À margem da descontracção coreana, da vida nocturna animada e da crescente sofisticação da capital, há uma atmosfera militar em Seul a que é complicado escapar.
Mal camuflados no ambiente urbano, os soldados sul-coreanos e norte-americanos surgem um pouco por toda a parte e concentram-se no vasto Memorial de Guerra Coreano, onde descobrem o passado do conflito a que foram entregues e se fotografam entre aviões, helicópteros e tanques desactivados.
Mesmo se sintomática, esta actividade ligeira pouco diz do velho confronto entre as Coreias que dilacerou o país original e se prolonga e ameaça aniquilar as nações artificiais que dele sobraram.
Sheung Lee e Alex. Os Anfitrões Providenciais de Seul
Sheung Lee, a nossa anfitriã em Seul trabalha numa editora até tarde. Chega a casa de rastos e sem tempo ou paciência para grandes dicas.
Já Alex, um seu amigo singapurense polido visita-a com frequência. Num quarto repleto de autocolantes de Winnie The Pooh, disserta sobre os temas sul-coreanos mais fortes – da “milagrosa” couve kimchi às populares cirurgias a que as coreanas recorrem para aumentar e ocidentalizar as suas pálpebras.
Faz também questão de nos explicar ao pormenor o que não podemos perder na cidade. Sheung Lee ouve da sala e não resiste a participar, malgrado as olheiras e outros sinais de exaustão: “E a DMZ, Alex, estás-te a esquecer da DMZ. Eles que vão já amanhã bem cedo. Tem ainda mais piada a seguir ao Memorial da Guerra.”
É assim que muitos jovens sul-coreanos acabam por falar do lugar. Como uma atracção aberrante. Uma espécie de parque temático militar que, apesar de poder ditar as suas vidas para o bem e para o mal, nem por isso deve ser levado demasiado a sério.
Não havia porque desconfiar do conselho espontâneo de uma nativa. Assim sendo, na madrugada seguinte entramos, ainda ensonados, no autocarro que conduzia a visita. Em três tempos, saímos do centro de Seul em direcção a norte e ao famoso paralelo 38.
A Génese da DMZ nos Confins da Guerra Fria
Pouco antes do fim da 2ª Guerra Mundial, a Coreia continuava ocupada pelo invasor nipónico que aumentava o poderio do exército imperial com recurso ao recrutamento forçado de coreanos.
De forma tal que, em Janeiro de 1945, os Coreanos representavam 32% da força laboral japonesa. Em Agosto desse ano, as duas bombas atómicas lançadas pelos E.U.A. sobre Hiroxima e Nagasaki apressaram a capitulação dos agressores e o fim do conflito.
Na Conferência de Potsdam, sob pressão da nova ameaça soviética, os Aliados deliberaram a divisão da península. Contra o que havia sido estabelecido na Conferência do Cairo, fizeram-no sem consultarem os coreanos.
No fim de 1945, após vários episódios político-militares, os EUA e União Soviética partilhavam já a administração da Coreia. Esta intrusão levou a frequentes revoltas dos coreanos.
O processo terminou com a divisão política do país em duas zonas rivais separadas pelo Paralelo 38. Uma, a norte, comunista, validada pelos soviéticos e pela China. E outra, a sul, nacionalista, defendida pelos E.U.A.
Os planos de invasão do sul do líder norte-coreano Kim Il-sung obrigaram os Estados Unidos a mobilizar de novo as forças aliadas pan-mundiais para suster o alastramento da esfera comunista. A Guerra da Coreia precipitou-se.
O Avanço e Recuo que Dividiu as Coreias sobre o Paralelo 38
De Junho de 1950 até 1953, ambos os lados avançaram e recuaram acima e abaixo do Paralelo 38. E, ironia das ironias, após o longo e destrutivo conflito, uma vez decretado o armistício, estavam muito próximos das posições originais.
Renovaram-se, então a Coreia do Norte (RDPC) e a Coreia do SUL (RC) separadas por uma DMZ coreana, um território de ninguém entre duas fronteiras fortemente militarizadas.
Paramos pela primeira vez junto ao terceiro de quatro túneis de infiltração escavados pela Coreia do Norte que, quando confrontada com a sua descoberta pelo sul, afirmou servirem para extracção de carvão, apesar de ali não existir carvão.
À medida que avançamos na semi-penumbra do interior, diverte-nos a explicação da guia excêntrica de que as manchas de negro que vemos nas paredes foram também elas obra dos norte-coreanos que tingiram o granito escavado de forma a ilustrar a teoria.
Dorasan. A Estação Ferroviária de Que Nem o Sonho Partiu
Segue-se uma passagem pela estação de comboio de Dorasan que em tempos ligou o norte ao sul mas que foi desactivada quando os norte-coreanos fecharam aquela fronteira, após acusarem o sul de alimentarem uma política confrontacional.
Entre as imagens expostas, destacam-se, ali, as da visita de um Presidente Bush filho visivelmente intrigado. E, sobretudo, a de um painel gráfico e colorido que expõe linhas ferroviárias asiáticas e europeias com partida daquela estação e da Península Coreana.
É um sonho que a Coreia do Sul ainda alimenta, apesar de o orgulho do regime comunista continuar a barrar as suas ligações terrestres.
Dora e o Vislumbre Nevoento da Coreia do Norte
A derradeira paragem da visita à DMZ fazemo-la junto ao observatório de Dora, um dos inúmeros pontos de que o exército sul-coreano controla os acontecimentos a norte.
Os militares dominam o lugar. Os militares e civis presentes dedicam-se a espreitar a Coreia do Norte pelos monóculos instalados. Por essa altura, uma forte névoa deixa perceber apenas o poste gigantesco (terceiro maior do mundo com 160m) de que esvoaça uma bandeira norte-coreana que nos afiançam pesar cerca de 270 kg.
Percebem-se também gradeamentos e muros longínquos. E edifícios perdidos numa vastidão de tom castanho, seca e inóspita.
São os fantasmas arquitectónicos de Kijong-do, uma aldeia norte-coreana de paz ou de propaganda, como lhe prefere chamar o Sul.
A Misteriosa Miragem de Kijong-do
O regime norte-coreano assegura que a aldeia aloja uma quinta comunal explorada por duzentas famílias. E que é servida por um infantário, escola primária e secundária e um hospital.
A observação cuidada a partir da fronteira sul-coreana permitiu concluir tratar-se, na realidade, de uma aldeia Potemkin construída em 1950 com grandes custos com o verdadeiro propósito de incentivar a deserção dos sul-coreanos para o norte.
E de abrigar os soldados que asseguram a vasta rede de artilharia defensiva de fortificações e bunkers ao longo da fronteira. É, aliás, a única povoação norte-coreana detectável a partir do sul da DMZ.
Como se não bastasse a fraca visibilidade, é proibido fotografar ou filmar para diante de uma Photo Line bastante recuada face ao limiar da plataforma, pintada a amarelo sobre o solo.
Essa limitação impede os visitantes de fazerem qualquer registo do que está para o outro lado.
Por aparente ausência de alternativas, submetemo-nos aos regulamentos mas um jovem casal resolve improvisar. Ela trepa para as cavalitas do namorado. Posicionada bem mais acima face ao muro, aponta uma máquina compacta ao norte e começa a disparar.
Por momentos, o atrevimento diverte os soldados sul-coreanos de guarda que, por certo, já o presenciaram antes. Não tarda, cumprem as suas instruções e obrigam o casal primeiro a desfazer a acrobacia, depois, a apagar as fotos.
Dali, qualquer passagem para norte seria definitiva. Ou, no mínimo, muitíssimo problemática.
Assim o provaram duas jornalistas norte-americanas capturadas pela Coreia do Norte e salvas apenas devido à admiração do ditador King Jong Il pelo ex-presidente Bill Clinton.