É no topo do morro da igrejinha de Areias que Goiás está, desta vez, em festa.
Os cânticos intensos dos fiéis propagam-se pelo vale circundante. Pairam sobre a mancha uniforme de telha portuguesa que os anos embelezaram.
A honra da celebração vai para Bárbara, a santa protectora dos raios, dos trovões e também dos artilheiros. À laia de provocação, o fogueteiro de serviço solta canas para o céu como se disso dependesse a sua vida.
Os estrondos fazem ricochete nos morros vizinhos de São Francisco, Canta Galo e das Lages.
E, a maior distância, na imponente Serra Dourada. Espantam alguns tucanos que esvoaçam para a segurança do cerrado.
Incontornável e contundente, o anúncio alerta os crentes atrasados que correm, ofegantes, Rua Passo da Pátria e escadinhas da igreja acima. Não é de bom tom perder a bênção da cruz e a procissão há muito que chegou à derradeira paragem.
O mesmo que aconteceu a Goiás Velho como é também chamada, de quando em quando, a povoação.
Goiás Velho: do Arraial de Sant’Anna a Capital Estadual
Esta cidade goiana de vinte e seis mil habitantes teve origem em 1732, no coração do cerrado brasileiro.
Situada sobre os 15º de latitude, sempre fez calor todo o ano em Goiás.
No Inverno – de Maio a Setembro – não chove, o ar é límpido e o céu permanece azulão, polvilhado de pequenas nuvens brancas. “’Tá fazendo um frio de noite!” queixam-se os moradores todos os dias de Julho e Agosto, apesar de a temperatura quase nunca baixar dos 15 graus.
O Verão, que dura os restantes meses, acolhe a época das chuvas, quando está quase sempre nublado e chove com frequência e intensidade, às vezes, surpreendentes.
Cerca de cinquenta anos depois do seu sucesso em Minas Gerais, os bandeirantes que se aventuraram para o interior do Brasil em busca de metais preciosos e escravos, acharam ouro na região de Goiás.
Achado não será o melhor termo. Fazendo fé no que ficou para a história, ter-se-á tratado mais de um acto de ilusionismo.
Em 1682, uma bandeira liderada pelo velho Paulista Bartolomeu Bueno da Silva chegou ao território dos índios Goyaz. Para seu gáudio, os indígenas usavam artefactos de ouro.
Pouco vocacionado para a diplomacia mas perito em crueldade e trapaça, o anhanguera (velho diabo) – como a nação Goiá o haveria entretanto de alcunhar tratou de intimidar os nativos. Incendiou alguma cachaça sobre um prato.
Consciente de que os goiá pensavam ser água, ameaçou-os de que faria o mesmo com todos os rios das redondezas se os índios não lhe revelassem as suas minas de ouro. Três anos mais tarde, apesar de dado como morto, o velho diabo regressou triunfante a São Paulo.
Com ele, viajavam os sobreviventes, ouro e índios escravos de Goiás.
Em 1722, o seu filho homónimo, que sobrevivera à primeira investida, organizou nova bandeira e lançou o arraial de Sant’Anna.
Este arraial marcou, em 1732, o estabelecimento da vila com o mesmo nome, rebaptizada como Vila Boa de Goiaz numa homenagem sarcástica aos habitantes nativos da região, extintos pelos invasores ainda antes do ouro, que só durou até ao fim do século XVIII.
Todas as cidades têm uma história. Goiás parece ser a sua.
Até o epíteto “velho” ajuda a ilustrar o fenómeno. Isto, apesar de parte da população o achar mais depreciativo que necessário (para a distinguir do estado homónimo de que faz parte.
Pouco ou nada mudou desde que se tornou na capital da recém-criada Capitania de Goiás e atingiu o apogeu.
Para a preservação da sua arquitectura peculiar foi decisiva a transferência da capital do estado para Goiânia, em 1937, uma despromoção que a deixou perdida no tempo.
O Casario Colonial que é Património Mundial
Como descreve a UNESCO, que concedeu a Goiás o título de património mundial, em Dezembro de 2001, “ … o seu desenho urbano é um exemplo notável do desenvolvimento orgânico de uma cidade mineira, adaptada às condições da área (…) de uma cidade europeia admiravelmente adaptada às condicionantes climáticas, geográficas e culturais do centro da América do Sul”.
De qualquer um dos seus pontos panorâmicos, com destaque para o campanário da igreja do Rosário ou do morro da igreja de Areias se observam tais atributos.
O casario que sobressai do verde da vegetação tropical é uniforme. Erguidas em adobe, taipa e pau-a-pique, as casas são quase todas térreas. As que fogem à regra têm, no máximo, dois pisos.
São ainda pintadas de branco com excepção para as portas, janelas e molduras cujas cores dependem da disposição dos donos.
Já as ruas, estreitas, invariavelmente cobertas por uma calçada irregular feita de enormes pedras cinzentas, causam entorses frequentes.
Aos poucos, arruinam também os carros dos condutores mais destemidos.
Alguns edifícios públicos destoam em dimensão, com destaque para o Palácio Conde dos Arcos, o hospital e o Quartel do Vinte, de onde partiram soldados do Vigésimo Batalhão de Infantaria para a Guerra do Paraguai.
A espaços, surgem ainda casarões imponentes com brasões senhoriais.
O Museu de Arte Sacra da Boa Morte e a Figura de Veiga Valle
Abençoam-na sete igrejas barrocas, com destaque para a da Boa Morte erguida em 1779 e lugar do Museu de Arte Sacra da Boa Morte, ali instalado desde 1961. O museu expõe inúmeras obras de José Joaquim da Veiga Valle, um prestigiado escultor goiano.
No interior, duas senhoras de idade respeitável limpam e inventariam estatuetas e outras esculturas de arte sacra com alma e coração. Tinham que fazer para toda a tarde. Nessa, e eventualmente algumas das que se seguiam.
Boa parte das obras de que tratavam eram da autoria de outro dos artistas conceituados do estado de Goiás, José Joaquim da Veiga Valle. Veiga Valle, como ficou conhecido, nasceu, em 1806, na cidade vizinha e de alguma maneira rival, de Arraial da Meia Ponte, hoje a famosa Pirenópolis.
Em Meia Ponte, desempenhou um papel protagonista no governo e na administração da cidade. Foi vereador, juiz, militar. Mais tarde, Veiga Valle integrou a associação de fiéis católicos da Irmandade do Santíssimo Sacramento.
Participou em sucessivas tarefas de douração dos altares da igreja matriz da cidade. Terá sido nessas ocasiões que ganhou maior intimidade com os recheios das igrejas e sentiu a inspiração autodidacta de os criar.
À medida que aperfeiçoava a sua arte, as suas esculturas em madeira de cedro conquistaram admiradores e clientes fiéis. E lugar garantido nas naves de Meia Ponte.
Algum tempo depois, Veiga Valle mudou-se para a Vila Boa de Goiás. Também as igrejas de Goiás Velho acolheram as suas obras.
Seria de esperar que Veiga Valle as tivesse criado em estilo neoclássico mas, ao invés, manteve os óbvios trejeitos do barroco.
Os estudiosos de arte sacra imputam-no ao facto de, quer Meia Ponte quer Goiás, estarem a milhares de quilómetros das grandes cidades coloniais brasileiras.
E, como tal, à margem das correntes recém-chegadas da Metrópole.
Receios Fundados com os Roubos de Arte Sacra
Quando entramos no Museu de Arte Sacra da Boa Morte, ambos armados de máquinas fotográficas, as duas senhoras de serviço deixam transparecer um pânico imediato. “Mas vocês querem essas fotos para quê?
A gente cá em Goiás não gosta disso não. Vocês sabem que já teve vários assaltos a igrejas e fizeram desaparecer alguma arte que era mais que sagrada! Aí, se vocês fotografam e divulgam, vamos ter ainda mais problemas.”
Compreendemos a sua aflição. Não era sequer a primeira vez que nos deparávamos com preocupações do género. Com calma, reiteramos que éramos portugueses e prometíamos que, a serem usadas, as imagens só sairiam em Portugal e apenas em papel, não as disseminaríamos na internet.
Foi o suficiente para as senhoras se tranquilizarem e nos concederem algumas fotos exemplificativas e uma divulgação de que, mesmo que muitos dos habitantes resistam a admitir, a cidade carece.
Não é só na arquitectura e património histórico que está o passado de Goiás Velho.
Sem os postais, ímans, bonecos e restantes brindes que infestam outras cidades coloniais badaladas do Brasil, uma miríade pequenos negócios genuínos, lucram com moderação nos pisos térreos das casas seculares.
Identificamo-los pelos nomes e logotipos pintados nas paredes,
São lojas de tecidos, roupa e de artefactos religiosos, farmácias antiquadas e um ou outro estabelecimento mais moderno que fornece os recém-chegados telefones celulares, ou aluga o último sucesso imperdível de Holywood.
Ao mesmo tempo, percorrem Goiás empresários remediados como o engraxador ou o vendedor do bilhete da lotaria.
Seja qual for a actividade, com o fim da tarde, os negócios fecham portas e caixas.
Os moradores regressam aos domicílios. Reúnem-se à entrada das igrejas, a aguardar o início da missa ou, nas esquinas, à conversa.
O Passado de Goiás, Por todo o lado
Contornamos uma peladinha aguerrida a ter lugar no relvado da Praça Brasil Caiado. Junto ao seu enorme Chafariz de Cauda, deparamo-nos com um adolescente que brinca com um cachorro.
Entre festas ao “Chacal”, conversa puxa conversa, Sebastião acaba por nos informar: “Eu sou tetraneto do Bartolomeu Bueno (filho), o fundador da Vila Boa. Vivi toda a vida aqui e a minha família também. Nunca saímos de cá.”
Mais abaixo, é Zé Pires – com, no mínimo, o triplo da idade de Sebastião – que nos aborda: “Tão fazendo matéria é? Essa cidade ‘tá cheia de estórias mesmo! (…)
Tem muita gente que ainda tenta a sua sorte com o ouro, por esse cerrado fora.
Às vezes aparece até aí no Rio Vermelho, só que é quase sempre só um niquinho sem valor! Não dá p’ra levar p’rá Fundição”.
E ata o seu cavalo a uma árvore para melhor puxar pela memória.
A História Bem Viva de Goiás
Quando não são os testemunhos materiais, a própria população remete para a era mineira de Goiás.
Sebastião é descendente dos Paulistas; Zé Pires, provavelmente dos Emboadas, os imigrantes que vieram de Portugal atraídos pelo ouro de Minas Gerais e se deslocaram para o centro do Brasil.
São ambos brancos. Mas a maior parte dos habitantes da cidade é negra ou mulata, com sangue dos escravos africanos recrutados para trabalhar na mineração.
Vive e convive nas mesmas casas humildes construídas pelos seus antepassados com a ilusão da riqueza, uma ilusão que, em tantos casos, o fim precipitado do ouro e os preços altíssimos dos produtos trazidos de longe, transformou em pesadelo.
Para muitos vilaboenses, a situação ainda não melhorou, como o Brasil, em geral.
A imigração do estado de Goiás para Portugal – onde tantos têm ascendentes familiares que desconhecem – e outros destinos europeus e do mundo acentua-se. Goiás contribui com os seus números.
E a história reverte-se.
Outros habitantes da Vila Boa lá se vão safando com as artes em que se destacam.
Em frente à Rádio FM Vilaboa, ensaia, compenetrado, o Trio Raio de Sol.
Compõem-no por Elsimar no violão, António Robertinho na viola e Magela no acordeão. Lá dentro, no pequeno estúdio, actua já o trio Nascente, de José Rito, Renan e Juan Mineiro.
A vida faz-se destas oportunidades.
Mesmo que a rádio não pague a actuação, quem sabe se a promoção não os leva a algum festival de sertanejo.
Goiás Velho: Sem Pressas nem Complexos
Goiás está longe de ser turística. É verdade que durante a Semana Santa e, principalmente a Procissão do Fogaréu – única no Brasil – a cidade fica à pinha para assistir à reencenação da perseguição dos farricocos a Cristo.
E o mesmo acontece com a chegada do FICA–Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, uma das maiores mostras temáticas do mundo.
Além destas ocasiões e celebrações, só a passagem de ano atrai um número significativo de visitantes, provenientes das cidades vizinhas, Brasília, Goiânia, Anápolis, Pirenópolis.
Ao contrário das “irmãs” de Minas Gerais, Tiradentes, Diamantina e Ouro Preto que são intensivamente promovidas e recebem milhares de visitantes brasileiros e estrangeiros interessados, Goiás continua a pagar o preço da interioridade. Permanece na sombra do seu título de Património Mundial.
Enquanto não se faz justiça, a cidade trata da herança que recebeu.
E desfruta da sua vida genuína e sedativa.
Assim que o sol se põe, os velhos lampiões de luz dourada acendem-se numa sequência desconexa.
Goiás passa para o seu modo nocturno. Rende-se a uma paz só quebrada pelos foguetes ou, caso seja tempo de comemoração, pelos cânticos.
No dia seguinte, os vilaboenses despertam com o alvorecer para o ritmo tranquilo de trabalho que o clima do Planalto Central ajuda a marcar.