Desde Guwahati, a capital de Assam, que seguíamos o caudal massivo e os meandros amplos do Bramaputra, uns dias antes à descoberta do seu deslumbrante pântano de Maguri Bill.
Não que a data seja relevante nas paragens por que andávamos mas, com Dezembro a aproximar-se ao Natal, embrenhávamo-nos mais e mais no Inverno nevoento do Nordeste Indiano.
O PN Kaziranga, os seus rinocerontes de corno único, os elefantes, tigres e restantes criaturas da selva alagada, tinham ficado para trás. Quando a misteriosa Majuli nos chegou aos ouvidos, provou-se demasiado irresistível. Não tardámos a procurá-la.
Por volta da uma da tarde, chegamos a um ancoradouro mal-amanhado. Ahmed, motorista que há vários dias nos conduzia por Assam, cede lugar a um colega, mete-se num autocarro e regressa a casa.
Nós – carro incluído – descemos uma rampa lamacenta escavada na margem do Bramaputra e embarcamos num dos ferries quase de museu que navegam para a ilha.
O comandante apita para a partida. Em três tempos, o pequeno ferry destaca-se da margem e desliza ao longo de um dos muitos bancos de areia que salpicam o rio naquela altura do ano.
Estamos em plena época seca. Apesar de vasto, o Bramaputra mantém-se uma amostra do colosso fluvial em que se transforma com o degelo dos Himalaias a norte e a intensificação das inevitáveis monções.
De Maio em diante, este e quase todos os bancos e ilhas de areia porque passamos são engolidos pelo rio. O mesmo efeito agravado e arrastado ao longo do tempo faz com que a Majuli do nosso destino – de longe a maior ilha do Bramaputra – desapareça aos poucos.
Em 1901, Majuli contava com 1255 km2. Em 1917, com apenas 751km2 que diminuíram para 453km2 em 1966 e 421km2 em 2001.
Do virar para o século XXI para cá a erosão provocada pelo fluir brutal do Bramaputra continuou, mais intensa que nunca: a um ritmo de 6.4km2 por ano, bem mais que os 1.77km2 / ano que se registaram entre 1917 e 1972.
Por consequência, muitas famílias tiveram que se mudar para outras zonas não ameaçadas da ilha. Ou abandoná-la de vez.
Como agravante, os habitantes de Majuli sempre foram considerados especiais na imensidão mais ou menos homogénea de hindus e muçulmanos do subcontinente. Majuli abriga uma população de cerca de 150.000 almas, distribuídas por duzentas e cinquenta aldeias e complicada de definir em termos sociais e culturais.
Lá coexistem, há séculos, comunidades tribais como os Mising, os Deori e os Sonowal Kachari. Outras, não tribais: os Koch, os Kalitas, os Ahoms, os Chutiyas, os Keot, os Yogi etc., etc.
Depois, como seria de esperar na Índia, existem ainda as castas: os Jalia Kaivartas (aborígenes pescadores), os Brittial Banias (mercadores, em particular joalheiros, ourives e fabricantes de utensílios) entre tantas outras. De entre as várias tribos, a Mising, com mais de 60.000 membros é a predominante.
Os Mising entregaram-se a Majuli por volta do século 8 d.C.. Crê-se que habitavam o sul da China e o Tibete e que terão migrado das margens do lago Manasarovar, o lago de água doce mais elevado do mundo, formado junto à nascente do rio Bramaputra, o glaciar tibetano de Bhagirath.
Dessas terras do tecto asiático, os Mising mudaram-se para as regiões indianas de Arunachal Pradesh e de Assam. Apegados à sua raiz de beira-de-água, milhares deles decidiram instalar-se em Majuli. Muitos, em especial no norte da ilha, tornar-se-iam cristãos.
O barco faz-se ao Kalamabari Ferry Terminal, na prática, uma mera grelha de madeira a envolver sacos de contenção e dotada de longas tábuas que permite desembarcar os passageiros e os veículos sem o risco de desabamento da faixa de areia que os recebe.
Espera-nos uma pequena multidão de nativos que poderia perfeitamente incluir membros das tribos, não tribos e castas mencionadas. Então, como agora, nunca os saberíamos distinguir.
Aquela comitiva ribeirinha era formada por moradores que vinham buscar familiares chegados do estado de Assam em redor. Outros, eram habitantes prestes a viajar no sentido contrário.
A servir os passageiros em geral, havia ainda um “clã” de trabalhadores providenciais que, contra pequenos baksheeshes (donativos), colocavam uma espécie de capim seco sobre zonas mais arenosas e formavam, assim, pistas voláteis com vários quilómetros que os condutores deviam percorrer com cuidado redobrado.
Graças a uma dessas pistas, conseguimos atingir zonas internas e mais sólidas de Majuli e chegar ao hotel estatal da ilha, um complexo com vários chalets erguidos sobre pilares de cimento ligados por escadas e passadiços, bem acima do nível de então do rio.
Pela estranheza e desconforto com que nos recebem, ficamos com a sensação de que há muito ali não viam hóspedes, muito menos europeus.
Fosse como fosse, com o dia prestes a terminar, engripados e exaustos da já longa jornada, limitamo-nos a jantar e a deixar o dia seguinte o mais alinhavado possível.
A aurora raiou enevoada, nem poderia ser de outra maneira, durante o Inverno e numa ilha perdida numa imensidão fluvial.
Aos poucos, com o sol a forçar o seu poder térmico, a névoa lá abriu. Desvendou-nos os cenários místicos de Majuli e as primeiras manifestações da sua vida há muito desfasada no tempo.
Atravessamos uma ponte sobre o Luhit, um rio, tal como o Bramaputra nascido no Tibete e que ao Bramaputra se entrega. Pedimos a Ranjkar para nos deixar sair.
Enquanto cruzamos a ponte, uma pequena manada de vacas fá-lo no sentido contrário. Logo, um trio apressado de mulheres em saris e xailes garridos, passa por nós e ri-se do quanto nos esforçamos para fotografar as vacas.
Espreitamos de ambas as beiras da ponte para diante, De um dos lados, pouco abaixo, um grupo de aldeãos munido de um barco e de grandes cestos investe a manhã entre uma península e um ilhéu de jacintos.
Duas mulheres em trajes bem menores que os habituais saris e em modo anfíbio, estendem uma rede de pesca no curto canal formado pela vegetação. Logo ao lado, várias outras colhem caracóis e jacintos para cestos depositados sobre a plataforma vegetal que as sustem.
Desde 2015 que a agricultura hidropónica se populariza em Majuli. Fartos de ver os seus cultivos arrastados ou submersos pelo Bramaputra e afluentes, os camponeses locais aderiram à prática de cultivar a própria água, com recurso a tabuleiros artesanais de jacintos apodrecidos que asseguram nutrientes às plantas semeadas durante, pelo menos, a época das monções e das inundações.
Com o fim do ano iminente, ainda estávamos a cinco meses do dilúvio incontornável de Assam. Tínhamos tempo para desvendar mais da ilha.
Além da sua composição étnica e social única, Majuli também se revela um caso à parte no que diz respeito à fé.
Desde o século XVI que a ilha se manteve como uma capital cultural e religiosa ancestral de Assam. Por essa altura, Srimanta Sankardeva, um polímata, poeta, escolástico, profeta e reformista social e religioso visitou Majuli.
Sankardeva também foi um pioneiro do movimento neo-Vixnuíta, uma forma de hinduísmo que derivou de forma radical do convencional nem que seja por professar um hinduísmo monoteísta em que Vixnu surge como Deus supremo e é reverenciado em distintos avatares.
Sankardeva encantou-se com a ilha. Lá fundou vários mosteiros e eremitérios hoje conhecidos como satras. Em tempos, contavam-se para cima de sessenta. O Bramaputra reclamou o encerramento de mais de metade.
Em pouco mais de dez minutos, viajamos pela realidade – não fossem os veículos motorizados – quase medieval de Majuli, entre arrozais ensopados, lugarejos palafíticos partilhados pelas gentes simples da ilha, por porcos, patos, cabras, vacas e sabe-se lá que outros animais.
Atravessamos um pórtico cinzento sob o olhar de um bando de marabus-pequenos instalados na copa de uma árvore. Cruzado o portal, damos entrada na Garamur Satra, uma das quatro principais da ilha, abençoada por uma estátua de bronze de Garuda, o veículo sagrado de Vixnu.
Dois dos seus sacerdotes cirandam pelo santuário. Um deles esforça-se por nos explicar a importância única daquele lugar. Só que o inglês a que recorre é deveras limitado. Reduz a informação a um mero nada.
Não tarda, passamos para a satra que se seguia, a Kamelabari. Encontramo-la em modo escolar. Num pavilhão inicial, um guru ancião dá uma aula de ioga a um grande grupo de crianças.
Quando entramos no espaço mais antigo e nuclear da satra, damos com dois edifícios, térreos, longilíneos, alpendrados e cobertos por um telhado comum feito de chapas de zinco, umas mais enferrujadas que outras.
Ali, distintos sacerdotes ocupam as suas próprias frações habitacionais. Encontramos dois com mais idade embrulhados em túnicas brancas de linho. Voltam a não falar palavra de inglês.
Uns poucos metros depois, damos de cara com outro bem mais novo, acompanhado por dois aprendizes juvenis. Todos eles falam inglês pelo que, à conversa, recuperamos boa parte da informação perdida.
Perguntamos a razão de a satra estar tão dotada de arroz seco. Explicam-nos que o cereal armazenado resulta da contribuição dos fiéis de Majuli, há muito predispostos a contribuir para o sustento dos seus líderes religiosos.
Os dois jovens estavam em regime de aprendizagem, ao cuidado do sacerdote adulto.
Este, apesar de ocupado a ler um qualquer documento, nunca se furtou a responder as questões que lhe colocávamos, sempre de sorriso nos lábios.
Seguiu-se a Samaguri Satra, menor, ainda assim, uma das mais concorridas da ilha, não tardaríamos a comprovar porquê. Esta satra foi fundada em 1663. Desde então que é conhecida sobretudo por criar máscaras tradicionais de dança a partir de bambu, argila, tecidos, fezes de vaca e tinta.
Ao entrarmos, Hem Chandra Goswami, o satradhikari (líder da satra) e guru artístico de Samaguri está a ser entrevistado para um qualquer meio indiano. Quando se vê livre da sessão, dá-nos as boas-vindas e disserta de forma tutorial sobre arte da satra.
Ao despedir-se, deixa-nos ao cuidado de um religioso mais novo. Este, encarrega-se de completar a introdução de Hem Chandra Goswami.
Dá vida à máscara de uma jovem mulher e a uma outra de um monstro com dentes aguçados. Ao fazê-lo, mesmo que por apenas breves momentos, recupera a tradição das danças e teatros mascarados de Majuli, tão antiga quanto o vixnuísmo da ilha.
Foi o próprio Sankardeva que, apostado em desencadear uma mudança social, recorreu às suas aptidões artísticas para fazer passar a mensagem do vixnuísmo aos homens iletrados e “comuns” da Índia.
De acordo, Sankardeva escreveu pequenas peças sobre a vida de Lorde Vixnu nas suas várias encarnações.
Durante séculos, esses teatrinhos, chamados bhaonas, visitavam as aldeias e encantavam os moradores mas, com o passar do tempo e a predominância do hinduísmo convencional, tornaram-se cada vez mais raros.
Hoje, em perigo de extinção, são motivo de orgulho nacional, ao ponto de Hem Chandra Goswami ter recentemente sido convidado para exibir as suas criações em Deli, na parada do Dia da República.
Visto da perspectiva oposta, Deli pouco poderá fazer para interferir no futuro de Majuli, seja o das máscaras bhaona ou o da vida real da ilha. Tal como até aqui, caberá ao todo-poderoso Bramaputra, filho da encarnação criativa e destrutiva de Vixnu, decidir o seu destino.
Os autores agradecem o apoio na realização deste artigo às seguintes entidades: Embaixada da Índia em Lisboa; Ministry of Tourism, Government of India; Assam Development Corporation.