Como quase todos, o semáforo da Bukit Timah Rd permite aos peões conquistar o direito à luz verde.
Em forte aceleração, vários carros disputam a recta. A sua velocidade não assusta algumas dezenas de singapurenses de origem indiana que, em vez de carregar no botão, se precipitam sobre o asfalto e obrigam os condutores a derrapar.
Estamos na Pequena Índia de Singapura. A noção da Singapura das multas, ordeira e intransigente cai aqui por terra neste bairro. Ainda mais aos Domingos, quando tem lugar o mercado local.
Logo abaixo, na Orchard Rd, e nesta cidade-país, em geral, a tolerância é distinta.
Nenhum indiano, chinês, malaio ou singapurense de outra origem se atreve a desrespeitar a lei.
A punição para travessias desregradas, ou jaywalking – como são denominadas em inglês e no seu singlês – ascende a milhares de dólares de Singapura, moeda que vale sensivelmente metade do Euro.
A Singapura de Sari de Little Índia
Quando se trata da Little India, as autoridades rendem-se às evidências. Fecham os olhos, como se os infractores não passassem de crianças.
À imagem de Mumbai, de Calcutá ou de Nova Deli, a partir do meio da tarde, preenchem as ruas de Little Índia milhares de indianos. São quase só homens.
Chegam de todas as partes, em caixas de camiões adaptados para o seu transporte. E formam correntes humanas que fluem em sentidos opostos.
Percorrem, apertados, as arcadas dos edifícios seculares. Detêm-se, a espaços, a comprar vegetais e outros bens básicos, em bancas de lojas que cheiram a todas as especiarias da Ásia.
Ou à frente de armazéns de DVD’s e VCD’s, fascinados pelos êxitos bollywoodescos que passam em grandes ecrãs de TV.
Litte Índia: de Prisão ao Grande Bairro Tamil Actual
A origem da Little India teve pouco de glamoroso. Segundo os registos históricos, o bairro formou-se a partir de um presídio para prisioneiros de etnia tamil, durante a época em que o fundador e governador Stamford Raffles desenvolvia Singapura a serviço da coroa britânica.
Vencida a sua função penal, a localização próxima do rio Serangoon fixou, de início, vários novos criadores de gado.
À medida que a política de segregação étnica de Raffles sobrelotou a área de Chulia Kampong, mais e mais trabalhadores tamil encontraram espaço disponível para as suas actividades.
No princípio do século XX, tinham já formado a base do bairro actual.
A Multietnicidade Política de Singapura
A partir de 1959, os ensinamentos de Raffles inspiraram o predominante People’s Action Party (liderado por sino-singapurenses) a desenvolver uma política de harmonia racial que continuou a compartimentar o país.
Por altura da criação deste texto, o PAP ainda governava. A população indiana não tinha que se sujeitar, como dantes, a áreas habitacionais e laborais pré-definidas.
Por uma questão de herança cultural, no entanto, os seus negócios mantêm-se onde sempre estiveram. São sustentados por uma vasta e fiel clientela de tamiles, de indianos de outras etnias, de sino-singapurenses e ocidentais expatriados.
Além destes, a Little India beneficia ainda do marketing exemplar do turismo de Singapura. Visitam-na milhares de estrangeiros curiosos que aproveitam para acrescentar um gosto indiano à sua viagem.
Ao mesmo tempo, em Little Índia, conseguem neutralizar as sensações de esterilidade e de superficialidade demasiadas vezes transmitidas pela cidade-estado.
Little Índia: o Frenesim do Subcontinente Ajustado a Singapura
A Serangoon Road é a principal artéria comercial do bairro. Nela se dispõem o Tekka Centre, o The Verge Mall e as arcadas da Little India.
Os primeiros são lugares emblemáticos da multi-etnicidade de Singapura
Em especial o Tekka Centre que acolhe um mercado de géneros e refeições onde muitos vendedores chineses falam tamil e outros dialectos da Índia, e alguns indianos se expressam em mandarim ou cantones.
Já as arcadas são um caso distinto. Predominam, ali, os estabelecimentos indianos, ainda, em grande maioria, de origem tamil. São mercearias clássicas abastecidas por todos os produtos que a comunidade indiana consome.
E em que se destacam visualmente embalagens da pátria-mãe com designs já históricos.
Abundam também as lojas de tecidos e pronto-a-vestir quase sempre assinaladas por manequins demasiado brancos para a clientela alvo. E bancas de floristas que vendem grinaldas e pétalas de todos os tipos, indispensáveis para os rituais dos templos hindus em redor.
Os templos, são detectáveis pela arquitectura exuberante e pela imposição excêntrica dos seus gopurams, torres repletas de figuras divinas ou semi-divinas que assinalam as entradas.
Singapura. Uma Nação em Partilha. Nem Sempre em Harmonia
Mas, num território ínfimo como o de Singapura, partilhado por quatro grupos étnicos e crenças distintas, nem a religião nem a política conseguiram, até hoje, garantir uma convivência imaculada.
Mais tarde, enquanto conversamos com a directora de origem chinesa do Scarlet Hotel – localizado em plena Chinatown – em jeito de provocação, trazemos a Little India e o jaywalking à baila. A reacção é imediata: “Pois … esses indianos … estamos a ficar um bocado fartos do seu caos …”.
De volta à Little India, procuramos explorar melhor a questão. Conversamos com Ranveer Singh, um sikh carismático que se justifica com a devida altivez: “Nós temos a nossa cultura, os “chineses” têm a deles.
Eles têm o primeiro-ministro, nós temos o Presidente … Somos todos parte deste país. É verdade que eles são a maioria e que há muito ditam as regras. Mas está na altura de perceberem que não podem exigir a todos os singapurenses o mesmo rigor asfixiante em que eles vivem…”
Como que a apoiar a sua reinvindicação, numa esplanada logo ao lado, uma plateia tão espontânea como descontraída bebe lassis e cerveja e solta gargalhadas atrás de gargalhadas, em êxtase com as cenas de um musical cómico rodado em Mumbai.
O chão está sujo. As cadeiras e mesas surgem dispostas sem qualquer preocupação estética ou geométrica.
Estamos na Little India. O bairro e os indianos até podem ter pouca influência nos destinos na nação.
Aqui, Singapura cheira a especiarias e veste sari.