Cada civilização dá no que dá. Há muito que a do Zimbabué já teve melhores dias.
Despertamos em Masvingo entusiasmados por cumprirmos um sonho de há vários anos. O motorista do Stalion Hotel diz-nos que é suposto irmos buscar uma guia da ZTA, a autoridade de turismo nacional. À hora a que saímos, não havia pequeno-almoço no hotel.
As Atribulações Civilizacionais do Zimbabué
Aproveitamos o facto de os escritórios locais da ZTA serem ao lado de um supermercado para superarmos o caos absoluto em que a economia do país andava, fazermos umas compras e quebrarmos o jejum. Chegamos à caixa. Uma vez mais, não nos aceitam as notas de dólares americanos com que queremos pagar.
São anteriores a 2009 e há uma epidemia desse numerário falsificado. As notas mais antigas são as mais copiadas.
Pagamos com euros e recebemos parte do troco em dólares, outra parte em bonds, uma artimanha financeira com que o governo de Harare procurava conter a inflação cada vez mais atroz. Tão complicadas se revelaram as compras que, quando saímos para o parque de estacionamento, já o motorista e Dani nos esperavam há dez minutos.
Apresentamo-nos à jovem anfitriã, instalamo-nos no banco de trás. Seguimos, na galhofa, para sul, na direcção do lago Mutirikwi e do Great Zimbabué National Monument, um dos monumentos mais considerados no Zimbabué.
O lugar mágico e enigmático inspirador do nome da nação independente, há demasiado tempo problemática, que emergiu após a sangrenta Bush War, a guerra civil que, de 1964 a 1979, opôs dois movimentos de libertação (mais tarde também eles rivais) ao governo branco opressor da Rodésia.
Regresso ao Zimbabué Grandioso de outros tempos
Desviamos da estrada principal para uma viela cercada de árvores bem mais amplas e verdejantes que a vegetação da savana de encosta em redor. Dani, conduz-nos ao edifício de acolhimento. Lá nos espera Philip o jovem guia residente do complexo. Philip e Dani já se conheciam havia algum tempo.
À boa maneira da etnia xona e do sul de África em geral, Philip inaugura de imediato uma intensa sessão de piropo e galanteio a Dani que só terminaria com o fim da visita.
O anfitrião lidera o caminho. Conduz-nos por um trilho íngreme que, por vezes enfiado entre enormes rochedos granitícos polidos, conduzia ao cimo do complexo da colina, um dos conjuntos arquitectónicos do monumento. Pouco habituada a caminhadas, Nadia arfa e reclama da aspereza do percurso. Quando é altura de subirmos ao topo vertiginoso da fortaleza, teima em ficar à espera na sua base.
Não tardamos a perceber que a vista privilegiada compensava todo e qualquer esforço da ascensão, não tarda, tornada escalada.
Abaixo, espraiava-se o sulco mais profundo de um vale. Para diante, uma encosta verdejante salpicada por grandes calhaus. No sopé já algo inclinado dessa encosta, destacava-se o fulcro de uma velha fortaleza arredondada, cercada por vestígios do que terão sido muros exteriores, em tempos mais elevados, agora adornados por acácias e por uma colónia de aloés excelsa altivos.
Estruturas Misteriosas e Excepcionais
Philip transmite-nos algumas das inúmeras explicações históricas de que carecíamos. Quando detecta a primeira das nossas sucessivas pausas para fotografia, intercala o seu discurso com novos cortejos a Dani que permanecia no sopé dos grandes rochedos que tínhamos conquistado, a dar ao dedo no seu smartphone.
Como o nome indicava, o Grande Zimbabué era o maior de vários zimbabués (complexos de ruínas) disseminados por aquela imensidão do planalto sul-africano.
Não só era o maior como continua a ser considerado a maior das cidades medievais de toda a África sub-saariana, com muralhas que chegavam aos 11 metros de altura, com 250 de extensão, compostas apenas por pedras trabalhadas e empilhadas, sem qualquer argamassa.
Apesar da sua impressionante dimensão e do óbvio poder e influência da civilização que a construiu, a sua origem e autoria permanece objecto de acesa polémica.
O facto de o povo que a ergueu não usar comunicação escrita fez com que nunca tenham sido encontrados testemunhos ou registos gráficos.
Aqueles que existem, datam de a partir do século XV, como os deixados pelos exploradores portugueses que começaram a aventurar-se àquelas partes, oriundos da vizinha colónia lusa de Moçambique.
O Centro de uma Prolífica Fonte de Ouro
Crê-se que Grande Zimbabué foi erguido ao longo dos anos entre os séculos XI e XV pelos ascendentes Gokomere (bantus) da civilização xona (Zimbabwe: dzimba = casas e mabwe = pedras é, aliás, um termo xona), a etnia predominante na actual nação zimbabueana.
A determinada altura, a cidade ocupou uma área em redor de 80 hectares. Assumiu uma dimensão e importância de tal forma impressionantes que, durante a Idade Média, se tornou notória em África, em redor do Mar Vermelho – de onde chegavam mercadores árabes – e, mais, também entre os exploradores europeus.
Escavações arqueológicas lá revelaram ouro e moedas de Kilwa, um sultanato nas imediações de Zanzibar. Também contas e porcelanas da China.
A explicação mais propagada para a emergência de Grande Zimbabué centra-se na abundância de ouro e marfim na região, que terá justificado o engrandecimento do reino detentor daquelas paragens, a construção de um trono-fortaleza à altura da realeza e da protecção dos filões que a enriqueciam.
No seu zénite, habitaram-na quase 20.000 habitantes, os mais humildes alojados em palhotas cónicas com telhados de colmo. Depois de um bom tempo a vasculharmos os pormenores da acrópole do complexo da colina, o mais antigo, regressamos à sua base.
Grande Cercado, o âmago do “baixo” Grande Zimbabué
Logo, tomamos o trilho que conduzia ao complexo do vale que tínhamos apreciado à distância e, na sequência, ao elíptico Grande Cercado.
Aproximamo-nos da colónia de aloés e das suas rivais eufórbias (muhondes, em dialecto xona), ambas disseminadas numa área de muralhas preambulares arredondadas mas desgastadas pelo tempo e que agora mais parecem canteiros.
Alguns metros acima, deslumbramo-nos com a imponência sobranceira da grande muralha. As copas de algumas Mimusops zeyheri ancestrais parecem espreitar-nos do cimo da cerca de pedra que, em parte, foi tingida de amarelado por uma floresta densa de líquenes oportunistas. Philip aproxima-se de um muro externo quase raro.
A sua humana pequenez ajuda-nos a valorizar a herança civilizacional que tínhamos a fortuna de apreciar. Não tardamos a passar para o interior.
O Grande Cercado terá sido erguido durante o século XIV em blocos de granito. Protegia uma série de alojamentos familiares de famílias mais próximas da realeza. As suas cabanas eram feitas de tijolos de areia granítica e argila.
Partilhavam uma área comunal e uma ligação para uma passagem exígua que conduzia a uma torre cónica de dez metros encostada à muralha, ainda hoje à sombra das enormes árvores que ali despontam.
Não se sabe ao certo, qual terá sido a sua função. As duas teorias mais populares são bastante discrepantes. Uma defende ter sido um reservatório de grãos. A outra, um símbolo fálico.
Nos tempos de glória da povoação, os restantes súbditos residiam no vale contíguo. Criavam gado, cultivavam cereais e tubérculos. Levavam a cabo o comércio do ouro com mercadores que chegavam sobretudo do litoral do oceano Índico.
Philip comunica-nos que, foram achadas em áreas próximas oito esculturas em pedra-sabão, assentes em colunas, que retratavam figuras que combinavam aves com feições humanas – lábios em vez de bicos e pés com cinco dedos. Seriam símbolos de poder real.
De acordo, após a independência de Abril de 1980, foram adoptadas como símbolo da nova nação zimbabueana.
Do Zénite ao Abandono Testemunhado pelos Exploradores Portugueses
Mas, tal como emergiu, o Grande Zimbabué desvaneceu-se. No início do século XVI, os exploradores portugueses começaram a aventurar-se para o interior de Moçambique em busca de riquezas. As narrativas de abundância de ouro levaram-nos às paragens da velha cidade.
Em 1506, Diogo de Alcáçova chegou a descrever o lugar numa carta que enviou ao rei Dom Manuel como integrante de um tal reino de Ucalanga.
Em 1531, Vicente Pegado, capitão da guarnição de Sofala, já descreveu o lugar já como um legado ao tempo. Crê-se que, por volta de 1450, Grande Zimbabué estaria já abandonada. A falta de registos escritos do antecedentes do povo xona, faz com que não se saiba, com certeza, a razão.
Contam-se, entre as explicações mais fidedignas, o facto de o ouro das minas se ter esgotado e levado a um declínio acentuado na relevância do lugar em que, em simultâneo, a abundante população se terá visto também em sérias dificuldades para obter alimento na região em redor, cada vez mais deflorestada.
Sabe-se que quando a situação se tornou realmente grave, um emissário, Nyatsimba Mutota, foi enviado ao norte em busca de fontes de sal que preservasse a carne. O abandono urgente de Grande Zimbabué, terá favorecido Khami, um estado rival e concorrente, hoje ruínas do género de Grande Zimbabué ainda que sem a sua magnificência.
Mais tarde, o historiador português João de Barros, referiu-se a um tal de império Mutapa que sucedeu ao de Zimbabué, com capital num lugar distinto em que não existiam as pedras que viabilizaram a construção de Grande Zimbabué.
Explicações que não Mitigam o Enigma
Como sempre acontece nestes casos, quantos mais cientistas, estudiosos e saqueadores de tesouros chegam, mais teorias e certezas vêm ao de cima. Em 1871, Karl Mauch, um explorador e cartógrafo alemão viu pela primeira vez as ruínas.
Não esperou muito para as associar ao Rei Salomão e à Rainha de Sabá, como haviam já feito outros estudiosos como o escritor português João dos Santos. Essa interpretação disseminou-se entre a comunidade branca de colonos em África. Inaugurou uma série de outras.
Patrocinado por Cecil Rhodes, o determinado e egocêntrico mentor da Rodésia, J. Theodore Bent passou uma temporada nas ruínas, após o que publicou “The Ruined Cities of Mashonaland”.
Nesta sua obra, defendia que a cidade fora erguida ou pelos Fenícios ou pelos Árabes. Instigou o preconceito do governo (e da população) racista e pró-apartheid rodesiana de que nunca poderiam ter sido construídas por povos negros.
As autoridades do Zimbabué sempre rejeitaram estas postulações – e outras similares – que procuraram retirar o crédito de tão marcante civilização aos seus antecessores. Como forma de animar o lugar e de ilustrar o passado xona, mantêm uma réplica de aldeia xona que encontramos a pouca distância a norte do Grande Cercado.
Os seus habitantes mostram-nos o prolífico artesanato da comunidade. E exibem-nos danças tradicionais com o empenho possível, tendo em conta que o fazem de sol a sol, sempre que novos forasteiros por ali passam.
Assistimos ao espectáculo com o interesse que nos mereciam nem que fosse pela sua provável descendência dos autores do Grande Zimbabué.
Em seguida, despedimo-nos de Philip. Deixamo-lo entregue à rotina de aguardar por visitantes a quem oferecer os seus serviços. E, às ruínas, às muitas incertezas da história zimbabueana por esclarecer.
Mais informação sobre Grande Zimbabué na página correspondente da UNESCO.