Chegam as duas e meia da tarde de um Domingo. Desde a aurora que o banho-turco usual da época das chuvas amornava e a atmosfera tropical se tornava mais opressiva. Não sabíamos porquê mas era àquela hora de estufa que o Festival MassKara, um dos mais recentes festivais das Filipinas estava para começar.
O MassKara tinha nascido do sofrimento. O sofrimento atravessava-o como em tantos outros rituais filipinos de purga espiritual. Bacolod, a capital secular de Negros permanecia no seu modo sedado. As ruas, por comparação com os dias de trabalho, quase desertas.Isto até que dobramos uma esquina e esbarramos com a bonança que antecedia a tempestade.
Um batalhão de MassKarados ocupa o asfalto. Cerca-o uma multidão de apoiantes familiares e amigos, de curiosos ávidos por se embrenharem nos bastidores expostos da parada. E por reforçarem a sua colecção de selfies.
Emulamos os movimentos errantes destes metediços. Avançamos rua fora, atentos às peculiaridades dos figurantes. Um elo comum, mais subtil do que poderíamos imaginar, chama-nos a atenção. Abundavam ali os ladyboys filipinos, os baklas como lhes chama a população, de forma algo pejorativa, participantes da comunidade transgénero local.
A Bonança que Antecede a Tempestade
Enquanto caminhamos, perscrutamos os seus rostos andróginos e os corpos frágeis, moldados a preceitos femininos e o mais brancos que se conseguiam tornar. Em retorno, os visados contemplam as nossas objectivas com o olhar perdido entre a timidez e a sedução do protagonismo, beicinhos e sorrisos marotos, ajustes de ancas e outras poses de modelos de rua.
Durante todo este estranho preâmbulo, partilham uma óbvia boa-disposição conscientes de que, não tarda, se terão que submeter ao sufoco das suas máscaras e fatos.
O fim daquela rua passa-nos para uma bem mais larga, a Lizares. Bacolod encontrava-se ali em peso, dividida em duas frentes opostas por cordas esticadas que mantinham livre a passarela de asfalto.
Uma música com ritmo electrónico acelerado e convulso serve de separador a uma série de outras algo menos aflitas, cantadas em tagalog, o dialecto nacional filipino. Serve para compartimentar diferentes fases do desfile que, no entretanto, começara a umas dezenas de metros a montante de onde nos encontrávamos.
Num ápice, sucessivas catadupas de dançarinos em distintos trajes excêntricos, garridos, felpudos ou de tantos outros tipos surgem a dançar estrada abaixo.
Orientam-nos um ou mais coreógrafos experientes de danças. Alguns, galardoados, são disputados. Ano após ano, empenham-se em fazer os seus barangays (bairros), empresas ou escolas ganharem a competição de rua. De acordo, reagem furiosos, a cada interferência prejudicial do público ou dos fotógrafos.
Segundo Jesus Panoy Cabalcar: o Coreógrafo Rei do Festival MassKara
Segundo Jesus “Panoy” Cabalcar, um deles, mais conhecido como “Sir Panoy” detém o recorde de triunfos no Festival MassKara. São, nem mais nem menos que vinte e uma vitórias, repartidas entre distintos barangays e escolas: 29, Estefania, Pahanocoy, Villamonte, Alijis, Mandalagan, 17, 16. Esteve ainda por detrás do triunfo da escola elementar ETCS3.
Toda a ilha tem os seus dançarinos e coreógrafos em grande conta. Presta-lhes tributo ano após ano, pela entrega incondicional que demonstram – muitos desde a estreia – e pelo mérito de terem tornado o festival o grande momento icónico de Bacolod.
O cortejo que acompanhávamos é apenas um de um conjunto de acontecimentos do Festival MassKara. Conta também com a competição irmã de arena.
E com concursos de Rainhas de Beleza MassKara e de dança, de tambores e de gastronomia, concertos de música, eventos desportivos e até com uma feira agrícola.
Um bando de fotógrafos e videógrafos filipinos antecedem o cortejo. Juntamo-nos ao clã. Como eles, dedicamo-nos a registar a acção o melhor possível sem prejudicarmos o seu fluxo.
Durante quase duas horas, fizemo-lo de marcha atrás. Apreciamos as coreografias por diante, a evitarmos tropeçar na multidão que cruzava o cortejo ou o antecipava.
A Comoção e o Inevitável Sufoco Tropical do MassKara
Toda esta agitação e fricção humana parecia esquentar mais e mais o ar já de si saturado. Quem sofria eram os desfilantes. Ao fim de algum tempo, alguns deles apareceram a queixar-se e até a cambalear. Certos coreógrafos e auxiliares mais precavidos borrifavam-lhes as faces através das máscaras e ajudavam-nos a ventilar.
Nem todos os dançarinos recebiam esse cuidado. Um deles, andrógino como tantos outros, entra em convulsões mesmo à nossa frente.
Socorrem-no familiares e elementos do seu grupo. Primeiro, dentro de uma carrinha de apoio do evento. Até que os socorristas percebem que o interior abafado da van só agravava a sua aflição e o transferem para o assento de um tricycle designado para recolher fatiotas e máscaras.
Salvas as devidas proporções, a agrura e a cena vivida por aquele jovem rapaz efeminado fez-nos lembrar o passado por Cristo durante a Via Crucis. E esse é um outro evento que os Filipinos – a única grande nação católica da Ásia – fazem questão de reencenar um pouco por todo o país, semana santa após semana santa. Mas estávamos em Outubro. Neste mês, Negros empregava toda a sua crença nos efeitos terapêuticos do Festival MassKara.
Do Naufrágio do MV Don Juan ao Penoso Contra-Pico do Açúcar
Decorridos trinta e sete anos da noite em que o ferry MV Don Juan colidiu com o petroleiro MT Tacloban City em pleno estreito de Tablas e se afundou, uma boa parte dos familiares das vitimas terá recuperado do desgosto.
Já as questões relacionadas com a venda do açúcar produzido na ilha vêm à tona de quando em quando. Porque a cotação da matéria-prima desce a níveis sofríveis e porque a população de Negros a considera difícil de engolir.
Desde o início de 2017 que os produtores e trabalhadores da cana-de-açúcar se insurgiam contra o facto de a Coca-Cola da ilha de Negros ter começado a usar, nas suas bebidas, xarope de milho de alta frutose em vez do açúcar local. Cindy Rojas, conselheira da municipalidade levou essa insatisfação mais longe.
Repetiu uma medida já antes tomada em anteriores eventos culturais de Negros: fez aprovar um boicote aos produtos da multinacional.
A Coca-Cola e afins pouca falta faziam. O Festival MassKara prosseguia, adocicado e cafeínado pela excitação que por si só gerava. À medida que aquela fornalha popular e o entusiasmo se intensificavam, a organização do evento tinha dificuldade em controlar a multidão que as cordas já mal seguravam. Entram em acção polícias sobre motas e alguns militares.
Os Arrastões Necessários e as Máscaras Parada MassKara
Os reforços garantem o recuo das gentes em zonas da rua mais apertadas. Guardiães de cada troupe participante passam a empurrar as cordas longitudinais que abriam caminho aos MassKarados com determinação redobrada. Esse controle apertado acaba por levar de arrastão alguns espectadores, fotógrafos e até elementos da organização.
A nós, acontece-nos e mais do que uma vez ficarmos a ver as máscaras de baixo para cima. E que mágicas e impressionantes assim se revelavam.
De início, as faces sorridentes que hoje continuam a ilustrar e a animar o festival tinham visuais filipinos nativos, pintados à mão e decorados com contas e penas típicas da região. Com o passar dos anos, sobrepuseram-se à tradição influências do Carnaval de Veneza e até do do Rio de Janeiro.
Foram aceites máscaras modernas de plástico, contas brilhantes, com as penas maiores e mais exuberantes que os responsáveis pelo design e pelas coreografias podiam arranjar.
Sorrisos Rasgados na Cidade dos Sorrisos
O elemento fulcral do festival, o sorriso aberto, manteve-se o mesmo ao longo do tempo nas muitas faces que formam o Festival MassKara. O festival é feito de uma multidão de caras risonhas. O fio conceptual do evento condiz, aliás, com o mote anglófono de Bacolod: “The City of Smiles”.
Mais para o fim da artéria e da longa parada, reparamos em como diversas empresas emblemáticas das Filipinas aproveitavam o magote de gente e participavam na festa para se promover. A Jollybee – uma espécie de MacDonalds pinoy (equivalente filipino de Tuga) – fazia-se representar pela sua abelhinha amarela e vermelha.
A mascote começa por acenar aos fãs na beira da estrada com a promessa de alguns doces mas a coisa pouco dura. Quando damos por ela, uma turba de miúdos em êxtase corre para o boneco felpudo e disputa-os de forma selvática. Esta derradeira fase mais comercial e interesseira do cortejo não marcou, todavia, o encerrar da festa.
Dobramos a Lizares Street para a Avenida Araneta. Ali, na ausência de dançarinos oficiais e dos carros alegóricos ou corporativos que lhes sucedem e dos refrigerantes da Coca Cola, o povo diverte-se à sua maneira. Alguns músicos dotados de tambores e outros instrumentos básicos marcam o ritmo.
Alguns espectadores entregam-se a um delicioso estímulo criativo alcoólico. Dançam sem cerimónias ou constrangimentos, para gáudio de outros que não resistem a juntar-se-lhes. O Festival MassKara estava longe do fim. Por essa altura e como sempre acontecia, já tinha mais que cumprida a promessa de devolver a felicidade a Negros.
Artigo criado com o apoio do Turismo das Filipinas e da Embaixada das Filipinas em Portugal.