Gozo, Malta

Dias Mediterrânicos de Puro Gozo


O Buraco Azul
O buraco azul, uma lagoa natural na costa noroeste da ilha de Gozo.
Gozo Rural
Minifúndios ressequidos pelo Verão em redor de Gharb.
Velha cabine quase à sombra
Cidadela, Vitoria, ilha de Gozo, Malta
Casario Vitorioso
Casario de calcário de Victoria, ilha de Gozo, Malta
A Praça de Gharb
Praça central de Gharb, uma das povoações com arquitectura tradicional de Gozo.
Decoração bélica
Pormenor de fachada com inspiração bélica de Gozo.
Baía de Ramla
Maré vazia numa enseada junto à Ramla, no norte de Gozo.
Abençoado Mediterrâneo
Banhistas refrescam-se no mar cristalino da lagoa de Comino.
Catedral de Saint George
Fachada da catedral de Saint George mais iluminada que o restante casario da cidadela de Victoria.
Do Dia para a Noite
As primeiras luzes acendem-se na cidadela de Victoria
A ilha de Gozo tem um terço do tamanho de Malta mas apenas trinta dos trezentos mil habitantes da pequena nação. Em duo com o recreio balnear de Comino, abriga uma versão mais terra-a-terra e serena da sempre peculiar vida maltesa.

As coisas são como são. Ditaram que, mesmo a ficar atrasados para a partida do ferry, nos desviássemos da estrada principal para uma segunda espreitada sobre a aldeia maltesa do Popeye, do lado de lá da baía de Il-Prajjet.

Éramos donos e senhores de uma infância marcada pelo marinheiro prodigioso, alimentado a espinafres. Ainda nos custava a acreditar o destaque e as edificações de desenho-animado surreais que Malta ali lhe dedicava, encavalitadas numa laje apertada, entre uma falésia de calcário e uma reentrada translúcida, verde-esmeralda do Mediterrâneo.

Por algum tempo, contemplamos a povoação, meio perdidos entre a fantasia e a incredulidade. Fazemo-lo o tempo que a tabela de partidas do terminal de Ic-Cirkewwa nos concedia.

Sobre as nove da manhã, embarcamos no navio destinado a Mgarr, na costa sul de Gozo.

Desembarque em Gozo, Entrada na Casa San Giuseppe, em Tempos de Jacques-Francois de Chambray

A navegação do canal prova-se tão suave como breve. Permite-nos o primeiro vislumbre do ilhéu intermédio de Comino a que estava nos planos voltarmos.

Desembarcamos em Mgarr. Uma ladeira leva-nos a um plano superior da ilha. Pouco depois, encontramos o lugar em que nos íamos instalar. Até então, só tínhamos o nome do responsável: Joseph. Quando nos deparamos com o edifício, constatamos que o pórtico de entrada a identificava como Casa San Giuseppe e que, elevado num segundo plano, se destacava um pequeno campanário.

Joseph Portelli, o anfitrião, abre-nos a porta. Conduz-nos a um átrio principal. Pelo caminho, percebemos que estávamos a dar entrada num pequeno mosteiro ou seminário convertido em pousada.

Com os preços por noite mais religiosos da ilha, atraía sucessivos visitantes como nós, com as finanças sempre a agradecerem toda e qualquer caridade.

Explica-nos Joseph que aquele complexo de configuração monástica chegou a ser o lar de Jacques-Francois de Chambray, embaixador e oficial de justiça da Ordem dos Hospitalários, frequentador da Corte de Lisboa.

Gharb, ilha de Gozo, Malta

Pormenor de fachada com inspiração bélica de Gozo.

Em 1749, o português Manoel Pinto da Fonseca, à data, o Grande Mestre dos Hospitalários, nomeou Chambray Governador de Gozo.

Daí em diante, sob o peso de tal responsabilidade, o francês dedicou o resto sua vida à ilha.

O Passado Tremido mas Resiliente da Ilha de Gozo

As ilhas de Malta eram, então, atacadas com frequência por piratas e pelos inimigos muçulmanos a sul, sempre atentos às melhores alturas de a conquistarem ou tão só saquearem.

Chambray entregou-se de corpo e alma à construção de um forte que protegesse o ponto de desembarque e de entrada natural de Gozo, a enseada de Mgarr em que a havíamos pisado pela primeira vez.

Ainda não tínhamos reaberto as malas ou deixado sequer a costa sul, Gozo já nos impingia a sua história intensa. Maravilhados, como sempre andámos na irmã mais velha de Malta, apressamo-nos a ajustar-nos ao quarto e a inaugurarmos um périplo rodoviário pela ilha.

O Buraco Azul, Abaixo da Saudosa Janela Dwejra de Gozo

Com o sol a subir para o seu zénite, encalorados, desejosos de sentir alguma frescura na pele e na alma, apontamos ao norte. Cruzamos Gozo até ao litoral escarpado, tornado famoso pela Janela Azul, ou Janela Dwejra, um arco rochoso que, a quase trinta metros de altura, emoldurava o azul do Mediterrâneo e o do céu acima.

Fotogénico, como era, o arco apareceu em diversos filmes com destaque para “Choque de Titans” e o clássico “Conde de Monte Cristo”.

A notoriedade íntegra da Janela Azul terminou, em tragédia, a 8 de Março de 2017. Nesse dia, o vento e as vagas atiçadas por uma tempestade provocaram o seu já temido colapso.

Restava-nos, assim, a atração que há muito ficara com o papel secundário, o Buraco Azul de Dwejra, um dos pontos de mergulho mais populares de toda Malta.

Quando o identificamos, do topo da mesma falésia, partilhavam-no dois ou três banhistas que boiavam, chapinhavam e assim conviviam em puro deleite marinho. Sem aviso, assustou-os a emersão borbulhante de um grupo de mergulhadores a quem, por momentos, se veem forçados a abrir alas.

Buraco Azul, ilha de Gozo, Malta

O buraco azul, uma lagoa natural na costa noroeste da ilha de Gozo.

Aos poucos, mesmo atrapalhados pela parafernália que sempre os acompanha, os mergulhadores debandam. Quando deixamos a vista sobre aquela piscina natural, o Buraco Azul estava uma vez mais entregue à leveza e simplicidade de tanga dos banhistas.

O Campo Rural e Religioso de Gozo, Abençoado pela Igreja Ta Pinu

Do litoral de Saint Lawrence, apanhamos a Triq id-Dwejra para o interior de Gozo.

Na intersecção certa, cortamos para a Triq ta’ Pinu, a perpendicular que nos conduziria ao santuário que lhe havia concedido o baptismo.

A estradinha perde-se num campo de trigo ressequido, de que, aqui e ali, se destacavam alguns cactos opuntia, até eles torrados pelo sol.

A certo ponto, bem mais destacada que os cactos, impõe-se a visão de um templo erguido em pedra calcária. Semi-afundado num declive e de tom amarelado, o templo parecia querer camuflar-se na plantação.

Além de não o permitirem, os seus mais de 60 metros neo-romanescos de altura forçavam a igreja ao azul do firmamento, como que a sublinhar a sua função sagrada de ponte para o céu.

Até 1883, aquela mesma igreja era uma de vários santuários familiares que serviam a fé dos gozitanos. Reza a história que pertenceu aos Gentile.

Na viragem para o século XVII, passou para a posse de um procurador de nome Pinu Gauci, a razão porque ficou conhecida como Ta Pinu (de Filipe). Pinu Gauci investiu na restauração da igreja. Dotou-a de tudo o que carecia para que lá fossem realizadas missas e outros serviços litúrgicos.

Karnmi Grima e a Aparição Gozitana da Nossa Senhora

Mesmo assim, ninguém promoveu a igreja na esfera cristã como uma camponesa chamada Karmni (Carmela) Grima, a versão maltesa dos Três Pastorinhos da Cova da Iria, consideremos assim.

Em 1883, Karmni Grima caminhava nas imediações da igreja quando escutou uma voz a rogar-lhe que recitasse três aves Marias. Daí em diante, os malteses fizeram fé em que vários acontecimentos milagrosos se tinham dado devido a Senhora da Assumpção a que a igreja tinha sido dedicada.

Nos últimos tempos, o Vaticano fez questão de, à sua maneira, consagrar a igreja. Em 1990, visitou-a e lá celebrou missa o Papa João Paulo II. Vinte anos mais tarde, foi a vez de Bento XVI a visitar e recompensar os crentes de Gozo.

À hora em que por lá passamos, estava, todavia, fechada.

Campos de cultivo, Ilha de Gozo, Malta

Minifúndios ressequidos pelo Verão em redor de Gharb.

Gharb: uma das Povoações Mais Gozitanas de Gozo

Da Triq Ta’Pinu, cortamos para a Triq ta’Sdieri. Por essa via abaixo, por uma vastidão de minifúndios já rapados, salpicados por rolos de palha, chegamos a Gharb.

O nome soava a familiar. Traduzia a povoação no extremo ocidental de Gozo.

Se Malta caprichou na sua exuberância cristã, dentro das suas possibilidades, Gozo fez questão de não lhe ficar atrás. Em Gharb, confrontamo-nos com um bom exemplo. Gharb abrigava pouco mais que 1500 cristãos e, como tal, mantinha-se uma vila. Ainda assim, a sua praça central parecia ambicionar à grandiosidade de outras grandes urbes.

Dela se destacava a Igreja da Visitação, um templo barroco imponente, com dois campanários simétricos e a fachada virada para aquele que é considerado um dos conjuntos arquitectónicos mais gozitanos de toda a ilha.

Gharb, ilha de Gozo, Malta

Praça central de Gharb, uma povoação com arquitectura tradicional de Gozo.

Compõem a praça por diante edifícios erguidos no final do século XVII e uma bandeira maltesa branca e vermelha que ondula acima da entrada da esquadra de polícia local, a combinar na perfeição com a cabine telefónica britânica logo ao lado. Em tempos, uma caixa postal encarnada completava o conjunto. Por motivos operacionais dos correios malteses, foi removida.

Chegarmos em hora do calor. Encontramos a praça quase deserta, entregue à sua história. Não tarda, aparecem dois moradores que se saúdam e ficam à conversa na sombra providencial da igreja, supervisionados pelo trio de mulheres-estátuas representantes da Fé, da Esperança e da Caridade.

Sem que nos surpreendêssemos por aí além, apuramos que o altar tinha o seu quê de portugalidade. Conta com um retábulo impressionante que ilustra A Visitação. Prendou-o à igreja e à vila António Manoel de Vilhena, o terceiro Grão-Mestre português da Ordem de Malta.

Estávamos convertidos ao encanto de Gharb. Com o calor a acentuar-se, a tarde pedia um novo intervalo para gozo balnear.

O Refúgio Balnear Providencial de Ramla

Cruzamos a ilha de Ocidente para norte. Uma estrada campestre que não tínhamos ainda percorrido conduz-nos à iminência de Ir-Ramla, a baía de Ramla.

Na sua iminência, uma via de cimento complementar, mal-amanhada e demasiado íngreme para o pequeno utilitário em que seguíamos assegurava o derradeiro trajecto do cimo da falésia para a beira-mar.

Em Gozo, como em Malta em gera, mais que noutro lado qualquer, a descer todos os santos ajudam. De acordo, dez minutos depois, estávamos a pisar a areia de açafrão de Ramla que oculta ruínas romanas.

Ramla, Gozo, Malta

Maré vazia numa enseada junto à Ramla, no norte de Gozo.

Num plano apenas mitológico, o extremo ocidental da praia esconde ainda uma tal de gruta Calipso que os malteses afirmam ter sido a morada da ninfa Calipso que acolheu Ulisses por sete anos, antes de o herói ter retomado a sua Odisseia.

Banhamo-nos o possível num Mediterrâneo sedutor mas, ali, sem profundidade para grandes diversões. Estendemo-nos ao sol e descontraímos do frenesim fotográfico em que andávamos. Quando o ocaso nos começa a deixar à sombra, comemos gelados num dos quiosques que servem a praia. Extinto o tempo de descanso e a recompensa láctea, derreamo-nos a voltar ao carro e às alturas de Gozo.

Enquanto conduzíamos na direcção de Victoria – a capital da ilha, segunda cidade de Malta, a seguir a Valletta mesmo se com menos de sete mil habitantes – o dia caminhava para o seu fim.

Ultrapassamo-lo na pressa que levava. Quando chegamos, incidiam já os últimos raios de luz sobre a cidadela de Rabat, assim lhe chamam também os gozitanos.

Por boa razão, a cidadela foi situada no âmago da ilha e no seu zénite. Mais vulnerável que Malta, Gozo sofreu a bem sofrer com as incursões inimigas.

Em 1551, em plena fase de expansão do seu império, os Otomanos invadiram-na. Na sequência, a totalidade dos cerca de seis mil habitantes da ilha viram-se levados para Tripoli e escravizados. Essa tragédia desolou os governantes da Ordem de Malta.

Só quase duzentos anos depois, foi restabelecido o número de colonos, sobretudo com famílias recém-chegadas de Malta. No entretanto, a Ordem dos Hospitalários encarregou uma comissão de engenheiros para reverem as defesas de ambas as ilhas.

Atingimos o cimo de um dessas fortificações. Subimos para uma plataforma retalhada por muros e murinhos ligados por escadas e servidos por um restaurante que usufruía da excentricidade histórica do lugar.

Cidadela, Vitoria, ilha de Gozo, Malta

As primeiras luzes acendem-se na cidadela de Victoria

Daquele bastião sobranceiro, apreciamos o lento amarelar do casario espraiado por diante, em redor da igreja de Saint George que se erguia um nível acima  dos restantes terraços e se destacava a dobrar devido ao vermelho vivo da sua cúpula.

Por fim, a escuridão derrota Victoria.

Catedral de Saint George, Vitoria, ilha de Gozo, Malta

Fachada da catedral de Saint George mais iluminada que o restante casario da cidadela de Victoria.

Retornamos ao abrigo da Casa San Giuseppe.

O dia seguinte amanhece cinzento. Apostados na recuperação da meteorologia mediterrânea, regressamos ao porto de Mgarr e navegamos para a pequena ilha vizinha. Tal como esperávamos, quando o sol sobe, afugenta as nuvens.

Devolve à lagoa de Comino, entre a ilha de Comino e a ainda mais pequena Cominoto, o azul-turquesa e a translucidez que a fizeram famosa. Ancoram uns poucos veleiros à sua entrada. Clãs de veraneantes instalam-se ao longo das margens.

Lagoa de Comino, Malta

Banhistas refrescam-se no mar cristalino da lagoa de Comino.

Nós, caminhamos pelo cimo da ilha, a admiramos a disseminação da diversão balnear. No regresso, deixamos de lhe querer resistir.

Senglea, Malta

A Cidade Maltesa com Mais Malta

No virar do século XX, Senglea acolhia 8.000 habitantes em 0.2 km2, um recorde europeu, hoje, tem “apenas” 3.000 cristãos bairristas. É a mais diminuta, sobrelotada e genuína das urbes maltesas.
Valletta, Malta

As Capitais Não se Medem aos Palmos

Por altura da sua fundação, a Ordem dos Cavaleiros Hospitalários apodou-a de "a mais humilde". Com o passar dos séculos, o título deixou de lhe servir. Em 2018, Valletta foi a Capital Europeia da Cultura mais exígua de sempre e uma das mais recheadas de história e deslumbrantes de que há memória.
Míconos, Grécia

A Ilha Grega em Que o Mundo Celebra o Verão

Durante o século XX, Míconos chegou a ser apenas uma ilha pobre mas, por volta de 1960, ventos cicládicos de mudança transformaram-na. Primeiro, no principal abrigo gay do Mediterrâneo. Logo, na feira de vaidades apinhada, cosmopolita e boémia que encontramos quando a visitamos.
Iraklio, CretaGrécia

De Minos a Menos

Chegamos a Iraklio e, no que diz respeito a grandes cidades, a Grécia fica-se por ali. Já quanto à história e à mitologia, a capital de Creta ramifica sem fim. Minos, filho de Europa, lá teve tanto o seu palácio como o labirinto em que encerrou o minotauro. Passaram por Iraklio os árabes, os bizantinos, os venezianos e os otomanos. Os gregos que a habitam falham em lhe dar o devido valor.
Fira, Santorini, Grécia

Fira: Entre as Alturas e as Profundezas da Atlântida

Por volta de 1500 a.C. uma erupção devastadora fez afundar no Mar Egeu boa parte do vulcão-ilha Fira e levou ao colapso a civilização minóica, apontada vezes sem conta como a Atlântida. Seja qual for o passado, 3500 anos volvidos, Thira, a cidade homónima, tem tanto de real como de mítico.
Nea Kameni, Santorini, Grécia

O Cerne Vulcânico de Santorini

Tinham decorrido cerca de três milénios desde a erupção minóica que desintegrou a maior ilha-vulcão do Egeu. Os habitantes do cimo das falésias observaram terra emergir no centro da caldeira inundada. Nascia Nea Kameni, o coração fumegante de Santorini.
Mdina, Malta

A Cidade Silenciosa e Notável de Malta

Mdina foi capital de Malta até 1530. Mesmo depois de os Cavaleiros Hospitalários a terem despromovido, foi atacada e fortificou-se a condizer. Hoje, é a costeira e sobranceira Valletta que conduz os destinos da ilha. A Mdina coube a tranquilidade da sua monumentalidade.
Rabat, Malta

Um ex-Subúrbio no Âmago de Malta

Se Mdina se fez a capital nobiliárquica da ilha, os Cavaleiros Hospitalários decidiram sacrificar a fortificação da actual Rabat. A cidade fora das muralhas expandiu-se. Subsiste como um contraponto popular e rural do agora museu-vivo de Mdina.
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