As coisas são como são. Ditaram que, mesmo a ficar atrasados para a partida do ferry, nos desviássemos da estrada principal para uma segunda espreitada sobre a aldeia maltesa do Popeye, do lado de lá da baía de Il-Prajjet.
Éramos donos e senhores de uma infância marcada pelo marinheiro prodigioso, alimentado a espinafres. Ainda nos custava a acreditar o destaque e as edificações de desenho-animado surreais que Malta ali lhe dedicava, encavalitadas numa laje apertada, entre uma falésia de calcário e uma reentrada translúcida, verde-esmeralda do Mediterrâneo.
Por algum tempo, contemplamos a povoação, meio perdidos entre a fantasia e a incredulidade. Fazemo-lo o tempo que a tabela de partidas do terminal de Ic-Cirkewwa nos concedia.
Sobre as nove da manhã, embarcamos no navio destinado a Mgarr, na costa sul de Gozo.
Desembarque em Gozo, Entrada na Casa San Giuseppe, em Tempos de Jacques-Francois de Chambray
A navegação do canal prova-se tão suave como breve. Permite-nos o primeiro vislumbre do ilhéu intermédio de Comino a que estava nos planos voltarmos.
Desembarcamos em Mgarr. Uma ladeira leva-nos a um plano superior da ilha. Pouco depois, encontramos o lugar em que nos íamos instalar. Até então, só tínhamos o nome do responsável: Joseph. Quando nos deparamos com o edifício, constatamos que o pórtico de entrada a identificava como Casa San Giuseppe e que, elevado num segundo plano, se destacava um pequeno campanário.
Joseph Portelli, o anfitrião, abre-nos a porta. Conduz-nos a um átrio principal. Pelo caminho, percebemos que estávamos a dar entrada num pequeno mosteiro ou seminário convertido em pousada.
Com os preços por noite mais religiosos da ilha, atraía sucessivos visitantes como nós, com as finanças sempre a agradecerem toda e qualquer caridade.
Explica-nos Joseph que aquele complexo de configuração monástica chegou a ser o lar de Jacques-Francois de Chambray, embaixador e oficial de justiça da Ordem dos Hospitalários, frequentador da Corte de Lisboa.
Em 1749, o português Manoel Pinto da Fonseca, à data, o Grande Mestre dos Hospitalários, nomeou Chambray Governador de Gozo.
Daí em diante, sob o peso de tal responsabilidade, o francês dedicou o resto sua vida à ilha.
O Passado Tremido mas Resiliente da Ilha de Gozo
As ilhas de Malta eram, então, atacadas com frequência por piratas e pelos inimigos muçulmanos a sul, sempre atentos às melhores alturas de a conquistarem ou tão só saquearem.
Chambray entregou-se de corpo e alma à construção de um forte que protegesse o ponto de desembarque e de entrada natural de Gozo, a enseada de Mgarr em que a havíamos pisado pela primeira vez.
Ainda não tínhamos reaberto as malas ou deixado sequer a costa sul, Gozo já nos impingia a sua história intensa. Maravilhados, como sempre andámos na irmã mais velha de Malta, apressamo-nos a ajustar-nos ao quarto e a inaugurarmos um périplo rodoviário pela ilha.
O Buraco Azul, Abaixo da Saudosa Janela Dwejra de Gozo
Com o sol a subir para o seu zénite, encalorados, desejosos de sentir alguma frescura na pele e na alma, apontamos ao norte. Cruzamos Gozo até ao litoral escarpado, tornado famoso pela Janela Azul, ou Janela Dwejra, um arco rochoso que, a quase trinta metros de altura, emoldurava o azul do Mediterrâneo e o do céu acima.
Fotogénico, como era, o arco apareceu em diversos filmes com destaque para “Choque de Titans” e o clássico “Conde de Monte Cristo”.
A notoriedade íntegra da Janela Azul terminou, em tragédia, a 8 de Março de 2017. Nesse dia, o vento e as vagas atiçadas por uma tempestade provocaram o seu já temido colapso.
Restava-nos, assim, a atração que há muito ficara com o papel secundário, o Buraco Azul de Dwejra, um dos pontos de mergulho mais populares de toda Malta.
Quando o identificamos, do topo da mesma falésia, partilhavam-no dois ou três banhistas que boiavam, chapinhavam e assim conviviam em puro deleite marinho. Sem aviso, assustou-os a emersão borbulhante de um grupo de mergulhadores a quem, por momentos, se veem forçados a abrir alas.
Aos poucos, mesmo atrapalhados pela parafernália que sempre os acompanha, os mergulhadores debandam. Quando deixamos a vista sobre aquela piscina natural, o Buraco Azul estava uma vez mais entregue à leveza e simplicidade de tanga dos banhistas.
O Campo Rural e Religioso de Gozo, Abençoado pela Igreja Ta Pinu
Do litoral de Saint Lawrence, apanhamos a Triq id-Dwejra para o interior de Gozo.
Na intersecção certa, cortamos para a Triq ta’ Pinu, a perpendicular que nos conduziria ao santuário que lhe havia concedido o baptismo.
A estradinha perde-se num campo de trigo ressequido, de que, aqui e ali, se destacavam alguns cactos opuntia, até eles torrados pelo sol.
A certo ponto, bem mais destacada que os cactos, impõe-se a visão de um templo erguido em pedra calcária. Semi-afundado num declive e de tom amarelado, o templo parecia querer camuflar-se na plantação.
Além de não o permitirem, os seus mais de 60 metros neo-romanescos de altura forçavam a igreja ao azul do firmamento, como que a sublinhar a sua função sagrada de ponte para o céu.
Até 1883, aquela mesma igreja era uma de vários santuários familiares que serviam a fé dos gozitanos. Reza a história que pertenceu aos Gentile.
Na viragem para o século XVII, passou para a posse de um procurador de nome Pinu Gauci, a razão porque ficou conhecida como Ta Pinu (de Filipe). Pinu Gauci investiu na restauração da igreja. Dotou-a de tudo o que carecia para que lá fossem realizadas missas e outros serviços litúrgicos.
Karnmi Grima e a Aparição Gozitana da Nossa Senhora
Mesmo assim, ninguém promoveu a igreja na esfera cristã como uma camponesa chamada Karmni (Carmela) Grima, a versão maltesa dos Três Pastorinhos da Cova da Iria, consideremos assim.
Em 1883, Karmni Grima caminhava nas imediações da igreja quando escutou uma voz a rogar-lhe que recitasse três aves Marias. Daí em diante, os malteses fizeram fé em que vários acontecimentos milagrosos se tinham dado devido a Senhora da Assumpção a que a igreja tinha sido dedicada.
Nos últimos tempos, o Vaticano fez questão de, à sua maneira, consagrar a igreja. Em 1990, visitou-a e lá celebrou missa o Papa João Paulo II. Vinte anos mais tarde, foi a vez de Bento XVI a visitar e recompensar os crentes de Gozo.
À hora em que por lá passamos, estava, todavia, fechada.
Gharb: uma das Povoações Mais Gozitanas de Gozo
Da Triq Ta’Pinu, cortamos para a Triq ta’Sdieri. Por essa via abaixo, por uma vastidão de minifúndios já rapados, salpicados por rolos de palha, chegamos a Gharb.
O nome soava a familiar. Traduzia a povoação no extremo ocidental de Gozo.
Se Malta caprichou na sua exuberância cristã, dentro das suas possibilidades, Gozo fez questão de não lhe ficar atrás. Em Gharb, confrontamo-nos com um bom exemplo. Gharb abrigava pouco mais que 1500 cristãos e, como tal, mantinha-se uma vila. Ainda assim, a sua praça central parecia ambicionar à grandiosidade de outras grandes urbes.
Dela se destacava a Igreja da Visitação, um templo barroco imponente, com dois campanários simétricos e a fachada virada para aquele que é considerado um dos conjuntos arquitectónicos mais gozitanos de toda a ilha.
Compõem a praça por diante edifícios erguidos no final do século XVII e uma bandeira maltesa branca e vermelha que ondula acima da entrada da esquadra de polícia local, a combinar na perfeição com a cabine telefónica britânica logo ao lado. Em tempos, uma caixa postal encarnada completava o conjunto. Por motivos operacionais dos correios malteses, foi removida.
Chegarmos em hora do calor. Encontramos a praça quase deserta, entregue à sua história. Não tarda, aparecem dois moradores que se saúdam e ficam à conversa na sombra providencial da igreja, supervisionados pelo trio de mulheres-estátuas representantes da Fé, da Esperança e da Caridade.
Sem que nos surpreendêssemos por aí além, apuramos que o altar tinha o seu quê de portugalidade. Conta com um retábulo impressionante que ilustra A Visitação. Prendou-o à igreja e à vila António Manoel de Vilhena, o terceiro Grão-Mestre português da Ordem de Malta.
Estávamos convertidos ao encanto de Gharb. Com o calor a acentuar-se, a tarde pedia um novo intervalo para gozo balnear.
O Refúgio Balnear Providencial de Ramla
Cruzamos a ilha de Ocidente para norte. Uma estrada campestre que não tínhamos ainda percorrido conduz-nos à iminência de Ir-Ramla, a baía de Ramla.
Na sua iminência, uma via de cimento complementar, mal-amanhada e demasiado íngreme para o pequeno utilitário em que seguíamos assegurava o derradeiro trajecto do cimo da falésia para a beira-mar.
Em Gozo, como em Malta em gera, mais que noutro lado qualquer, a descer todos os santos ajudam. De acordo, dez minutos depois, estávamos a pisar a areia de açafrão de Ramla que oculta ruínas romanas.
Num plano apenas mitológico, o extremo ocidental da praia esconde ainda uma tal de gruta Calipso que os malteses afirmam ter sido a morada da ninfa Calipso que acolheu Ulisses por sete anos, antes de o herói ter retomado a sua Odisseia.
Banhamo-nos o possível num Mediterrâneo sedutor mas, ali, sem profundidade para grandes diversões. Estendemo-nos ao sol e descontraímos do frenesim fotográfico em que andávamos. Quando o ocaso nos começa a deixar à sombra, comemos gelados num dos quiosques que servem a praia. Extinto o tempo de descanso e a recompensa láctea, derreamo-nos a voltar ao carro e às alturas de Gozo.
Enquanto conduzíamos na direcção de Victoria – a capital da ilha, segunda cidade de Malta, a seguir a Valletta mesmo se com menos de sete mil habitantes – o dia caminhava para o seu fim.
Ultrapassamo-lo na pressa que levava. Quando chegamos, incidiam já os últimos raios de luz sobre a cidadela de Rabat, assim lhe chamam também os gozitanos.
Por boa razão, a cidadela foi situada no âmago da ilha e no seu zénite. Mais vulnerável que Malta, Gozo sofreu a bem sofrer com as incursões inimigas.
Em 1551, em plena fase de expansão do seu império, os Otomanos invadiram-na. Na sequência, a totalidade dos cerca de seis mil habitantes da ilha viram-se levados para Tripoli e escravizados. Essa tragédia desolou os governantes da Ordem de Malta.
Só quase duzentos anos depois, foi restabelecido o número de colonos, sobretudo com famílias recém-chegadas de Malta. No entretanto, a Ordem dos Hospitalários encarregou uma comissão de engenheiros para reverem as defesas de ambas as ilhas.
Atingimos o cimo de um dessas fortificações. Subimos para uma plataforma retalhada por muros e murinhos ligados por escadas e servidos por um restaurante que usufruía da excentricidade histórica do lugar.
Daquele bastião sobranceiro, apreciamos o lento amarelar do casario espraiado por diante, em redor da igreja de Saint George que se erguia um nível acima dos restantes terraços e se destacava a dobrar devido ao vermelho vivo da sua cúpula.
Por fim, a escuridão derrota Victoria.
Retornamos ao abrigo da Casa San Giuseppe.
O dia seguinte amanhece cinzento. Apostados na recuperação da meteorologia mediterrânea, regressamos ao porto de Mgarr e navegamos para a pequena ilha vizinha. Tal como esperávamos, quando o sol sobe, afugenta as nuvens.
Devolve à lagoa de Comino, entre a ilha de Comino e a ainda mais pequena Cominoto, o azul-turquesa e a translucidez que a fizeram famosa. Ancoram uns poucos veleiros à sua entrada. Clãs de veraneantes instalam-se ao longo das margens.
Nós, caminhamos pelo cimo da ilha, a admiramos a disseminação da diversão balnear. No regresso, deixamos de lhe querer resistir.