Os longos recifes que protegem uma franja litoral preenchida com areia coralífera dão, a boa parte do leste da ilha Maurícia, uma transparência com dominante azul-turquesa que as grandes empresas hoteleiras depressa detectaram e disputaram.
Para sul da Pointe des Lascars, sobretudo onde os manguezais menos se imiscuem, sucedem-se os resorts sofisticados que têm, como alvo, clientes endinheirados e viajados.
A lei das Maurícias segue a francesa em que estes estabelecimentos são obrigados a dar acesso público às suas praias, pelo menos até denominada linha de maré alta. Sem surpresa, a sequência de resorts lado a lado e o tipo de atmosfera elitista que geraram e gerem afastam os nativos.
A Beira-Mar Prazerosa de Trou d’Eau Douce
O que encontramos num tal de Trou d’Eau Douce (leia-se “Buraco d’Água Doce) revela-se uma agradável surpresa. Ao largo, fica a Île-aux-Cerfs, uma ilha privada cercada pela maior lagoa das Maurícias.
A ilha mede quase 90 hectares. Muitos, foram preenchidos com um campo de golfe que lhe levou boa parte da pureza e genuinidade natural.
Ainda assim, mantêm-se aberta aos visitantes que possam pagar a viagem de barco, um investimento comedido que as águas translúcidas e as areias alvas convencem inúmeros mauricianos a fazer.
À margem do ferry, também ancoradas em Trou d’Eau Douce, lanchas, catamarãs e outras embarcações oferecem os seus próprios serviços particulares, périplos de snorkeling e panorâmicos e outros, complementados com saídas de mergulho e pesca para o oceano a oriente.
Trou d’Eau Douce está longe ser um mero ponto de partida. Com o devido desconto, a sua própria costa beneficia dos atributos da Île-aux-Cerfs.
Quando por lá estacionamos, damos com uma comunidade local de banhistas, pescadores e proprietários de barcos, com famílias inteiras enfiadas na água cálida, à conversa e grupos de amigos em caminhadas pelas margens.
Uns poucos timoneiros mantêm-se de olho em quem chega e nas respectivas oportunidades de negócio.
Se concretizadas, são invariavelmente conduzidas para o passadiço flutuante que leva a um aglomerado de lanchas coloridas.
De quando em quando, o ferry da Île-aux-Cerfs zarpa ou chega e renova as gentes que por ali passam.
De Oostersgat Holandês ao Trou d’Eau Douce de Génese Francesa
Moram em Trou d’Eau Douce quase seis mil pessoas. O interesse pelo lugar foi inaugurado, no século XVI pelos primeiros europeus que, contado quase um século após a descoberta da ilha Maurícia pelo navegador sadino Diogo Fernandes Pereira (1507), se dignaram a habitá-la.
Os marinheiros holandeses lá levaram a cabo desembarques e explorações, quase sempre em função das suas longas jornadas para as Índias Orientais Holandesas, a Indonésia de onde expulsaram os pioneiros portugueses.
O rio Belle Ville tem por ali a sua foz. Permitia-lhes reabastecerem-se de água doce e, no entorno, também de tartarugas e de dodós, cuja carne os alimentava no trajecto remanescente até Batávia.
Os primeiros holandeses fixaram-se a partir de 1653. Em 1710, desistiram da Maurícia. Seguiram-se os franceses.
Estes, apressaram-se a colonizá-la. Desenvolveram-na bem mais que os antecessores.
Quando as autoridades francesas se depararam com um mapa da ilha elaborado por um geógrafo neerlandês, repararam na sinalização de Oostersgat (Buraco do Leste). Este baptismo veio a inspirar o de Trou d’Eau Douce.
Com o passar dos anos, à imagem do todo do arquipélago das Maurícias, Trou d’Eau Douce tornou-se multiétnica. Professa, pelo menos, três religiões.
Acolheu duas mesquitas, uma igreja e um centro comunitário hindu.
À nossa passagem, os moradores e visitantes pareciam louvar, acima de tudo, o dia solarengo e o convívio.
Contagiados, damos um derradeiro e prolongado mergulho, antes de retomarmos o caminho para sul.
A Pointe du Diable e as Guerras Napoleónicas no Índico
A estrada B28 serpenteia pela beira-mar. Entre povoações com nomes francófonos, cada qual com a sua história. Passamos Quatre-Soeurs e Grand Sable. Nesta, volta a tornar-se exuberante a lagoa retida entre o recife coralífero e a costa.
Para o interior, sucedem-se plantações agrícolas, com predomínio das de cana-de-açúcar, a matéria-prima que os neerlandeses introduziram em 1639 e que, no século XVIII, já sob o jugo francês, viabilizou o desenvolvimento da ilha.
Abaixo de Grand Sable, a via ajusta-se a uma península que estreita sobremaneira o canal delimitado pelo leito superficial e arenoso aquém do recife.
Detemo-nos na sua extremidade fortificada, denominada Pointe du Diable, também conhecida por Pointe Canon, por razões óbvias.
Uma muralha acomoda uma bateria de canhões ainda apontados ao estreito adiante. Instalaram-nas os franceses, em 1810, por ocasião da Batalha de Vieux Grand Port, no contexto das Guerras Napoleónicas.
Travaram-na, em Agosto de 1810, um esquadrão de fragatas britânicas que procuravam bloquear o uso do porto pelos franceses.
Os britânicos falharam. Perderam as suas quatro fragatas, mais de cem marinheiros pereceram, muitos mais ficaram feridos. Esta batalha foi registada como uma das maiores derrotas dos Britânicos nas Guerras Napoleónicas.
Não obstou a que, cinco meses mais tarde, tivessem conseguido apoderar-se da ilha Maurícia.
Os britânicos apressaram-se a encher a ilha de cana-de-açúcar. Para tornar a produção do açúcar, do rum e derivados mais rentável, trouxeram milhares de trabalhadores contratados da Índia.
Ora, entre os canhões da Pointe du Diable, convivemos com um pai, dois filhos e uma filha, todos enfiados em trajes acetinados que, sob o sol tropical, brilhavam ainda mais que as suas peles melânicas.
Tinham aproveitado a sequência de feriados nacionais para visitar familiares mauricianos. Com tempo livre, também eles exploravam a Maurícia.
De Vieux Grand Port a Mahebourg
Logo após, contornamos a enseada a leste da emblemática Lion Mountain, o Vieux Grand Port histórico na sua base e o ponto do primeiro contacto dos holandeses com a ilha, sinalizado por um padrão de pedra.
Segue-se Mahebourg, outra povoação com génese neerlandesa que os franceses tomaram e desenvolveram, com o contributo decisivo de Mahé de La Bourdonnais.
Mahé de La Bourdonnais revelou-se um governador tão influente nos territórios franceses do Índico que – entre outros baptismos sob “La Bourdonnais” – deu o nome a Mahé, a maior ilha das Seicheles, com capital em Victoria.
A igreja de Notre Dame des Anges abençoa a povoação, destacada acima do casario secular.
Quando exploramos Mahebourg, tem lugar um mercado que preenche as ruas em redor do templo, mas deixa livre o adro, tropicalizado por coqueiros que disputam a altura do campanário.
A marginal na frente de Mahebourg volta a revelar-nos a lagoa marinha imensa que já acompanhávamos desde Flacq.
Incursão à Île-aux-Aigrettes e às Origens Naturais da ilha Maurícia
Insinuava-se na baía ao largo, uma grande ilha verdejante, conhecida por Île aux Aigrettes, uma reserva e santuário animal repleta de flora endémica e lar de uma fauna sui generis que a tornava imperdível.
Zarpamos para a curta viagem do embarcadouro de Pointe d’Esny. Cumprido o desembarque, nos passos de uma guia, desbravamos a natureza original, pré-colonial da ilha Maurícia, à sombra de uma predominante floresta de ébanos.
Era esse o habitat de duas das espécies que a caça e consumo dos holandeses e outros forasteiros de passagem fizeram extinguir: o dodó e a tartaruga gigante de Aldabra.
Tartarugas de Aldabra, os Dodós Extintos e outros
Ainda prolíficas no atol que lhes dá o nome, as tartarugas foram reintroduzidas na ilha, como foram noutras partes das Maurícias e das Seicheles.
Já os dodós, estima-se que deixaram de existir em 1681. A Mauritian Wildlife Foundation colocou na ilha umas poucas estátuas que permitem aos visitantes apreciar o perfil hiperbólico e peculiar da ave.
Se os dodós são a fingir, outras aves que avistamos com facilidade provam-se de carne e osso.
É o caso de vários pombos-rosa que parecem espiar os movimentos dos forasteiros.
Com o regresso à costa e à Mahebourg, damos por encerrado o percurso a que nos tínhamos proposto pelo oriente da ilha.
A sul, a oeste e no seu interior de cana-de-açúcar, a Maurícia tinha muito mais por explorar.