Tal como o ano, o dia decorre, bem avançado na sua segunda metade.
Quando damos entrada no âmago de Kronstadt, imune ao tempo, a estátua que louva o oceanógrafo e almirante da Marinha Imperial Russa, Stepan Makarov aponta para diante, na direção do futuro e na do inimigo.
O mesmo rumo destruidor que seguiam os torpedos que, ainda no século XIX, foi o primeiro comandante a fazer lançar.
Àquela hora, com o Outono local fulgurante, Kronstadt vive a sua habitual vida dupla.
Kronstadt e os Novos Marinheiros da Grande Rússia
Em frente à entrada da catedral ortodoxa e naval de Saint Nicholas, tem lugar uma espécie de cerimónia de compromisso de honra dos novos cadetes, pouco mais que adolescentes, rapazes e raparigas de cabelos, também eles, outonais, em uniformes negros-dourados que lhes fazem as peles ainda mais alvas.
Um comandante veterano coordena a formação em que os seus pupilos se preparam para serem fotografados e, em jeito de encerramento oficial, escutar o hino russo.
Voltam a sustentar esta demanda anual pelos próximos “Makarovs”, a Pátria, na forma de uma bandeira branca-azul-vermelha empunhada entre espadas em riste.
E a igreja ortodoxa, na falta de um sacerdote de carne, osso e barbas longas que abençoe os jovens marujos, representada pelas imagens de santos agrupados em nichos simétricos da fachada.
Passam moradores da cidade. Uns atrás dos outros, domados pelas suas vidas. Já pouco os impressiona ou comove a recorrente pompa e cerimónia naval.
Todos nos parecem nos antípodas do assombro em que andávamos, acostumados ao cenário belo-e-amarelo surreal do Ravine Park, em volta da catedral e da sua praça.
O Outono Matrimonial do Ravine Park
Umas poucas almas festivas quebram a formalidade e a gradual anestesia em que se via Kronstadt. Malgrado ser quinta-feira, duas delas estavam casadas de fresco. Uma amiga, fotógrafa de ocasião, três ou quatro adultos e miúdos, formavam um séquito entusiasmado.
Mesmo se remediada em termos de equipamento, a fotógrafa estava consciente do privilégio paisagístico com que a Natureza a prendava e aos noivos.
De acordo, fá-los descer até meio de uma ladeira cercada por árvores repletas de folhas outonais, mas que as haviam perdido o suficiente para cobrir o ervado em que assentavam.
Ali mesmo, a amiga com jeito para a fotografia comandava uma produção que, como a víamos, estava condenada ao sucesso.
Sobre o deslumbrante tapete vegetal, os noivos abraçavam-se, beijavam-se e atiravam folhas para o ar e sobre si mesmos. Insatisfeita, a fotógrafa faz de dois dos miúdos auxiliares.
Um de cada lado, em sincronia, passam eles a lançar folhas para cima do casal.
Sob essa renovada chuva outonal, o casal retoma as poses, os beijos e restantes preparos que selam, na memória digital da mini-câmara, a lembrança que se esperava imaculada do seu amor.
Kronstadt e a sua Génese Secular, às Portas de São Petersburgo
Ao longo dos seus mais de três séculos de existência, Kronstadt confirmou-se uma cidade bipolar, habitada por gentes, pelos seus negócios, vidas e mortes. Ao mesmo tempo, sempre militar, uma ilha-fortaleza incumbida de lutar e de resistir.
Até 1703, essa mesma ilha era sueca. Tinha o nome de Kotlin. No contexto da Grande Guerra do Norte que opôs o Império Russo ao Império Sueco, os primeiros tomaram-na.
Ciente da sua importância estratégica, Pedro o Grande mandou de imediato fortificá-la e moldá-la.
Desse ano em diante, sob as ordens do recém-nomeado governador Menshikov, sobre o Golfo da Finlândia gelado, milhares de trabalhadores sacrificaram-se ao Inverno quase boreal.
Nesses meses de frio atroz, os homens viram-se forçados a esculpir aberturas no gelo que delimitavam com enormes molduras feitas de troncos.
Quando as conseguiam estabilizar, enchiam-nas de pedras trazidas por cavalos.
Um após o outro, estes remendos geológicos originaram canais e novas ilhas, boa parte delas usadas para expandir a fortaleza e reforçar o seu poder defensivo.
Por essa altura, por oposição à realidade actual da Rússia, Pedro o Grande inspirava-se no melhor da florescente civilização da Europa Ocidental e nos seus prodígios.
Ao ponto de ter nomeado um veterano foragido da Marinha Real Escocesa como posterior governador de Kronstadt.
A Gradual Internacionalização de Kronstadt
Pedro o Grande seduziu comerciantes das principais potências navais a, via Liga Hanseática, abrirem entrepostos às portas da grande São Petersburgo.
Os Britânicos, em particular, tornaram-se tantos e tão bem instalados que, chegado o reinado de Catarina a Grande, muitos se haviam já naturalizado russos e controlavam os fluxos mercantis daquela região.
Vivia-se tal inusitada simbiose quando, em 1854, a Guerra da Crimeia fez dos Russos inimigos dos Britânicos, estes, enquanto aliados do Império Otomano e da França. Nicolau I, viu-se com motivos de sobra para retomar a expansão e o reforço de Kronstadt.
De volta ao extremo sudeste da ilha de Kotlin e ao domínio ortodoxo da catedral São Nicholas, a comemoração da boda está para durar.
No entretanto, duas amigas da noiva tinham-se juntado à comitiva, ambas em saias vermelhas, protegidas do frio vespertino por casacos e cachecóis de peles.
A fotógrafa recupera a ajuda dos miúdos. Sob o turbilhão de folhas que estes voltavam a gerar, fotografa a noiva e os amigos, entre grandes sorrisos irrigados por champanhe.
Os cadetes, esses, tinham já recebido ordem de soltura. Vemos uma maioria regressar aos seus aposentos da academia. Uns poucos, infiltram-se nos Parques Ravina e Petrovskiy.
Fazem-se envolver do amarelo e dourado predominantes. E fotografam-se e ao seu orgulho, por essa altura, indisfarçável, de integrarem a poderosa Marinha Russa.
E, no entanto, na longa história de Kronstadt, tornou-se inquestionável a autonomia e irreverência dos seus comandantes e marinheiros.
Para o confirmarmos há, antes que tudo, que regressar ao período conturbado da Guerra Civil Russa.
A Rebelião de Kronstadt e a Incógnita dos Nossos Dias
Contagiados pela força e pelas promessas do Movimento Bolchevique, os marinheiros de Kronstadt aderiram à facção vermelha da Revolução e, chegaram mesmo a executar os seus oficiais.
Decorridos três anos e pouco da prisão e, logo, execução do derradeiro Czar Nicolau II, os marinheiros de Kronstadt já partilhavam uma mesma frustração pelo rumo dictatorial e maquiavélico por que governo soviético conduzia a nação em expansão.
Então Ministro da Guerra, Leon Trotsky enviou a polícia secreta Cheka e o Exército Vermelho que também liderava para a ilha de Kotlin, com a missão de suprimir a rebelião. Trotsky conseguiu-o. Não evitou um massacre que, como as mortes e o sofrimento, entretanto perpetrados nos Gulags, a União Soviética e os seus sucessivos ditadores falharam em apagar.
Em 1930, Kronstadt passou a acolher a Frota Soviética do Báltico. Tornou-se providencial em termos de treino dos marinheiros chegados dos quatro cantos da U.R.S.S. e também enquanto estaleiro naval do Báltico.
Entrou em cena a 2ª Guerra Mundial. Os alemães bombardearam Kronstadt e a sua frota vezes sem conta, provocaram a destruição de diversos navios e de estruturas das fortalezas, bem como de dezenas dos seus marinheiros e trabalhadores.
Reconhece-se, todavia que, em grande parte devido ao poder de resistência e de resposta de Kronstadt, os Nazis falharam em conquistar Leninegrado (nome Soviético de São Petersburgo). Uma das recompensas de Kronstadt foi o título de “Cidade de Glória Militar” que preserva.
Numa altura em que o governo saudosista da grande U.R.S.S. e da Rússia Imperial de Putin desafia nações supostamente irmãs e boa parte do Mundo com agressão militar e violência, aumenta exponencialmente o número de homens em fuga da Rússia.
Confrontado com a debandada aflita de boa parte da sua população, o ditador prepara-se para encerrar fronteiras.
Em Outubro de 2022, como em 1921, Kronstadt marca o ponto mais fortificado do nordeste da Rússia, na iminência da Finlândia, da Suécia, dos Países Bálticos e da Polónia que cada vez mais Russos discordantes do Kremlin procuraram alcançar.
Neste curto Outono, em que se agrava o esfriamento das relações entre a Rússia e o Ocidente e que precede o congelamento do mar em torno da ilha de Kotlin, recordamos com saudosismo o dia que passámos na Kronstadt amarela-dourada e a felicidade contagiosa dos seus noivos.
Cogitamos acerca do que pensarão os jovens marinheiros que vimos alinhados, se a Rússia que agora servem não lhes suscita já o ensejo de nova rebelião.