À medida que a tarde e o autocarro 24 avançam, a temperatura já enregelante cai a olhos vistos.
Reforça a solidez do retalho do Golfo da Finlândia que se estende para oeste.
Segue a bordo um pequeno exército de crianças em fatinhos coloridos debaixo de roupa de Inverno que, à boa maneira finlandesa, lutam para conter a ansiedade gerada pela farra iminente.
Chegamos à última paragem. Os passageiros encasacados saem para o exterior de forma ordeira, ajeitam as golas, os capuzes e os gorros e enfrentam o cenário frígido.
Sem forma melhor de nos orientarmos, seguimo-los.
Como acontece a vários destes suomi em modo de descontracção, encantamo-nos com os lagos gelados, azulados devido ao esfumar precoce da luz setentrional e escondidos atrás de vedações naturais feitas de um capim alto e ressequido.
Bandos selvagens de patos, de gansos e de outras aves do frio chapinham em poças abertas pela corrente submarina, demasiado confortáveis naquela água realmente líquida para se incomodarem com a invasão humana.
Por fim, atravessamos uma ponte estreita, um acesso edificado em 1891-92, com madeira de árvores derrubadas durante as tempestades de Outono. Do outro lado, já estamos em Seurasaari.
Os Primeiros Passos Sobre a Ilha Enregelada
Esta ilha foi usada durante algum tempo para pasto do gado de um senhor feudal da região. Mas, no virar para o século XX, as autoridades adaptaram-na para proporcionar tempos de evasão aos trabalhadores da cidade e de uma instituição em particular, a Serving Company.
Esta empresa construiu, ali, mais de 30 edifícios recreativos entre bares e geladarias, barracas de vendas, fonógrafos públicos, máquinas de observação panorâmica e também a iluminação necessária.
Durante o Inverno pouco misericordioso, a animação em Seurasaari parece aquém do que sugere tanta infra-estrutura histórica mas, mal a Primavera se impõe, a ilha ganha vida e acolhe a maioria dos seus cerca de 500.000 visitantes anuais, parte deles frequentadores de uma das três únicas praias naturistas do país dos mil lagos.
Da orla dos lagos, acedemos a um trilho de floresta sombrio, no encalço de famílias que se também se tinham deixado atrasar.
Em ambos os lados do caminho, no meio das coníferas, surgem velhos moinhos e celeiros para ali levados desde 1909 de diferentes recantos da Finlândia, com o fim de integrarem um museu ao ar livre.
A espaços, estruturas intrigantes adicionais insinuam-se no meio do arvoredo despido: uma capela luterana em creme e branco sujo digna de uma Finlândia dos Pequenitos e, entre outras, uma cabine telefónica histórica verde com forro amarelo em que duas amigas se entretêm a fotografar-se.
Churrascos que Servem de Introdução às Grandes Fogueiras
Andamos mais algumas centenas de metros e somos aliciados com o aroma de fogo alimentado a madeira mal seca e de algum grelhado de carne ainda difícil de identificar. Até que entramos numa clareira e nos deparamos com uma multidão piqueniqueira, disposta em redor de um churrasco comunitário.
Gente alourada grelha salsichas espetadas em galhos e reconforta-se da agrura meteorológica enquanto algumas almas alcoolizadas e à margem da sociedade bem sucedida da capital suspiram por eventuais caridades.
A Celebração do Passado Pagão dos Finlandeses
Os finlandeses cristãos são quase todos luteranos, só uma pequena percentagem da população segue os preceitos da Igreja Ortodoxa.
Muitos deles – a começar pelos samis, distintos em termos étnicos e culturais do topo da Lapónia – preservam crenças ou simpatia por costumes nórdicos ancestrais. Era exactamente essa relação que reunia tantos finlandeses em Seurasaari.
Como nos explica um avô dedicado: “
Antes as pessoas do campo acreditavam muito a sério nestas coisas, que no Sábado Santo de Páscoa, os maus espíritos e as bruxas voavam sobre as quintas e os campos, que os trolls ordenhavam o leite das vacas e lhes cortavam o pelo, como às ovelhas e até aos cavalos.
Pensava-se que o fumo e o fogo os afugentavam e, como tal, acendiam enormes fogueiras”.
uma Ilha Finlandesa de Tradição
À parte dos edifícios do museu, a fundação Seurasaari, forte defensora dos valores vernaculares finlandeses, começou também a transpor para a ilha, em 1982, uma encenação anual desta tradição e a convocar os habitantes de Helsínquia para a sua celebração.
Quando deixamos o pequeno quiosque-café ao lado do churrasco já abastecidos de chá quente e bolos, vários funcionários tratam de acender as fogueiras.
Têm o apoio de um carro de bombeiros estrategicamente colocado para eventuais emergências, apesar do solo nevado e molhado em redor da vegetação por queimar.
Tyra – a neta do senhor que nos explicara a origem do costume – passa por nós vestida de bruxinha sardenta, rodeada de amiguitos endiabrados acabados de conhecer.
Um bando de espíritos infantis em êxtase acomoda-se sobre um monte de neve suja.
Dali, como pequenos Neros deliciados, observam as chamas apoderarem-se dos troncos e folhas verdes e ganharem dimensão em poucos segundos.
As Chamas que Aquecem o Fim de Tarde e a Multidão
O fascínio mantêm-se por algum tempo mas, com a monotonia da combustão, muitas destas crianças debandam para confrontos de bolas de neve ou em busca de ovos e outros doces que os familiares esconderam no bosque lúgubre por detrás.
Com o apogeu do fogo, é inaugurado numa estrutura montada em jeito de anfiteatro, um recital de poesia e canto que recruta dezenas de outros miúdos sob a tutela carinhosa de Marita Nordman, uma anciã com 80 anos, uma figura incontornável do folclore finlandês
Mais tarde, vêmo-la circular em redor das fogueiras com uma pequena cesta com tricotados, bordados e outros adereços típicos dos modos antigos da Finlândia.
O festival termina. Pouco depois, os bombeiros de serviço extinguem as fogueiras já moribundas.
A condizer, também o dia anuncia o seu último estertor. Como por obra divina, enquanto o frio aperta como nunca, o céu nas redondezas abre de um azul petróleo para tons de laranja e magenta que se adensam.
Dezenas de convivas resilientes procuram a bola incandescente do Sol. Seguimos mais uma vez os nativos por um trilho de que não nos tínhamos apercebido e que termina na orla da floresta, de frente para uma outra enseada gelada do Golfo da Finlândia.
Do lado oposto, o grande astro afunda-se lentamente e cria um fundo avermelhado decorado pelas silhuetas de árvores e estruturas longínquas, também pelo fumo de uma chaminé que se destaca acima da vegetação.
Após o desaparecimento ilusório do Sol, a escuridão instala-se de vez. Regressamos à paragem do autocarro com auxílio de lanternas e, pouco depois, ao braços aconchegantes da Helsínquia sofisticada.