O percurso que cumprimos só vem reforçar a noção de quão estranha e extrema é a presença de Ushuaia neste confins quase Antárcticos. Bastam uns poucos quilómetros da ruta 3 para o casario da última das cidades dar lugar à natureza crua da Terra do Fogo.
A via começa por se internar na faixa de Argentina espartilhada entre o grande Lago Fagnano (a norte) e o Canal Beagle (a sul).
Aproveita uma abertura mais ampla na sequência quebrada dos Montes Martial e apanha boleia da planura fluvial do Larsiparsabk, um rio que nasce no sopé da cordilheira e se contorce vezes sem conta até que, uns 60 km para leste, desagua no Beagle.
A Viagem de Ushuaia, ao Longo do excêntrico rio Larsiparsabk
Alimentado pelo degelo constante dos picos nevados, o curso do Larsiparsabk é pouco contido. Aqui e ali, extravasa sobre a lisura exuberante em redor. Irriga turfeiras multicolores e pântanos repletos de troncos ressequidos de florestas que sucumbiram a sucessivas inundações.
Têm o seu quê de extraterrestre as terras por que nos movemos.
Confrontados com a abundância de castores e dos diques que os roedores incansáveis com eles erguem, os moradores chamaram-lhes castoreras. A influência dos animais na nomenclatura da região não se fica por aí. Uns quilómetros para diante, passamos na base de um tal de Cerro Castor. Chegámos no Outono destas paragens austrais.
Os primeiros nevões estão por dias. Mais para diante no ano, o Castor e as suas vertentes brancas irão transformar-se em resort de desportos de Inverno e entreter as gentes esquiadoras da região.
Repetem-se as turfeiras. Sucedem-se os pauis e os charcos, ora a norte ora a sul dos meandros descontrolados do Larsiparsabk. Vemo-los ensoparem a paisagem e o percurso até que, a determinada altura, a ruta 3 dá lugar à Ruta Provincial J. Toca um braço do Canal Beagle e volta a internar-se no já quase bico de bota da Terra do Fogo.
As arboles Bandera como prenúncio da estancia Harberton
Os cenários mudam. Em vez dos excessos aquáticos, é uma inesperada aridez ventosa que os torna inóspitos. Sentimos as rajadas vindas do Pacífico varrerem o cimo de um alto suave.
São os ventos de há muito, os vendavais milenares constantes que tornam infernal a navegação de leste para oeste a sul do Cabo Horn, logo abaixo no mapa, os mesmo que valorizaram a passagem protegida de quase 600 km que Fernão de Magalhães achou e navegou em 1520.
A força destes ventos é tal que os arbustos pouco se desenvolvem e a erva tem um tom de amarelo desmaiado. Daquele ermo rejeitado pela comum vegetação, algumas lengas (nothofagus pumilio) intrépidas fizeram a sua nação. Saímos do carro. Apreciamo-las com a atenção que nos mereciam.
Em vez de hirtas, estas árvores submetem-se ao vento e fazem os troncos e galhos crescerem na horizontal, como longos penteados laterais em sustentação. Os argentinos tratam-nas por árboles banderas. Traduzem na perfeição o mote dos colonizadores pioneiros da Terra do Fogo: vergar sim. Nunca quebrar. Estávamos na iminência do mais antigo e notório dos exemplos.
A Ruta J serpenteia por alguns quilómetros adicionais. Contorna outros dois braços de mar do Canal Beagle. Entramos numa península retorcida. Encontramos, por fim, a Estancia Harberton na costa oriental dessa península, mais abrigada do vento, se é que isso existe nestas paragens.
Por fim a Remota Estancia Harberton
Nuvens arroxeadas pela humidade passam a grande velocidade sobre os prados verdejantes. Filtram a luz já de si suave daquelas latitudes extremas e emprestam ao lugar uma atmosfera bucólica que nos parece anestesiar os sentidos.
Nos seus tempos áureos, muitos milhares de ovelhas salpicavam os pastos e garantiam rendimentos nunca sonhados pelos proprietários.
Desde há duas décadas, Tommy Goodall – o tetraneto do fundador – seguiu a onda que invadiu a última das cidades e converteu a estancia ao turismo. Conservou apenas alguns exemplares de ovinos com o fim de recriar o passado e mostrar aos visitantes as técnicas ancestrais de pastoreio e tosquia.
O Súbito Declínio da Era Ovina
Espreitamos para dentro de uma janela com vidros partidos. No interior sombrio, vislumbramos uma grande pilha de peles lanzudas. Cá fora, junto a uma paliçada que serve de curral, uma outra pele, ainda ensanguentada, contrasta com a erva viçosa em que assenta.
Em vez dos ovinos antes abundantes, gansos e patos assumiram o protagonismo faunístico da estancia. Cirandam, elegantes e soberbos. De tal forma comprometidos com o lugar que nem a nossa aproximação os faz mudar de rumo.
Passado, não tarda, um século e meio, os edifícios (casa, celeiro, estábulo, vedações) todos de madeira ou chapa pintada, coroam a paisagem como que a celebrar o triunfo da obstinação sobre a crueza dos elementos. Também um velho camião Power Wagon verde-enferrujado resiste, estacionado num tempo bem distante do dos seus melhores dias.
Thomas Brides: missionário e fazendeiro pioneiro
Thomas Bridges, o fundador da estancia foi o primeiro a instalar uma fazenda nos confins da Terra do Fogo. Mas não foi o primeiro a levar a sua vida para a província.
Em 1869, missionários da South America Mission Society britânica fixaram-se na região com propósitos estritamente religiosos. Waite Hockin Stirling, o pioneiro, chegou por sua conta e estabeleceu-se entre os indígenas Yamaná. Outros se lhe juntaram. Thomas Bridges foi um deles.
A história de Bridges não podia ser mais insólita. Ainda bebé, foi encontrado abandonado junto a uma ponte, em Inglaterra, e viu-se adoptado por um missionário. Em 1856, com apenas 13 anos, Bridges foi levado pela sua família adoptiva para as ilhas Falkland (Malvinas), para participar no estabelecimento de uma estação missionária agrícola.
Naquele arquipélago austral, aprendeu a falar yaghan, o dialecto dos nativos da Terra do Fogo, muitos deles entretanto deslocados para as Falkland para serem treinados em distintos trabalhos.
Por altura da sua primeira viagem à Terra do Fogo, em 1863, Bridges já comunicava com os nativos. Essa sua virtude foi crucial no assentamento de uma nova missão anglicana em Ushuaia. Num ápice, estimulada por alguns casamentos, a população aumentou. A primeira criança europeia a nascer na colónia, foi um dos filhos de Thomas Bridges.
O Papel Fulcral dos Bridges no Assentamento de Missionários e outros colonos
Os Bridges mantiveram sempre um papel fulcral na integração dos recém-chegados entre os indígenas. Uma das divisões da primeira casa que construíram em Ushuaia foi, aliás, ocupada por um casal Yamaná.
Mas a era de proselitismo tranquilo de Ushuaia não durou o que os Bridges e restantes pioneiros contavam. A partir de 1880 propagaram-se rumores de que os campos em redor de Ushuaia eram ricos em ouro.
Inúmeros prospectores, auxiliares, negociantes e suas famílias afluíram à cidade apenas para se desiludirem. Uns anos mais tarde, começou a ser construído o Ferrocarril Austral Fueguino, hoje denominado Tren del Fin del Mundo.
Em 1884, Bridges acolheu a primeira das expedições argentinas oficiais à Terra do Fogo, levada a cabo com o fim de lá instituir uma subperfeitura.
Decorridos apenas dois anos, em jeito de recompensa pelo seu trabalho com os nativos, pelo apoio a marinheiros naufragados nas imediações do Cabo Horn e a cientistas, exploradores e a outros colonos, recebeu do Congresso Nacional Argentino um talhão de terra e a cidadania argentina.
O Abandono do Proselitismo e o Retiro Rural na Longínqua Harberton
Em desacordo com a missão anglicana que o enviara para o Novo Mundo, demitiu-se das suas funções para se estabelecer numa estancia. Chamou-lhe Harberton, segundo o nome da vila inglesa em que nascera a sua esposa.
Quando por lá passámos, a propriedade pertencia a Will e Lucas, bisnetos de Thomas Bridges. Era gerida por Thomas D. Goodall, um outro bisneto (4ª geração).
Este e a sua família habitavam a casa original dos Bridges, erguida com óbvia influência arquitectónica das cottages de campo britânicas, com excepção para os ossos de maxilar de baleia dispostos em “A” a fazerem de pórtico e para outros, de partes distintas dos cetáceos que encontramos à beira do Canal Beagle, em jeito de decoração de jardim.
Continuamos a desvendar Harberton. Contornamos uma esquina. Do lado de lá, sobre um alpendre atafulhado de utensílios agrários e pecuários, um funcionário septuagenário munido de um facão corta grandes bocados de carne e prende-os a ganchos pendurados do tecto.
Nas imediações, um outro corta lenha e aumenta a pilha gigantesca com que as gentes de Harberton se aquecerão nos meses vindouros.
A Incrível Resiliência dos Bridges nos Confins da Terra do Fogo
É coisa séria o Inverno da Terra do Fogo. De um momento para o outro a temperatura mergulha para -20º (ou para menos) enquanto o vento chicoteia a paisagem sem misericórdia. A meteorologia poder revelar-se de tal maneira agreste que, sobretudo os visitantes argentinos e chilenos, conhecedores do clima dos fundos dos seus países, se espantam ao constatar que alguém ali decidiu assentar arraiais.
E ao ver como a família Brigdes não só sobreviveu como prosperou, malgrado surtos de febre tifóide, períodos em que a cotação da lã entrou em queda livre, roubo de gado e ataques de cães selvagens. E, apesar de um Inverno em particular, mais recente, tão frio que exterminou 80% do gado e incentivou a aposta da família no turismo há já bom tempo prodigioso em Ushuaia e um pouco por toda a Terra do Fogo.
Incursão pinguinera à Ilha Martillo e um Regresso Diluviano a Ushuaia
Também a Ilha Martillo, situada diante da estancia, se tornou uma atracção. É lar de uma vasta colónia de pinguins-de-Magalhães. Dizem-nos que começaram a instalar-se na praia pouco depois de os rebanhos desaparecerem dos pastos em redor. Mais tarde, uns poucos operadores turísticos foram autorizados a mostrá-los aos forasteiros.
Caminhamos até um dos pontões que serve a fazenda e subimos a bordo de um semi-rígido veloz. Nuns poucos minutos, desembarcamos sobre o cascalho cinzento que cobre o litoral da ilha. Dão-nos uma oportunidade excepcional de nos aproximarmos e fotografarmos os animais.
Habituados às incursões de diferentes navios, os pinguins já não fogem dos humanos como faziam de início. Alguns espécimes, revelam uma paciência que quase se confunde com vaidade fotográfica.
Começamos por estar só nós e os outros passageiros do semi-rígido. Às tantas, dois catamarãs modernos ancoram na iminência do areal. Uma pequena multidão conflui para a proa e, por uns bons 15 minutos, disputa-a e às melhores perspectivas dos pinguins.
Regressamos a Harberton antes de estas embarcações zarparem de volta ao Beagle. Debaixo de um céu que arroxeava a olhos vistos. Quando nos enfiamos na carrinha, já caiam algumas gotas. Cumprimos os 80 km do trajecto de volta a Ushuaia debaixo de uma das chuvadas inclementes típicas dos confins do mundo por que andávamos.