Ainda não eram 8h30 quando entrámos no parque nacional Jade Dragon Snow Mountain.
Metemo-nos na cabine do teleférico. Ascendemos aos 4600 metros do maciço montanhoso mais elevado da província de Yunnan. Ficamos a mil metros do seu pico supremo, o Shanzidou.
Mesmo assim, as condições meteorológicas depressa se provaram adversas a qualquer exploração ou contemplação mais demorada.
Um vento furioso intensificava o frio que sentíamos na cara e no corpo e impedia-nos de caminhar direitos sobre o passadiço instalado na encosta nevada.
Sofremos a bom sofrer para o percorrermos de alto abaixo.
E qual não é o nosso espanto quanto damos com dois monges budistas do Sudeste Asiático enrolados nas suas habituais túnicas amarelo-torradas, ambos com gorros a proteger as cabeças, mas, nos pés, apenas sandálias e meias.
Nem os religiosos, com a sua fé, nem quem quer que fosse aguentou muito mais tempo exposto à ira da montanha.
Tal como vários outros visitantes enregelados, mal regressámos à estação base do teleférico, recuperámos a bebericar chocolate quente e viajámos uns poucos quilómetros até a um recinto numa rua de nome Guodahuma, junto à cidade velha de Lijiang.
Ali, dezenas de autocarros, minibuses, carrinhas e outros veículos largavam passageiros, na sua maioria chineses excitados pela evasão e diversão em que se viam.
Seguimos a corrente humana para o interior de uma espécie de anfiteatro que, em vez de um mero palco, tinha, do lado oposto das bancadas, um grande paredão vermelho disposto em socalcos subtis.
Impressions, Lijiang, a Cultura Naxi, Yi, Bai e Mosuo em Modo Monumental
Estávamos a 3500 metros de altitude. Como horizonte e fundo natural víamos a mesma Jade Dragon Snow Mountain de onde tínhamos chegado.
A multidão ansiosa demorou uma eternidade a acomodar-se. Ignorou por completo as insistentes tentativas de proibição dos funcionários do recinto e armou-se de máquinas de fotografar e de filmar.
O espectáculo não aguardou pelo sossego da plateia.
Teve início com uma apresentação vídeo exuberante. Uma vez terminada, entraram em cena dezenas de jovens figurantes e actores em trajes tradicionais de que se destacavam coletes brancos felpudos. Interagiam com uma locução masculina, em mandarim, de tom quase militar.
De forma cuidadosamente coreografada, recrutou mais de quinhentos nativos de distintas aldeias e vilas, cerca de cem deles, a espaços, sobre outros tantos pequenos cavalos.
Ou, no caso das mulheres, com enormes cestos tradicionais cheios de chá às costas.
Através desta troupe, o espectáculo de Zhang Yimou exibia as peculiaridades dos modos de vida das minorias Naxi, Yi, Bai e Mosuo, um dos raros grupos étnicos matriarcais sobreviventes na China.
Os figurantes percorriam os socalcos em filas graciosas até que os preenchiam por completo ou apenas a linhas e colunas escolhidas a dedo pela equipa de Zhang Yimou.
Qualquer que fosse a disposição que assumissem, o espectáculo beneficiava da sumptuosidade dos picos nevados da montanha Yulong por detrás e deixava o público em êxtase.
Mas as “Impressions” de Zhang Yimou – realizador que conhecemos por cá de filmes como “Milho Vermelho”, “O Segredo dos Punhais Voadores” e “Herói”, entre outros – estão longe de agradar a todos.
Se as cerimónias de abertura e fecho dos Jogos Olímpicos de Pequim de que foi co-autor tiveram os seus detractores, com os seus espectáculos regionais e de temporada não foi diferente.
A primeira impressão de Yimou: “Impression: Liu Sanjie” teve enorme sucesso e instigou-o a criar outras. Anos depois, políticos locais continuam a acusá-lo de irresponsabilidade como fez o vice-mayor duma cidade da província de Hunan, no artigo de opinião “Zhang Yimou não é nenhum salvador; Que não crie “Impressions” às cegas.”
A longa crítica incluía o seguinte trecho: “A coberto do isco de investimentos colaterais massivos, Zhang Yimou conseguiu que diversos lugares turísticos da China competissem para que neles instalasse as suas produções.
Isto, malgrado os valores astronómicos requeridos para acolher os espectáculos (n.a: 80 a 400 milhões de euros), dos bilhetes (n.a: mais de 25€) e das comissões de Yimou e sua equipa.
No entanto, o festim de luz e sombra que capta o olhar não deixa nada do espectáculo para trás após a sua temporada de exibição.”
Este mesmo autarca apontou ainda a Yimou o facto de ser responsável pelas enormes dívidas acumuladas pelos governos locais nos casos cada vez mais numerosos em que as suas “Impressions” se revelam fracassos ou sucessos desgastados pelo tempo e pela repetição exaustiva da mesma fórmula.
De acordo com os padrões chineses, a própria vida de Yimou parece ir de encontro a esta denúncia.
Em 2014, o realizador teve que pagar uma multa de cerca de um milhão de euros devido a nascimentos desautorizados e respectiva “manutenção social”, isto por ter gerado sete filhos com quatro distintas mulheres e, assim, violado a Política do Filho Único com que a China procura controlar o crescimento da sua população.
Alguns dias depois, viajámos do norte de Yunnan para leste e instalamo-nos em Yangshuo, uma região de tal maneira famosa pelos seus incontáveis penhascos de calcário disseminados em volta do rio Li, comparáveis aos da montanha de Huang Shan e que muitos dos restaurantes chineses por esse mundo fora têm ilustrações destes cenários a decorá-los.
Explorámo-la de barco e de bicicleta. Numa das noites de pós-exploração, aproveitámos ainda para espreitar a primeira das “Impressions”.
“Impression Liu Sanjie” teve estreia em 2004. Assenta numa lenda do povo Zhuang – o maior dos grupos étnicos minoritários da China – em redor de uma mulher (Liu Sanjie, a terceira irmã da família Liu) desde muito cedo dotada de um canto magnífico.
Liu Sanjie conseguia, com a sua voz, acalmar a ira e animar os espíritos das pessoas em redor de si. Era invejada por Mo Huairen, um bandido que dela queria fazer sua concubina.
Está escuro como breu quando nos sentamos à beira do rio, desta vez, com os enormes rochedos iluminados ao longe, cinzentos mas salpicados de verde vegetal para lá da silhueta de uma floresta marginal de bambu.
A luz ténue também reflectida na superfície do rio não tarda a ser quebrada por feixes coloridos.
A protagonista Liu Sanjie aparece a cantar sobre um pequeno barco tradicional.
Gera uma onda de entusiasmo no trabalho fluvial e na vida de centenas de barqueiros de chapéu cónico simbolizada pelas ondas e outros movimentos produzidos quando estes fazem oscilar longas faixas vermelhas de plástico.
Tal como em Lijiang, a plateia não sossega e comenta entre si o enredo que prossegue com recurso a mais de seiscentos figurantes da zona – a maior parte pescadores de cinco aldeias das margens do Li – suas embarcações e utensílios.
Uma iluminação sofisticada produz os efeitos e sensações que encantam o público.
À medida que o rio flui, compreendemos como, aliada à localização excêntrica do espectáculo e à mestria da navegação tradicional dos figurantes, justificou o primeiro dos grandes sucessos de Yimou.
A grande febre chinesa das “Impressions”, essa, não parece ter fim.
Imune a qualquer criticismo, o realizador e produtor continua a instalar novos espectáculos em paragens visualmente merecedoras ou simplesmente mais abastadas da vasta China.