Um funcionário do Pestana Resort dá as boas-vindas aos passageiros.
Seguimos no seu encalço, por uma escadaria abaixo, debaixo de uma selva de encosta de que se destacavam um coqueiro já sem cocos, e uma vizinha palmeira, parecia-nos das que dão origem ao óleo de palma.
Rochedos escuros, de lava solidificada, serviam de base ao conjunto e de pouso a uma colónia prolífica de caranguejos demasiado curiosos para resistirem a espreitar.
Um mar tão verde como a vegetação afagava o magma. Subia e descia o cascalho que ali fazia de areal, até à popa de duas canoas tradicionais, cada qual escavada no seu próprio tronco.
No fundo da escadaria, subimos a bordo de um barco a remos desafogado e, com o céu a escurecer a olhos vistos, instantes depois, o anfitrião e barqueiro passa-nos para uma espécie de casca-de-noz metálica.
A balsa de destino destoava da embarcação em que pensávamos espairecer das duas horas que tínhamos passado no mini-bus, o tempo da viagem entre a capital São Tomé e a Ponta da Baleia.
Em vez, mal deixamos a baía profunda que também acolhe Vila Malanza e Porto Alegre, a balsa fica à mercê do Atlântico. Por umas meras centenas de metros, o do Norte.
A determinada altura, alinhados com Porto Alegre, vemos destacarem-se contra o céu carregado de gravana, as palmeiras excêntricas que delimitam a alameda de entrada na roça homónima.
Quase podíamos jurar que essas eram arecas-bambu, de tão peculiar é o seu tronco longo e fino, coroado por uma copa diminuta em jeito de espanador.
Vence-se o quarto de hora habitual da travessia. Continuam a agitar-nos as vagas vigorosas do Atlântico quase sul, algumas, de tal maneira atrevidas que se desfazem para dentro da embarcação.
Distanciamo-nos de São Tomé, entre golfinhos saltitantes, entretanto, no enfiamento do Cais Ilhéu das Rolas.
Da roça Porto Alegre, já só vemos a copa das palmeiras de areca e o cimo da velha mansão que lhe servia de sede logística e operacional.
Acima, insinuava-se a ponta aguçada do Pico Cão Grande (663m de altitude, 300m a partir do solo), o guardião de fonólito de Ôbo, a selva que reveste o sudoeste de São Tomé de mistério tropical.
Por fim, sobre as onze da manhã, desembarcamos para o domínio exógeno do resort Pestana Equador.
Os passos inaugurais no Ilhéu das Rolas confrontam-nos com a capela amarela e azul de São Francisco de Xavier, um templo impreterível, como tantas outras do arquipélago.
São Tomé e Príncipe foi colonizado, durante o século XVI sobretudo de cristãos-novos que a Inquisição expulsou de Portugal mas também de esclavagistas e dos escravos que asseguraram os cultivos pioneiros de cana-de-açúcar do arquipélago.
Com o tempo, o açúcar brasileiro, muito mais abundante e de melhor qualidade, tornou dispensável o de São Tomé.
Em simultâneo, à imagem da Cidade Velha da ilha de Santiago de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe tornou-se uma plataforma de fornecimento de escravos para o Brasil.
Todas as tardes, dezenas de descendentes dos trabalhadores forçados trazidos das costas de África.
Ou, mais tarde, migrados de Cabo Verde, disputam partidas animadas de futebol em frente ao templo, nas imediações do pelourinho da ilha e da mansão colonial restaurada que o tem num pequeno jardim.
Mesmo murado, o átrio arenoso da capela falha em suster algumas bolas mal direccionadas ou ricocheteadas. Recuperá-las vem com a recompensa de um mergulho no mar esmeralda abaixo.
Também nos prendamos com alguns. Não tão breves, ainda assim, apressados pela ânsia de desvendarmos a ilha real para lá do hotel.
Em tempos, o Ilhéu das Rolas acolheu mais de 600 santomenses, sustidos pela escola local, por uma série de pequenos negócios, por alguma terra arável e pela pesca fácil e garantida.
A partir de 2004, no entanto, o Pestana Equador ocupou o norte do ilhéu.
É verdade que empregou uma parte dos moradores.
Mas também será que procurou cada vez mais a exclusividade insular, através de desalojamentos compensados por indemnizações que a comunidade local classificou de parcas e mal-intencionadas.
Hoje, de quase 700 santomenses, resta um décimo dos que continuam a resistir às ofertas do Grupo Pestana, o maior investidor de São Tomé e Príncipe, gerador de para cima de 600 empregos em todo o país.
Verdade seja dita que, empregados do resort à parte, durante a caminhada de descoberta do Ilhéu das Rolas, não encontramos um único morador.
A ajudar à festa, conseguimos a proeza de ler mal o mapa.
Em busca de umas alegadas ruínas do velho forte, perdermo-nos por trilhos desusados, com a vegetação em redor da cratera do vulcão mais próxima densa e alta.
Desorientamo-nos, aliás, por tanto tempo, que nos convencemos de que o termo ilhéu estaria desadequado. Cruzamo-nos com uma vara de porcos, enlameados e assustados pela nossa aparição numa terra por norma, só sua.
Perdemo-nos ainda mais, até que decidimos ligar os dados do telefone e pagar um balúrdio em roaming, o preço de sabermos onde nos tínhamos metido e como dali sairíamos.
No regresso ao ponto de partida, damos connosco num outro trilho, litorâneo e fácil de seguir. Acompanhava os recortes da costa leste da ilha, quando nele entramos, entre o Miradouro do Amor e o sul rugoso, dramático, da Ponta Cabra.
Por ali, sucediam-se enseadas profundas com grandes falésias de lava solidificada em tons de negro e de ocre que faziam realçar o verde da floresta tropical.
Diferentes padrões e orientações, revelavam distintas camadas lávicas. Da terra e poeira acumulada entre algumas, despontavam coqueiros acrobáticos, libertos da competição acérrima que os congéneres viviam no cimo das falésias.
O Atlântico invade estas enseadas com uma fúria concentrada.
Investe com vagas de um branco-azulado que fazem rolar e troar grandes pedras de basalto polidas por uma fricção milenar. Indiferentes e atarefados, espécimes de rabos-de-palha-de-bico-laranja sobrevoavam a brusquidão dos elementos, em incansáveis idas-e-voltas de pesca e regresso aos ninhos.
O embalo das vagas fez desaparecer, quase por completo, os areais das prainhas Escada e Joana que, sob uma meteorologia mais favorável, resplandecem, como que encaixadas na selva, e são das mais pitorescas e sedutoras de São Tomé e Príncipe.
De acordo, inauguramos o regresso à ponta norte, com passagem pelo farol da ilha, erigido em 1929.
Sem sequer nisso pensarmos, já tínhamos cruzado a linha do Equador, uma vez para cima, outra, para baixo.
Nesta terceira passagem, vamos directos ao marco que o assinala, o monumento supremo do Ilhéu das Rolas, também conhecido como Centro do Mundo.
Na viragem para a segunda década do século XX, eram precárias as noções geográficas e topográficas do arquipélago.
Resumiam-se a medições com o objectivo de estabelecer os limites das roças que, em ilhas diminutas, a determinada altura, entravam em conflito.
Essas medições e levantamentos careciam de uma rede geodésica e do respectivo rigor.
Ora, por essa data, além de oficial da marinha, Carlos Viegas Gago Coutinho, era já um aviador, geógrafo cartógrafo e um piloto com todas as qualificações e mais alguma para levar a bom porto a recém-delineada missão geodésica de São Tomé, a concretizar entre 1915 e 1918.
Em 1916, Gago Coutinho desembarcou incumbido de realizar a triangulação geodésica de São Tomé, de maneira a viabilizar uma carta topográfica do arquipélago na escala 1/25.000.
As suas medições e estabelecimento de vinte e duas marcas principais e dezanove marcos secundários prolongaram-se por 1917 adentro.
Malgrado a existência de referências inconfundíveis que serviam de pontos dos vértices, casos do Charuto, o Cão Grande e do Cão Pequeno, entre outros, a nebulosidade quase residente que os envolvia obrigou Gago Coutinho e à sua equipa a acamparem nesses lugares por vários dias.
Onze, doze e até quinze, sempre embebidos em humidade, ou encharcados pelas chuvas frequentes, como aconteceu em redor do Pico Cantagalo (848m).
As contas decorrentes, essas, deram que fazer até 1919. Dois anos decorridos da sua chegada, Gago Coutinho forneceu a carta final e o Relatório da Missão Geodésica, tido como o primeiro trabalho de geodesia completo de uma das colónias portuguesas.
Dos vértices a que chegou, destacava-se o do Ilhéu das Rolas, medido a partir do Equador.
Com este vértice primordial, Gago Coutinho provou que a latitude zero atravessava o norte do Ilhéu das Rolas em vez de passar entre o ilhéu e São Tomé como, até então, se supunha.
Em 1936, foi erguido o monumento que celebra a passagem da Linha do Equador e o trabalho de Gago Coutinho, com uma esfera armilar branca assente num mapa-mundo gráfico e garrido, como, entretanto, o encontramos, envolto de coqueiros, de bananeiras, com vista para o Atlântico Norte e um vislumbre de São Tomé.
Bem admirado o monumento e o panorama, sentamo-nos na pequena bancada, a recuperarmos das horas de caminhada que levávamos nas pernas.
De novo compostos, fazemos as nossas fotos. Algumas já esperadas, com um pé em cada um dos hemisférios da Terra. Outras, segundo outros vértices fotográficos que nos vêm à cabeça.
Sobre a Latitude Zero e o Ilhéu das Rolas, todos os dias duram o mesmo. Aquele ia longo, com o ocaso e a hora de todas as picadas iminente.
Abreviámos o regresso ao refúgio do resort, já em terras do Hemisfério Norte.