Desde pouco depois das seis da manhã que percorríamos o litoral sudoeste da República Dominicana com partida da Casa Bonita e o Km. 17 da Carretera de la Costa, com paragens sempre que não resistíamos ao encanto dos lugares e das pessoas porque passávamos.
Decorridas duas horas e meia, atingimos as imediações do Centro de Visitantes da Laguna de Oviedo com fome e a precisarmos de renovar energias. Carlos, o condutor e guia seguia em sintonia connosco.
De acordo, em vez de desviar de imediato para a via que lá nos levaria, avançou umas centenas de metros adicionais na ruta 44 e estacionou mesmo à entrada de um negócio de beira de estrada que conhecia de vários anos de visitas à lagoa e de ginjeira. A mercearia da beira da estrada chamava-se colmado Alba.
Ditou o passar dos anos que os dominicanos adaptassem às pequenas lojas de víveres e outros produtos para a casa, o termo castelhano – e também usado em Espanha – colmado. O vocábulo deriva do verbo colmar, sinónimo de “encher”, “completar” mas também, de um modo mais figurativo, “satisfazer”.
De acordo, Dona Alba, a proprietária, serviu-nos cafés de termo, bem quentes mas muito mais açucarados do que estávamos habituados a saborear. Para o caminho, ainda trouxemos duas Maltas, bebida gaseificada de malte que tínhamos a impressão (não a certeza) que tínhamos bebido a última vez numa longínqua última visita à Venezuela de Outubro de 2013.
Por Fim, a Chegada à Longínqua Laguna de Oviedo
Carlos termina o café. Remata a empanada da sua satisfação. Despedimo-nos de Alba e do rapaz que a ajudava no estabelecimento. Dali, ao Centro de Visitantes instalado à margem do limiar nordeste da lagoa, não tardaram sequer dois minutos.
Lá nos recebem Saturnino (Nino) Santana e o colega Héctor, de nome oficial Juan Carlos Jiménez. São os dois nativos das redondezas, membros já com historial da Asociación de Guias de la Naturaleza de Oviedo.
Saturnino saúda Carlos com sentimento. Logo, assume o protagonismo do duo. Conduz-nos à frente de um mapa afixado e inaugura as explicações essenciais à exploração e ao conhecimento da laguna em cujas margens ambos cresceram, uma lagoa, há que sublinhá-lo bem sublinhado, mais que incomum, extravagante.
De entre as várias singularidades da Laguna de Oviedo salta à vista, no mapa, a língua de terra longilínea e insignificante que a separa do vasto Mar das Caraíbas. “É essa mesma proximidade que faz a lagoa salgada como é o que lhe dá a cor que tem e a torna especial por várias outras razões. Daqui a nada já vão perceber e sentir aquilo de que estamos a falar.” afiança-nos Saturnino.
Daquele recanto do Centro de Visitantes caminhamos em direcção à margem. Pelo caminho, passamos por uma vara de porcos domésticos entretida a escavar raízes num pedaço de terra ensopada à sombra de coqueiros. O corpo de água esverdeada da lagoa jazia, imóvel, ali ao lado.
A Hora Ainda Fresca do Embarque
Subimos a um pequeno molhe de madeira. Logo, a bordo de um de vários pequenos barcos a motor com tejadilho sustido por barras em forma de xis. Durante mais de três horas, esse tejadilho, elementar mas providencial, protegeu-nos do sol inclemente que ali castiga a vegetação e evapora a água pouco profunda (1.5m).
Só quando zarpamos observamos algum movimento na superfície da lagoa. À medida que nela nos internamos, cruzamo-nos com as primeiras aves em voo: Um trio de garças brancas, dois íbis. Ao longe, a silhueta distendida, quase anguina de um flamingo solitário.
Contornamos uma península rochosa. Do lado de lá, a margem mais próxima é promovida a vertente, uma verdadeira encosta forrada de arbustos verdejantes de que se destacam cactos com ramificações intrincadas.
Hector aponta o barco a uma das vinte e quatro ilhotas disseminadas pelos 23km2 da lagoa. À medida que nos aproximamos contraluz, a quantidade de silhuetas de íbis, garças de outras espécies de passarada aumenta. Hector dá a volta ao ilhéu.
Íbis, Garças, Flamingos e Cia.
Aos poucos, as silhuetas transformam-se em imagens perfeitas das aves empoleiradas no cimo dos galhos e cactos que preenchiam aquela intrigante ilha aviário.
Dali, avançamos em direcção a El Salado, uma área subdividida da lagoa, contida por um braço de areia elevado. Saturnino dá-nos indicação para fazermos silêncio e para espreitarmos para lá desse braço, à distância.
A água é ali bem mais rasa que aquela em que navegávamos. Ainda sem brisa, espelhava a vegetação acima em tons viçosos de verde.
Deixamos o barco para um lodaçal típico das áreas de manguezal. Subimos para cima do banco de areia e camuflamo-nos atrás do mato denso e espinhoso que se erguia acima das nossas cinturas.
Através de uma abertura no mato escolhida a dedo, avistamos uma área daquela sub-lagoa salpicada de manchas rosadas que se moviam quase em câmara lenta.
Não estávamos sequer na época do ano em que ali afluem em maior número mas, mesmo assim, a Laguna de Oviedo acolhia uma colónia abundante de flamingos migrantes.
Aproximamo-nos o mais possível sem os fazermos debandar. Apreciamos as suas persistentes prospecções dos crustáceos que lhes dão a cor. E, claro está, fotografamo-los. Satisfeitos com a incursão, regressamos ao barco e à companhia de Hector.
Das Aves aos Répteis da Laguna de Oviedo
Havia já algum tempo que a lagoa nos prendava com a sua paisagem e com o avistamento de aves. No percurso seguinte, Saturnino e Hector trataram de quebrar essa falsa monotonia. “Sabem que quando nós éramos miúdos, gostávamos de ir até àquela mesma parte da lagoa, enchíamos os corpos de lama e ficávamos assim por ali a passear, a conversar enquanto a lama nos tratava da pele.
Nessa altura, era mais uma traquinice. Mas, a verdade é que com o passar dos anos e a vinda cá de alguns famosos da República Dominicana, os banhos de lama da Laguna de Oviedo se tornaram populares.
Agora, recebemos grupos que chegam quase mais pelo tratamento de pele que pela fauna e flora.”
Não era de certeza o nosso caso. Saturnino sabia-o. De tal maneira que ele e Hector não tardaram a ancorar o barco num tal de Cayo Iguana. Outra das 24 ilhas da lagoa.
Damos apenas uns dez passos sobre a sua superfície meio terrosa meio rochosa quando confirmamos a lógica do baptismo que recebera. Saturnino tinha arrancado umas cerejas selvagens de uma árvore. Não precisou sequer de as exibir.
Três ou quatro iguanas detectaram a intrusão da comitiva de humanos e apressam-se a estabelecer contacto. Saturnino oferece-lhes as cerejas. Várias mais aparecem, vagarosas, mas nem tanto assim. Surgem do interior do mato, competitivas e ansiosas de devorar um daqueles inesperados petiscos.
A determinada altura, vemo-nos num estranho convívio com iguanas do tipo rinoceronte (cyclura cornuta) e Ricord (cyclura ricordi). A cena faz-nos sentir na já bem velha série televisiva de ficção científica “V”, em que alienígenas humanóides e reptilíneos se infiltram aos poucos e acabam por dominar a Terra.
Regresso Pela Orla Marinha da Lagoa
Por essa altura, tínhamos ultrapassado e de que maneira o tempo previsto para a volta na Laguna de Oviedo. Em vez de se mostrarem importunados, Saturnino e Hector revelam-nos um derradeiro recanto da lagoa, a sua zona de Los Pichiriles. Ali, avistamos novo bando prolífico de flamingos.
Admiramo-los na sua elegância pernalta mas também em várias descolagens, momentos de incrível beleza coreográfica quando em duos e trios, sincronizam os seus movimentos e chegam a voar num modo que nos parece clonado.
Em Los Pichiriles, estamos o mais perto do Mar das Caraíbas de todo o itinerário ziguezagueante que havíamos cumprido.
Ali, na iminência do oceano, percebemos melhor que nunca o fenómeno que tinha gerado a hipersalinidade da lagoa. Com o tempo, a barreira de calcário que em tempos manteve a lagoa isolada, cedeu à erosão e tornou-se permeável à entrada de água marinha.
Enquanto o influxo de água salgada oscila sobretudo com as marés e as correntes, a entrada da água doce depende da chuva que cai directa sobre a lagoa e dos caudais que para lá fluem provindos da Serra de Bahoruco. A cor extravagante da lagoa deve-se aos sedimentos arrastados pela entrada subterrânea da água marinha.
Regressamos ao Centro de Visitantes, despedimo-nos dos cicerones e ficamos uma vez mais entregues a Carlos. O regresso iria demorar pelo menos mais duas horas. Com tempo e um sinal de internet que ia e vinha, decidimos investigar o único aspecto da Lagoa de Oviedo que nos continuava a intrigar: o seu nome.
O Porquê Histórico de “Oviedo”
Sabíamos que andávamos em terras do Parque Nacional Jaragua, parte da província de Pedernales que faz fronteira com o sul do Haiti. Num ápice, descobrimos que a pequena cidade que servia a laguna, Oviedo, era a mais austral da República Dominicana.
Tanto a lagoa como a província mantêm o baptismo dado em honra de Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdez, polígrafo e cronista de Cristóvão Colombo, o incontornável primeiro visitante europeu destas paragens das Américas.
A Oviedo dominicana actual teve como génese um dos mais antigos povoados de Hispaniola. Há que ter, no entanto, em conta que a cidade sofreu um importante translado.
Em 1966, o furacão Inês arrasou-a quase por completo. O presidente dominicano de então, Joaquín Antonio Balaguer decretou que fosse reerguida noutro lugar, mais afastado da Laguna de Oviedo e protegido das fúrias ciclónicas do Caribe.
Mesmo em plena época de furacões desta região, continuávamos bafejados pela sorte. Os que apareciam a Oeste das Antilhas subiam a norte em vez de avançar para Oeste sobre Porto Rico e Hispaniola ou, ainda mais a ocidente, sobre Cuba. Os dias sucediam-se com céu azul, solarengos a condizer.
Pelo menos até às quatro e meia, cinco da tarde, hora em que as nuvens se precipitavam do Mar das Caraíbas sobre a serrania de Bahoruco e ali descarregavam a humidade acumulada durante as horas de sol a pique e calor intenso.
Carlos entregou-nos de volta à Casa Bonita bem antes da chuvarada dessa tarde.