O cansaço era já tal que, nem o vendaval sibilante da noite nem o conforto espartano do quarto, nos levou o sono.
Das 22h às 4h, mesmo com o oxigénio da atmosfera reduzido, renovamos energias para o percurso extremo que nos esperava.
Despertamos algo titubeantes. Recompomos as mochilas e certificamo-nos que o carregador, Don, acordava e se preparava.
Nestes preparos, chegamos às cinco da manhã.
Com recurso à luz dos frontais, mudamo-nos da ala dos quartos para o edifício principal do High Camp, lugar da cozinha e dos sempre ansiados pequenos-almoços.
Quando entramos, damos de caras com Josh, o parceiro de caminhada que tinha ficado para trás em Yak Karka, a tentar perceber se os restantes membros do grupo estariam ou não em condições de prosseguir. Nem todos estiveram.
Rejubilamos por o voltarmos a ver. Era dos parceiros de circuito com quem melhor nos dávamos, ao ponto de juntos, nos termos metido em caminhadas de aclimatização e em apuros mas deles termos saído rejuvenescidos e ainda mais unidos.
Também Josh nos pareceu feliz pelo reencontro.
Não conhecia mais ninguém naquela levada de caminhantes. Sentia algumas dores de cabeça típicas do Mal de Montanha. Poder fazer-se ao temido Thorong La, na companhia de amigos, sempre suavizava o repto.
Momentos depois, Sara e Manel, juntam-se a nós. Sara “receita” um Diamox a Josh.
Conscientes da sua debilidade e de que, para o habitual, Don só teria que transportar um quinto do peso a que os carregadores nativos estão habituados, passamos-lhe alguns itens.
Era um peso adicional que não lhe faria diferença, mas que poderia salvar a travessia de Josh.
Com o sol a aparecer acima do horizonte, o vento deu de si. Não deixou nem vestígio da nebulosidade que, na noite anterior, tinha gerado um súbito nevão.
Ascensão do High Camp ao Desfiladeiro de Thorong La
Partimos do High Camp pouco antes das seis da manhã. Sob uma meteorologia abençoada e desejada que contribuiu e muito para nos tranquilizar.
O peso da atmosfera dos 4880 metros do High Camp para cima, depressa nos começou a desgastar. Quase todo o caminho rumo ao zénite de Thorong La se provou a subir, nalgumas partes, com inclinação acentuada.
Dávamos cada novo passo, em câmara lenta de homem na Lua.
Todos, sem excepção, nos requeriam respirações profundas, com os pulmões na senda do oxigénio rarefeito em volta, precioso no sangue que nos mantinha quentes e em movimento.
Aos poucos, ascendemos.
Ao contrário de até então, sulcamos uma paisagem toda ela nevada. Subimos por um trilho estreito, com frequência coberto de neve endurecida.
Boa parte do trilho, cortava pelo quase cimo de encostas por que, ao mínimo descuido, rolaríamos sem sabermos onde iríamos parar, ou onde acabaríamos por nos despenhar.
Por essa altura, damos graças pelos crampons ajustáveis às botas que, à última hora, apostámos em comprar.
Conquistamos um primeiro alto panorâmico em que recuperamos o fôlego por mais tempo.
Nesse cimo, ao nos virarmos para trás, percebemos que tínhamos sido dos primeiros a deixarmos o High Camp.
Atrás de nós, com o sol a impor-se às montanhas nas suas costas, os vultos alinhados ao longo do trilho aumentavam.
Junto ao alto em que apreciávamos a sua evolução, surgiam já em fila indiana, caminhantes atrás, retidos pela lentidão dos que seguiam na dianteira, impedidos de os contornarem por fora do trilho, pela aceleração requerida, por a neve poder esconder buracos e, nem que fosse só esse o motivo, pelo precioso bom-senso da montanha.
Na caravana que se adensava, seguiam uns poucos cavalos.
Alguns, carregavam os primeiros desistentes do dia, os que o cansaço e o mal de montanha já tinham derrotado e a quem, de bom grado, os proprietários dos animais cobravam 100 dólares, ou mais, para os carregar até ao lado de lá do desfiladeiro.
Outros donos de equídeos, tal qual rapinas dos Annapurnas, seguiam junto dos caminhantes que lhes pareciam mais exauridos a tentarem convencê-los a recorrerem aos seus serviços.
Desde os primeiros passos que o Circuito Annapurna nos corria de feição. Também não seria ali que soçobraríamos.
Claro está que nos sentíamos ofegantes. Com o coração a querer sair pela boca, as coxas a arderem, cegos pela intensidade da luz directa em altitude e pela sua reflexão ofuscante na neve que nem os óculos de sol pareciam resolver.
Não voltámos a sentir as dores de cabeça e indisposição que demasiada papa de aveia tinha gerado no trecho entre Yak Kharka e Thorong Phedi.
Devagar, devagarinho, derreados, mas a recuperarmos bem sempre que nos detínhamos, atingimos as terras planas do desfiladeiro de Thorong.
Conquista do Thorong La (5416 m) e Celebração a Condizer
A determinado ponto do seu vale, uma profusão enrodilhada de bandeiras budistas de oração lungta quebrava a alvura do cenário.
Parte delas estavam atadas a uma estupa.
Outras, esticadas de uma placa comemorativa do lugar e da conquista respectiva.
Letras douradas sobre um fundo negro versavam: “Thorang La Pass – 5416 mtr. Congratulation for the Success! Hope you enjoy the trekk in Manang. Hope to see you again.”
A mensagem tinha erros que, desde então, foram corrigidos.
Quando todos ali nos reunimos, com o céu ainda limpo e o dia soleado, celebramos e fotografamo-nos por conta de cada um, em casal e em grupo.
Até o guia de Sara e Manel que, pelos vistos, também era estreante no circuito e no desfiladeiro, revelou um êxtase que nos divertiu.
Abraçamo-nos, gritamos. Voltamos a fotografar-nos e abraçar-nos, numa celebração que só a visão da casa de chá local a servir bebidas quentes, teve o poder de abreviar.
Mudamo-nos para junto da tea house. Conscientes de que tínhamos conquistado o Thorong La no tempo previsto, sentamo-nos à conversa, a bebermos chá, devorarmos barritas e chocolates.
Brindamos. Voltamos a comemorar.
A quem agora o lê, pode parecer festa em excesso. Tendo em conta a história recente daquele mesmo desfiladeiro, talvez devêssemos ter celebrado a dobrar.
A Tragédia de Outubro de 2014
Recuemos até 14 de Outubro de 2014. Nesse dia, tal como nós havíamos feito, dezenas de caminhantes tinham deixado Thorong Pedi e o High Camp, apostados em cruzar o desfiladeiro de Thorong La.
A época do ano era uma das melhores para a travessia. No entanto, a acção do ciclone Hudhud, que se intensificou Baía de Bengala acima e evoluiu para o coração da Índia, gerou tempestades inesperadas e avassaladoras nas montanhas do Nepal.
Nessa manhã, as temperaturas desceram a pique. Nevões intensos e vendavais apanharam caminhantes no trilho exíguo e instável que vai do High Camp a Thorong Pedi.
Muitos conseguiram refugiar-se naquela mesma tea house em que comprámos os chás.
A determinada altura, o edifício diminuto ficou à pinha.
Mesmo aí, o frio, a iminente hipotermia e o pânico tornaram-se tais que se propagou a noção de que, se ali ficassem, todos os caminhantes pereceriam.
Nesta aflição, muitos apostaram em chegar à segurança do povoado de Muktinath, no fundo das montanhas a norte do desfiladeiro.
Os sobreviventes relataram que o dono da Tea House cobrou dinheiro para guiar o grupo decidido em deixar o abrigo. E, que, logo depois, desapareceu.
Os que optaram por ficar, aninharam-se o melhor que conseguiram e sofreram nas mais de 20 horas em que a tempestade fustigou o desfiladeiro.
Às oito da manhã do dia seguinte, a tempestade amainou.
Quando os caminhantes abrigados decidiram buscar socorro, perceberam que o trilho tinha desaparecido.
Pouco depois, começaram a encontrar dezenas de corpos semienterrados e congelados de outros caminhantes e guias.
Nesses dois dias, a tempestade fez 43 vítimas mortais na região e muitos mais com queimaduras por frio graves.
Boa parte dos mortos e feridos foram encontrados entre o High Camp e Muktinath, o trecho em que já rejubilávamos, apesar de ainda só estarmos a meio, ou nem isso.
Thorong La a Muktinath: de Volta ao Caminho
O que faltava, era a longa descida para Muktinath.
Íngreme, a começar pouco abaixo de glaciares diminutos.
Com mais secções em que o trilho se sumia na neve, no cimo ou a meio de encostas em que, não fossem os crampons, voltávamos a arriscar quedas para fundos indefinidos.
Deixamos para trás a zona em que a neve perdurava. Sobre uma ilha de branco, um grande calhau rosado servia os propósitos propagandísticos de outro dos resistentes do Nepal e dos Annapurnas, entre Manang e Muktinath:
“Long Live C.P.N. (Maoist)” versava a inscrição, a vermelho, as cores do Communist Party of Nepal.
Daí, para baixo, o caminho serpenteou sobre um solo cada vez mais pedregoso, danoso para os joelhos.
Foi com enorme alívio que avistámos as primeiras casas de chá e restaurantes, ainda bem acima dos 3800 metros a que se situa Muktinath, a uma hora da aldeia.
O dia continuava luminoso e sem vento. Fazia um calor quase veraneante que há muito não sentíamos.
Sentamo-nos numa mesa cá fora.
Pedimos sumos de frutas, pão tibetano e arroz com vegetais. Livramo-nos do vestuário sintético opressor necessário à passagem por Thorong La.
De troncos nus ou quase nus, deixamo-nos afagar pela aragem, pelos raios solares e pela aura de conquista.
Por volta das 15 horas, nove decorridas desde a partida do High Camp, damos entrada no Bob Marley Hotel de Muktinath. Instantes depois, voltamos a sentir água quente a correr-nos sobre o corpo.
Tínhamos passado pelo apogeu do Circuito Annapurna. A partir daí foi (quase) sempre a descer.