O tempo está óptimo no canal. Como se mantém sobre todo o triângulo desajeitado do Atlântico de que o Faial faz de vértice ocidental.
Quando chegamos ao cimo do Monte da Guia, percebemos, em todas as suas formas e cores, que a geologia jovem dos Açores tinha prendado a Horta a dobrar.
Espraiada à nossa frente, de um gradiente de um azul-marinho quase escuro, até ao verde-esmeralda da beira-mar, a água da baía afagava os lares da Horta e refrescava o areal cinza da praia de Porto Pim.
O Fascínio Filipino e a História Baleeira do Faial
O fascínio pela calheta suave e o desejo de nela ancorar vem de há muito. O povoamento do Faial teve início no século XV. Dois séculos depois, D. Filipe II, filho da Imperatriz Isabel, neto de D. Manuel I, o Filipe espanhol que amava mais Portugal que Espanha, ditou que se construísse ali um porto, para que lá pudesse desembarcar.
Mais tarde, os pescadores aproveitaram a iniciativa real. Assim o fez também a pesca baleeira que, entretanto, chegou ao arquipélago e que justificou a operação de uma Fábrica da Baleia local, hoje ocupada pelo Observatório do Mar dos Açores.
Por mais condições dadas ao Faial, a pesca, fosse qual fosse, no âmago do Atlântico sem fim, provou-se tudo menos um mar de rosas. Por alguma razão, a freguesia em que se situa essa velha fábrica baleeira ostenta o nome que tem: Angústias.
Não bastasse o encanto e a tranquilidade da enseada de Porto Pim, do lá do istmo elevado que lhe servia de biombo, uma outra calheta banhava a Horta. Víamo-la recortada como que a reclamar uma acoplagem à extremidade oeste da vizinha ilha do Pico, a ponta da Criação Velha e da Madalena.
Apreciamo-la, arredondada e polida pelos milénios. Alongada no anfiteatro natural em que a cidade disputou uma primeira fila à altura da montanha-vulcão se projecta do lado de lá do canal para os céus.
O Refúgio Atlântico da Horta (e sua Marina)
Meia-hora de contemplação depois, regressamos às ruelas da Horta. À marginal em que a ilha celebra a Liberdade e à marina desafogada que impôs ao canal.
A Marina da Horta é o porto de recreio mais antigo dos Açores, a quarta marina mais frequentada dos sete mares. Lá ancoram, todos os anos, em redor de mil e duzentas embarcações.
Por conta dessa antiguidade e da posição providencial no oceano bravio e no arquipélago – uma posição que protege os barcos dos ventos, venham eles de onde vierem – os navegadores têm-na quase como mítica.
Que outra explicação poderia ter a profusão garrida de pinturas murais com que os timoneiros e tripulação dos iates e veleiros continuam humanizar os paredões e corredores de betão em que se viram em segurança, nos braços de um já saudoso bem-estar.
Só os navegadores conhecerão a plenitude desse sentimento mas, fruto da modernidade e da globalização que há muito andam de mão dada quem, como nós, se limita a aterrar no Faial, beneficia de uma forma algo parasita da sensualidade náutica destes confins.
Ditou a história e a sensibilidade da família fundadora que o magnetismo do Faial e da Horta gire em redor de um café-restaurante. Um café-restaurante de tal maneira famoso que repetir-lhe o nome nos soa a desperdício.
Satisfeitos com o já longo estudo fotográfico dos murais e com uma sede súbita a afectar-nos o julgamento, invertemos o rumo da caminhada.
Apontamos à Praça Infante Dom Henrique em que, por norma, se inaugura o acolhimento dos navegadores.
Meras dezenas de passos depois, damos com a entrada simples mas elegante do Café Sport, impingida à fachada do casario como um pequeno baleeiro em terra.
Não só em terra.
Peter Café Sport: um Monumento ao Encontro Atlântico dos Navegadores
Sobre uma calçada portuguesa, açoriana e dos mares. Ali, um letreiro de madeira envernizada surge entre duas baleias brancas que nos pareciam sorrir.
Do exterior batido pelo sol, o âmago do Peter’s pouco passava de um breu intrigante. Quando entramos, desvendamos o mundo lúdico-náutico, orgânico e harmonioso que confirmava a notoriedade planetária do estabelecimento.
Em volta, as paredes e o tecto surgiam forradas de bandeiras, estandartes, fotografias históricas, cartas, mapas, autocolantes e tantos outros apetrechos internacionais da navegação.
Dois balcões de madeira, subsumidos nesta parafernália colorida e que confrontavam as auras de luz moldadas pelas portas e janelas serviam de ponte de comando de todas as manobras.
Ao fundo, à esquerda de quem entra, um senhor de cabelo e bigode brancos operava uma pequena loja no caminho para o museu de Scrimshaw acima, um museu repleto de peças de arte esculpidas em osso e dente de baleia, de tal maneira que é considerado o museu deste género mais bem apetrechado.
Ao fundo, à direita, o bar e boca de saída do restaurante, fonte inesgotável de prazer na forma de cervejas geladas e dos badalados gin tonics da casa que fidelizaram os melhores clientes dos tempos pioneiros, os britânicos. Fonte ainda de um menu prodigioso de especialidades faialenses.
Sopa de Baleia, Boca Grande e o Famoso Gin do Peter’s
Sentamo-nos numa mesa de madeira de recanto que nos dava vista privilegiada para as restantes. Dali, bolinamos no ambiente jovem, quase adolescente e cosmopolita da sala.
Saboreamos o gin como se já tivéssemos nascido apreciadores da bebida. Até que nos servem sopas de baleia e nos vemos forçados a reorientar os sentidos da efervescência refrescante do G&T para a consistência gastronómica que nos fumegava nariz acima.
Podia não ser a versão pura, íntegra, sofrida nas peles envelhecidas dos navegadores desembarcados. Ainda assim, estávamos a cumprir o ritual e a viver o sonho do Faial, da Horta e do Peter’s.
A adicionar a tudo, o Café Sport tinha celebrado havia pouco tempo, um século e quatro gerações de vida, numa festa para que convidou toda a ilha do Faial.
A História Já Secular do Peter Café Sport
Reza a história que Henrique Azevedo lhe abriu as portas, no dia de Natal de 1918 e ocupou um espaço de negócio antes ocupado por uma tal de loja de artesanato e bar Casa dos Açores.
Henrique Azevedo era um adepto fervoroso do desporto, praticante de futebol, de remo e de bilhar, entre outros. Surgiu, assim, como algo lógico que rebaptizasse o estabelecimento como Café Sport. Algum tempo depois, este nome ainda oficial foi suplantado por outro, o popularizado Peter’s.
Aconteceu assim porque o oficial chefe do serviço de munições e manutenção do navio “Lusitania II” da Marinha Real Britânica achou o jovem José Azevedo (filho de Henrique Azevedo) parecido com o seu próprio filho, Peter.
À medida em que, na brincadeira, continuou a chamar José Azevedo de Peter, consolidou também o nome hoje mais badalado do bar em que restabelecíamos energias.
Terminamos as sopas de baleia. Chegam dois peixes boca negra grelhados, acompanhados de um prato dos melhores enchidos açorianos. Finda a sobremesa e novo gin, estávamos prontos para rebolar.
À conversa com José Henrique Azevedo, o actual proprietário, percebemos o quanto nos tínhamos aproximado do que é agora esperado de todo e qualquer visitante da da cidade: “Se velejares até à Horta e não visitares o Peter Café Sport, não vistes a Horta na realidade.”
A Descoberta Vespertina da Cidade da Horta
Satisfeitos pelo quase-cumprimento do desígnio, despedimo-nos e entregamo-nos de espírito renovado à cidade solarenga em redor.
Conduzimos até à Ponta da Espalamaca. Subimos ao miradouro da Nª Srª da Conceição. Encontramos uma Santa Conceição de três metros, no sopé de uma cruz com quase trinta.
Daquele alto abençoado, temos a visão terrena da montanha suprema de Portugal com os povoados da ilha do Pico na sua base. Mas não só.
A atmosfera sobre o canal mantinha-se de tal maneira cristalina que nos concedia um vislumbre difuso das vizinhas mais distantes de São Jorge e da Graciosa.
Praia do Almoxarife, Canal a Meias com o Grande Pico
Descemos para a beira-mar da praia de Almoxarife, o areal que encerra a espécie de fatia de tarte em que se alonga a freguesia homónima, terra verdejante, povoada a partir de 1465 por um grupo de quinze flamengos.
Como tal, dotada de moinhos de vento com inspiração nos Países Baixos.
Hoje, os descendentes desses colonos remotos são crentes fervorosos no Divino Espírito Santo. É a razão porque, além do moinho empedrado-vermelho da Lomba da Conceição por ali constatamos também os edifícios-impérios prolíficos na ilha Terceira.
Negro, pejado de pedras basálticas arredondadas, submisso ao gigantesco Pico, o areal de Almoxarife volta a sublinhar a essência vulcânica do Faial que a faceta urbana da Horta por vezes nos fazia esquecer.
Nós e os banhistas que se divertiam nas vagas clementes do canal, tínhamos o Pico por diante.
No extremo oposto do Faial, reinava o vulcão Mistério dos Capelinhos. Com um quarto da altitude do Pico e um nome algo ternurento, este vulcão revelou-se bem mais destrutivo para o Faial do que o Pico alguma vez se atreveu a ameaçar.
Mergulho atrás de mergulho, onda após onda, o sol depressa caiu para o ocidente ali oculto.
Desiludidos com a sombra em que nos abandonou, antecipamos o regresso à Horta.
Genuíno Madruga e as Suas Prodigiosas Circum-Navegações
Voltamos a passar por Angústias. Em Angústias, encontramos Genuíno Madruga, outra das personalidades açorianas empreendedoras incontornáveis, nascido em Lajes do Pico mas desde criança radicado na Horta.
Genuíno recebe-nos no seu restaurante, com gentileza e paciência inesgotável para o tempo mais que contado em que andávamos.
Em 24 de Janeiro de 2008, Genuíno Madruga tornou-se o primeiro português – e o décimo velejador a nível internacional que, em solitário, conseguiu cruzar o tormentoso Cabo Horn do oceano Atlântico para o Pacífico. A acrescentar ao feito, cumpriu a travessia durante a segunda das suas navegações de volta ao mundo.
Sempre humilde, Genuíno como o só o baptismo lhe faz jus, Genuíno conta-nos como as suas vivências enquanto pescador e, sobretudo, os convívios posteriores com Marcel Bardieux – o primeiro navegador a cumprir a travessia em solitário – o inspiraram a também ele a perseguir o triunfo do amigo intrépido.
Essas suas experiências provaram-se de tal maneira recompensadoras que Genuíno mal disfarçava o prazer de connosco as partilhar, numa verbalização conveniente mas abreviada dos testemunhos que eternizou em “O Mundo que Eu Vi”, o livro da sua vida.
Uma obra para a história da Horta, do Faial e dos Açores.