.
Deambulamos entre labirintos de louça.
A Arquitectura Peculiar e a Principal Igreja de Djerba
Logo, por ruelas brancas com cercas, varandas e portas de azuis-turquesa.
Outras, degradadas, com as fachadas pouco ou nada caiadas, descascadas pelo tempo que pinturas murais dotam da cor em falta.
Nesse cirandar, ficamos de frente para a mesquita dos Turcos.
Por ali, um morador sougui candidato a guia interpela-nos: “São de onde vocês, Itália, França? Não adivinhei?
Não interessa.
De certeza que são europeus.
Só vos queria dizer que a igreja mais importante de Djerba, fica ali atrás.”
Esta ansiedade por sublinhar e difundir o direito minoritário de coexistir, em Djerba, vem de há muito.
Da Djerba de Odisseu à dos Nossos Dias
Dos confins da mitologia e da história multicultural e multirreligiosa da ilha.
Na sua era, os gregos conheciam os habitantes de Djerba como os comedores de lótus, alimento que sempre abundou nas lagoas e áreas húmidas da ilha, caso da zona prodigiosa e protegida de Bin El Ouedian.
Odisseu, rei de Ítaca, herói da “Odisseia” de Homero, e os seus guerreiros viram-se empurrados para a ilha e lá naufragados por ventos furiosos que forçaram um interregno nas suas aventuras pelo Mediterrâneo.
Consumada a Cristianização dos Romanos, Girba, a cidade da província da Tripolitânia de que derivou o nome Djerba, gerou e acolheu bispos conceituados.
Cerca de oito séculos depois (de 1135 a 1310), a cruzada e expansão cristã dos reis normandos da Sicília abriu as portas à comunidade cristã que subsiste na ilha, descendente de comerciantes malteses e italianos que acabaram por lá se fixar.
As Conquistas e Perdas Aragonesas da Ilha
O assédio dos Reinos Cristãos não se ficou por aí.
Em 1510, Fernando II de Aragão, o Católico, tentou conquistar Djerba ao xeique muçulmano que a controlava, com o objectivo mais amplo de ampliar o controle espanhol sobre o litoral da Barbaria.
A expedição que comandou, provou-se de tal maneira incauta que redundou na morte de vários milhares de soldados. Ficou conhecida como o Desastre de Djerba.
Quando visitamos o forte também conhecido como Borj Ghazi Mustapha, pomo-nos a par desse outro capítulo da história da ilha. De como, os Aragoneses o construíram no final do século XIII.
Como o perderam para os Árabes. E como, duzentos e vinte anos depois de o erguerem, falharam, de forma dramática, a sua reconquista.
Boutiques, lojas de Recordação e Arte de Rua
Passamos por uma boutique de roupa tradicional, embelezada por manequins que a exibem. Dona Radlia, a proprietária, anima-se com a atenção que prestamos ao seu negócio.
Acede a fazer-se fotografar, à laia de manequim de carne e osso e gentil.
Adiante, dois outros donos de lojas conversam, sentados contra a base de nova fachada azul-branca pitoresca, esta, tingida de verde e rosa por uma buganvílea frondosa.
A frente da igreja de São José prova-se, para variar, branca e amarela. Destaca-se, paredes-meias e acima de um muro sulcado por linhas estruturais.
Enquadrada num arco, entre mantas e tapetes à venda, a pintura de uma menina sorridente, irradia felicidade ingénua.
Por aquela altura, alegra apenas um padre que entra e sai mas a horas de culto inspira centenas de cristãos praticantes de Djerba.
Na tarde seguinte, já na aldeia de Erriadh, ajustamos uma incursão à arte do Bairro de Djerbahood com uma segunda, ao fulcro de outra das comunidades minoritárias da ilha, a judaica.
Sinagoga de El Ghriba, no Âmago da Comunidade Judaica Milenar de Djerba
Mais de uma década depois da nossa primeira visita a Djerba, voltamos à sinagoga de El Ghriba. Encontramo-la tão fulcral como antes, a sua arquitectura mourisca, as suas regras e atmosfera mística, intocadas.
Um primeiro funcionário certifica-se de que nos descalçamos e colocamos um solidéu e um lenço a cobrir as cabeças.
Um outro, já à entrada da sala nuclear da bimah, confirma-o, mantem-se de olho nas acções dos visitantes e noutras necessidades do templo, caso da substituição das velas que está incumbido de manter acesas.
Malgrado o interesse superficial da maior parte dos forasteiros, entregues a selfies sem sim, não obstante a relativa juventude do templo, erguido no final do século XIX, a sinagoga de El Ghriba é a mais antiga de África.
Assenta numa raiz histórica profunda e num valor religioso inquestionável tanto para os cerca de mil e trezentos judeus de Djerba, como para o Judaísmo em geral.
A Diáspora da Casta Judaica Cohen
Afiança a sua história oral que os judeus habitam a ilha há mais de 2500 anos em contínuo.
Uma explicação lendária associa-o à fuga dos Sumo Sacerdotes, aquando da destruição do Templo de Salomão de Jerusalém, ordenada por Nabucodonosor II, rei dos Babilónios.
Acrescenta ainda que esses Cohen transportaram consigo, até Djerba, algumas pedras e uma porta do Templo de Salomão. Os seus descendentes guardaram-nas, ao longo dos séculos, e incorporaram-nas na sinagoga de El Ghriba.
Malgrado a difusão desta narrativa, o primeiro testemunho escrito da presença dos judeus em Djerba – uma comunidade que é única devido à abundância de elementos da casta sacerdote Cohen – só foi encontrado em registos do século XI, preservados no Cairo.
Viajemos até uma praia do norte de Djerba e, em simultâneo, às suas origens.
Os Berberes que preferem ser Tratados de Amazigh
Preparamo-nos para um mergulho nas águas tépidas do Golfo de Gabés, com Ras R’Mal, a Ilha dos Flamingos ao largo, quando nos aborda um dos vários proprietários de dromedários que proporcionam passeios pela beira-mar.
O sol está prestes a pôr-se. Preferimos apreciar o fenómeno dentro de água do que sobre o dorso dos camelídeos.
Sem, o dono dos animais, compreende. Pede-nos apenas que o fotografemos. Esse pretexto dá azo a uma conversa animada que nos confirma que, como sempre, nestes casos, nem tudo é perfeito.
“Nós e os nossos antepassados é que somos os verdadeiros nativos daqui!” alega, em detrimento da imposição árabe.
“Vocês, europeus, sempre gostaram de nos chamar Berberes mas esse termo associa-nos a Bárbaros e nós nunca o aceitámos ou usámos.
Para nós, somos os Imazighen, os homens livres do Norte de África.
Eu sou um Amazigh!
Continua a desiludir-nos a maneira como os árabes se esforçam para diluir o nosso dialecto e cultura. Sempre lutarei contra isso!”
Islamismo e a Derivação Islâmica Djerbiana do Ibadismo
Os árabes conquistaram Djerba aos Bizantinos, em 667 d.C., menos de 50 anos antes de se terem apoderado da Península Ibérica.
No processo de conversão religiosa, boa parte da ilha aderiu a uma doutrina espiritual puritana do Islão. O Ibadismo, assim se denomina, divergiu dos principais ramos do Islamismo: o sunismo e o xiismo.
Baseia-se num seguimento sóbrio das fontes ancestrais do Islamismo que, constatamos na simplicidade subterrânea de diversas mesquitas, caso da de Sedouikech, dissimulada, hoje, entre um dos olivais vastos da ilha.
Os ibaditas e as suas mesquitas sempre procuraram passar despercebidos dos inimigos, dos Cristãos, Otomanos e outros durante as distintas eras bélicas.
Nos nossos dias, Djerba renova uma multietnicidade e coexistência religiosa de que se pode continuar a orgulhar.
COMO IR:
Para mais informações e reservas consulte a sua agência de viagens e solicite o produto Egotravel.