A viagem de autocarro a partir de Baku pouco mais serviu que de um ajuste geográfico e de sono.
Prendados com dois lugares sobre o motor, aquecidos a condizer, o inesperado e madrugador aconchego depressa nos deixa sedados.
Adormecemos pouco depois de deixarmos a capital azeri. Só despertamos quase às onze da manhã, com o bus a dar entrada na estação de Quba.
Lá nos saúdam Elkham e Idris. Elkham, o pequeno empresário do turismo, ajuda-nos a trocar mais alguns dólares por manats.
Fechado o pagamento do que lhe devemos, entrega-nos a Idris, o condutor e guia, que nos transmite de imediato que a única língua estrangeira que fala, é russo.
Mais por gestos que por outra coisa, Idris convida-nos a segui-lo e a embarcarmos no jipe em que era suposto cumprirmos a viagem. Numa terra ainda de Ladas, percebemos que se orgulhava do seu.
Um Niva. Jipe, em vez de um qualquer Lada. “Niva!!” sublinha-nos, com entusiasmo, a qualidade e a segurança extra do modelo.
Cáucaso Acima, Rumo à Elevada Khinalig
Partimos. De início, avançamos ao longo do casario estendido de Quba. Pouco depois, por lombas e meandros de uma estrada esguia que emulavam os do rio Qudyal Çay.
Fica para trás uma aldeia chamada Qimil-qazma. A via em que seguíamos passa a chamar-se Xinaliqolu. Xinaliq, o destino final, também tratado por Khinalig, Khynalyk, Khanalyk, Kinalugh, Khanaluka, entre outros, distava pouco mais que 30km.
Uma hora quase sempre a subir que, por imperativos contemplativos, fotográficos e não só, cumpriríamos no dobro do tempo.
A paragem inaugural, fazemo-la à entrada de um desfiladeiro, onde a via serpenteava pela base de uma falésia profunda, inclinada, de modo vertiginoso, sobre o rio e sobre enormes rochedos largados por derrocadas.
Ladas e Mais Ladas também na Municipalidade de Khinaliq
Apreciamos o cenário apertado, medimo-lo pela escala do trânsito que o percorria, de Ladas e apenas Ladas. Idris aproveita para fumar um cigarro à pressa. Após o que continuamos.
Estamos no fim de Novembro e os nevões a sério atrasados. Subimos, assim, com bastante mais firmeza do que contávamos, assente na tracção 4×4 e nos pneus só quase carecas do carro.
Pelo caminho, passamos por vários outros Ladas, quase sempre os mais icónicos mas modestos modelos 2106 ou 2101, encostados à berma com problemas mecânicos.
Atingimos um qualquer cimo intermédio de que se destacava o monumento sinalizador da belediyesi (municipalidade) de Xinaliq, coroado por uma águia de asas quase na vertical, apontadas ao céu azulão.
Idris faz-nos sinal de que vai voltar a encostar: “foto, cigarret!”, assim nos esclarece.
Detém-se a pouca distância de um velho táxi Lada 2106, massacrado pelas ladeiras brutais e a que o condutor se via obrigado a acrescentar óleo ou água.
Enquanto o taxista ancião tratava do fluído em falta, juntavam-se-nos outros visitantes da região. Os mais jovens, faziam questão de subir ao pouso de pedra e tijolo da águia e de se fotografarem na sua companhia.
O taxista resolve o problema mecânico e retoma a viagem. Seguimos-lhe o exemplo.
As Montanhas do Cáucaso que Anunciam a Aldeia
Acima e abaixo de novas montanhas e vales, entre as elevações de ambos os lados da estrada, sobre ravinas cada vez mais arrepiantes, também por rectas que sulcavam uma terra dura e ocre.
Que apontavam a cumes acima dos 3500m, esses sim, carregados de neve, o Quizilkaya (3726m) e o Tufandag (4191m).
Tanto subimos, tanto nos detemos e prosseguimos que acabamos por chegar.
O casario de Khinalig revelava-se encavalitado num morro, envolto de encostas e assomadas pardas de neve resistente.
A essa hora, a configuração do relevo e a posição das nuvens aliavam-se para concederem à aldeia o estrelato luminoso.
O seu castro de lares de pedras alisadas e empilhadas resplandecia, os tectos de zinco destacavam-se dum entorno escurecido. Idris estaciona em frente a um desses lares, sob o esgar inquisidor de vacas e ovelhas vizinhas, soltas dos seus currais.
Recebe-nos um homem de meia-idade. Idris apresenta-nos a Orxen.
O Acolhimento Dedicado da Família Badalov
Este, leva-nos para o interior da casa em que nos iríamos hospedar. Instala-nos na mesa da sala.
Serve-nos chá turco, do preto, servido avermelhado, de um bule de cerâmica floreada para copinhos de vidro diminutos.
Como Idris, Orxen pouco ou nada falava além de azeri e russo.
Nós, malgrado termos prometido vezes sem conta que iríamos aprender russo, continuávamos a dominar apenas cinco ou seis palavras.
No momento, com a fome que todos partilhávamos, essas cinco palavras pareciam multiplicar-se, como acontecia com as travessas, pratos e pratinhos, os veículos dos sucessivos petiscos azeris.
Incumbido de nos acolher, Orxen tinha interrompido um seu outro qualquer afazer. Idris ainda voltaria a Quba.
Nós, não nos conseguíamos abstrair da fotogenia esplendorosa com que Khinalig nos tinha recebido.
Preocupava-nos que, de um momento para o outro, todo o vale ficasse à sombra.
Neste apoquento comum, a refeição vai-se em três tempos. Idris e Orxen às suas vidas.
Pomos as mochilas às costas. Saímos à descoberta de Khinalig, com mais urgência, de um ponto sobranceiro de onde a contemplássemos e aos seus ajustes ao poente, em formato panorâmico.
Em função dessa missão, galgamos uma crista de terreno que subia do morro da povoação. Cruzamo-nos com ovelhas que desciam dos seus pastos favoritos.
Passamos por pequenos cemitérios tresmalhados, sinalizados por lápides trabalhadas, só por um pouco, mais amareladas que o solo.
Por fim, atingimos um topo satisfatório. Por essa altura, o sol já alaranjava as nuvens.
Aos poucos, amornava o visual da povoação.
Sentamo-nos a recuperarmos o fôlego e a absorvemos a epopeia no Cáucaso de Khinalig, uma história que vem de há muito.
O Passado Milenar do Povo Khinalig
Malgrado a altitude, estudos arqueológicos permitiram concluir que a zona já era habitada há cerca de quatro milénios.
Numa era mais recente, conhecida como a Albânia Caucasiana, já o povo Khinalig, uma das minorias que integram o grupo étnico Shadagh (termo derivado do Monte Shadagh, 4243m) estava presente.
Estima-se, aliás, que fossem um dos vinte e seis povos que o viajante e historiador grego Estrabão mencionou na sua “Geografia”.
Isolados pelas montanhas, desenvolveram uma cultura que, como o dialecto que continuam a usar, lhes é única.
Em simultâneo, um perfil físico que se tornou característico: corpos médios-baixos e volumosos, cabelos castanhos, olhos azuis, ou então castanhos.
Escurece.
Descemos para o casario, aqui e ali, seguidos e provocados para brincadeiras fotográficas por miúdos, um deles, descobriríamos, pouco depois, o membro mais novo da família que nos ia acolher.
Refugiamo-nos do frio crescente a bebermos um chá num café-mercearia. Aí, percebemos o quanto os visitantes eram disputados pelos locais.
O proprietário informa-nos, de imediato, que tem lugar para dormirmos.
Quando retorquimos que já temos isso resolvido, pergunta onde, quanto pagamos e outras coisas mais.
Satisfazemos-lhe a curiosidade quando recebemos um SMS de Elkham.
Hijalaba Badalov, um Anfitrião Orgulhoso
Inteiramo-nos que o Sr. Hijalaba Badalov, o chefe da família, estava apoquentado por ser de noite e não saber de nós. Preocupados pela sua inquietude, improvisamos o regresso a casa, à pressa.
De volta ao abrigo do lar, recebe-nos a esposa do sr. Hijalaba. Volta a instalar-nos à mesa da sala, amornada por uma salamandra que queimava estrume de vaca e ao som ambiente de um enorme ecrã de TV.
Reposta a mesa, com pão, entradas, sopa de carne, chá e outros, aparece o sr. Hijalaba.
Sendo ou não Khinalig, tinha o perfil esperado de um habitante de Khinalig, os olhos azuis-claros, não os castanhos.
O anfitrião falava dois dialectos, à parte do russo e do azeri. Nenhum dos quatro nos era útil. Voltamos, assim, a confrontar-nos com a barreira linguística da hora do almoço.
Hijalaba tinha, no entanto, um dever acentuado de nos integrar. Era, para mais, o patriarca orgulhoso de uma família numerosa, habituada a receber forasteiros.
Refeição fora, com recurso aos mesmo cinco ou seis termos russos, surpreendemo-nos com a proficuidade do convívio.
Hijalaba conta-nos que tinha irmãos a viver na Sibéria, que, apesar dos 4.000 km de distância, já os tinha ido visitar, de carro, imaginamos que num Lada, noutro tempo que não o do seu serviço militar soviético, passado no frio quase sempre congelante de Novozibirsk.
Terminamos o repasto. Badalov entra em modo cicerone.
Revela-nos os seus cantos preferidos da casa. Uma vitrina-museu iluminada, com uma bandeirola azeri, cheia de velhas notas e moedas, medalhas, relíquias de pedra.
Uma colecção de armas, espingardas, fuzis, espadas, sabres e afins, afixada num recanto ao lado.
Junto à escada em L que ligava os dois pisos, uma pintura de uma Khinalig estival, com as montanhas em volta em distintos tons de verde.
Hijalaba Badalov diz-nos que o quadro é obra sua, mas que pintava só para se entreter, que não dava muito valor ao que fazia.
A Noite Estrelada Passada na Casa Badalov
Chega a hora de o deixarmos à sua paz. De o entregarmos à TV que adorava ver, sobretudo documentários de animais e, com interesse inusitado, episódios do Inspector Gadget, uns a seguir aos outros.
Graças aos satélites Sputnik, as várias TVs da família apanhavam centenas de canais. O único senão: viam-se obrigados a mexer na antena com demasiada frequência.
Mudamo-nos da sala para o quarto que, por comparação, está um gelo. Dormimos directo até às duas da manha, hora em que o chá em excesso do jantar nos obriga a buscar a casa-de-banho.
Ficava lá fora, da casa toda, não do quarto. Num exterior de uns quaisquer graus negativos enregelantes.
Para compensar, tinha como tecto a abóboda celeste, como a víamos daquelas alturas do Cáucaso, a transbordar de astros.