Domingo, dia 24
Véspera de Natal. Encontramo-nos com Don junto à entrada para uma tal de Elephant Waterfall que, em plena época seca, não nos damos ao trabalho de espreitar.
Seguimos juntos para a floresta sagrada de Mawphlang, uma das áreas sombrias e místicas das East Khasi Hills, repleta de monólitos e pedras de sacrifício forradas de musgo, durante a longa época das chuvas de Meghalaya, muito mais que o que encontramos. Os nativos consideram-na a morada dos seus deuses ancestrais.
Calculamos, assim, que os piqueniques a que a populaça khasi e forasteira se entrega na grande clareira à sua entrada sejam por eles abençoados.
Um grupo de estudantes estridentes faz-se fotografar junto de um trio de menires cerimoniais. A inesperada agitação deixa uma pequena manada de vacas em sobressalto. Também nos surpreende a nós, acabados de sair do reduto silencioso e esotérico da mata.
O Caos Turístico do Shillong Viewpoint
Deixamos Mawphlang decididos a investigar o Shillong Viewpoint, um ponto à beira da Upper Shillong Forest que permite contemplar o vale verdejante em que se aninhou a capital, o seu casario exótico e o disseminado pelos arredores.
Don sabia que o lugar era popular por aquela altura do ano. “Mas nunca imaginei que isto agora fosse assim!” desabafa afectado com a fila de trânsito assistida por vendedores oportunistas de bebidas e snacks com que nos confrontamos a caminho do miradouro, mesmo assim, muito inferior às habituais à entrada e à saída de Shillong. “Bom, se aqui ficamos à espera, nunca mais… Vamos deixar o carro. Caminhamos até ao portão e já vemos se vos deixam ou não entrar.”
Confirma-se aquilo de que vínhamos avisados. Estratégico, o lugar fora ocupado por uma Base da Força Aérea da Índia. Em tempos, os militares chegaram a autorizar a entrada de estrangeiros, mas, com a rivalidade com o Paquistão e a China a agravar-se a olhos vistos, essa concessão foi suspensa.
Uma vez que estávamos em visita de trabalho em parceria com as autoridades turísticas de Megahalaya, tínhamos esperança de que nos abrissem uma excepção. Só que o apelido Wong da Sara atrapalha. Malgrado o diálogo cortês com o oficial de serviço e os telefonemas que se digna a fazer, ficamos à porta. Ainda vasculhamos o pinhal em redor da vedação em busca de uma vista alternativa.
De Volta a Shillong, de encontro ao Natal Indiano
Por razões óbvias, a Força Aérea ocupava o acesso ao extremo panorâmico de onde podia controlar o que se passava em Shillong e na vastidão para norte. Só os indianos lá podiam chegar.
Aos poucos, as centenas de famílias dos estados vizinhos de Assam, de Arunachal Pradesh, de Bengala Oriental e até bangladeshis de férias em Meghalaya viam a sua passagem aprovada. Acumulavam-se no ponto de observação e piqueniqueiro que não chegámos sequer a vislumbrar.
Invertemos o rumo. Voltamos ao carro. Com a hora de almoço e a tarde da véspera de natal a coincidirem, regressamos ao nosso próprio quartel-general da capital, o hotel Pinewood, um dos mais antigos de Shillong, construído por um casal suíço durante o século XIX, em pinho vermelho e teca birmanesa, num jeito que combina influências germanófilas com o estilo habitual das velhas Hill Stations britânicas. Pelo caminho, num outro edifício à beira da estrada, reparamos numa cerimónia disfarçada de missa do galo vespertina.
A cristianização dos khasi teve início no século XIX, por acção dos colonos britânicos e dos seus missionários.
Provou-se de tal forma influente que Meghalaya é, hoje, um dos três estados da Índia com maiorias cristãs inequívocas: Nagaland e Mizoram contam com 90% de cristãos nas suas populações; Meghalaya, com 83%. Estes estados têm igrejas e rituais cristãos a condizer, como a celebração do Natal que já há algum tempo víamos e sentíamos intensificar-se.
Seng Khasi: em Defesa das Velhas Crenças do Povo Khasi
Isto não quer, no entanto, dizer que todos os khasi tenham abandonado de vez as suas antigas crenças. Alguns, combinam-nas com o Cristianismo.
Outros, são mais radicais e apologistas da pureza das primeiras. A Seng Khasi, uma organização fundada em 1899, mas que tem conquistado recentemente bom número de novos seguidores, advoga uma alternativa ao contágio civilizacional do Ocidente e o regresso à identidade khasi, à fé e aos rituais pré-coloniais.
É sua a bandeira com um galo verde sobre uma circunferência branca central (simbolizadora da Terra), cercada de vermelho que vemos esvoaçar acima dos seguidores da convenção.
A Seng Khasi defende e difunde a crença mitológica khasi de que, a determinada altura, os seres vivos sofreram uma longa era de escuridão e desespero causada por, a determinada altura, o sol se ter escondido nas trevas e deixado de iluminar e aquecer a Terra.
Então, um galo eremita, U Malymboit Malymbiang, acabou por se ver indigitado em último recurso entre várias criaturas, para resolver o drama. Foi vestido e embelezado com os melhores cosméticos, de maneira a que a sua personalidade, aura e capacidade de influência saíssem reforçadas.
Ao contrário dos sucessivos candidatos anteriores – um elefante, um tigre e até um calau que se veio a revelar individualista e trapaceiro – o galo levou a cabo a missão com a subserviência e honestidade que dele se esperava. Tão indigno, quanto indigno se achava, prostrou-se perante Sua Majestade. A abordagem humilde do emissário asado convenceu o Sol. O grande astro voltou a conceder o seu brilho à Terra.
O Galo, o outro Símbolo Religioso de Meghalaya
Deste mito resultou o louvor khasi pelo galo, o símbolo nuclear da Seng Khasi, um guia que, entre vários outros princípios seculares, ilumina os khasi no trilho da verdade, da dignidade e da honra, em cada pensamento, em cada acção.
Como era de esperar num dia em que contava ter a tarde para descanso, o motorista nepalês Sharma estava desejoso de nos ver pelas costas, algo que o engarrafamento que começara ainda bem distante de Shillong só adiava. Não nos pudemos, assim, deter e espreitar a convenção.
Por volta da uma da tarde em ponto, ficamos, enfim, por nossa conta. Almoçamos momos, sopas Laksa de tofu e fried rice num tal de Bamboo Hut. Após o que recolhemos ao aconchego do quarto 309 no State Convention Center do PineWood Hotel.
Eram já vários os dias de exploração de Meghalaya seguidos em que saíamos às sete e meia ou oito da manhã e regressávamos, extenuados, já de noite. Entregamo-nos, assim, a um merecido descanso. Só voltamos a deixar o quarto para uma ceia pré-reservada que, com recurso obrigatório ao menu indiano e indiano-khasi, tentamos fazer passar por natalícia, como o era a iluminação prolífica à entrada do hotel.
Segunda, dia 25.
A grande esforço, despertamos às 8h30 e disparamos para o edifício de madeira principal do hotel. Se a ceia se havia comprovado pouco condizente da época como a conhecíamos, que dizer do pequeno-almoço.
Tal como na noite anterior, a sala estava à pinha de famílias indianas de férias, cada qual mais buliçosa que a outra. Todas em disputa acesa pelas dosas, pelos idlis (bolos de arroz) pelo sambhar (guisado de vegetais, sobretudo lentilhas) pelas chapatis e parathas (espécie de pães lisos ou panquecas) e afins.
Nós, voltamos a combinar milktea, café, torradas e parathas barradas com doce ou omeletes a cavalo, com bananas. Voltamos ao quarto para trabalhar um pouco mais nos portáteis. Às duas da tarde, ganhamos coragem e saímos para Shillong, de novo em modo fotográfico.
Atravessamos o Ward Lake em frente ao hotel. Cruzamos o parque vasto e verdejante em volta, repleto de mais famílias e namorados a viver o melhor da vida.
Encontramos uma saída dissimulada no extremo oposto do parque que nos leva a uma estrada movimentada. Após umas centenas de metros nessa que era a Soso Tham Road, damos com a área de Police Baazar, o coração comercial de Shillong.
Em redor da Khyndailad Fountain e da sua rotunda decorada com renas, árvores de Natal e outros elementos da quadra feitos de fios eléctricos, pequenos empresários de rua provocam as crianças de passagem.
Exibem-lhes cachos de algodão doce cor-de-rosa, balões e uma panóplia de bugigangas coloridas, incluindo um mostrador portátil de máscaras em que co-habitam a Minie, o homem-aranha e até um amacacado – como é suposto – Lord Hanuman.
Os adultos merecem distintos iscos: milho, grão e amendoim torrados, vários outros petiscos de rua.
Metemo-nos por uma rua pedestre atafulhada por muitos mais vendedores ambulantes de tudo um pouco, muitos deles migrados do ali iminente Bangladesh. O sol poente já quase não entra nessa tal via. Procuramos e perseguimos os seus raros recantos requentados e a vida atarefada que por eles passava. Às tantas, fazemo-lo com tal entrega e entusiasmo que a missão nos sabe a prenda de Natal.
A Noite Natalícia de Shillong
Escurece. Arrefece. O néon na fachada dos edifícios do Centre Point Shillong e do Marba Hub – dois centros comerciais na orla da rotunda – destaca-se contra o céu azulão do lusco-fusco.
Não tarda, acendem-se os enfeites no interior gradeado da circunferência, já de si de acesso desafiante devido ao trânsito frenético que circulava em volta. Achamos, ainda assim, que o cenário urbano em frente cada vez mais garrido pelo néon merce um registo.
Fazemo-nos à rotunda, passamos por cima do gradeamento e instalamo-nos a fotografar e a filmar. A nossa transgressão desperta a cobiça de alguns indianos que, munidos dos seus telefones, nos seguem e imitam. Um jovem vendedor de balões apercebe-se da comoção e aproxima-se para os impingir.
Às tantas, é já uma verdadeira multidão que disputa o interior mal relvado da rotunda e as suas iluminações. Sucedem-se selfies em todas as modalidades, para todos os gostos. São familiares, de grupo, individuais. Junto da árvore de Natal verde e da alaranjada.
Cara-a-cara com a rena amarelada, feita com fios eléctricos e com hastes vermelhas que, apesar da fragilidade de ambas as criaturas, é fotografada até com bebés a cavalo.
Destacado da estrutura que sustem a abóboda celeste da galeria, numa publicidade a um telefone chinês com forte aceitação na Índia, Virat Kohli – o capitão da selecção indiana de criquete – tira a sua própria selfie . “Selfiestan humara” (o nosso Selfiestão) prega o anúncio, em dialecto urdu.
Sem esperarmos, sem sabermos bem como, seguidor após seguidor, era o que tínhamos gerado naquele retalho arredondado de Shillong: um excêntrico selfiestão de Natal.
Os autores agradecem o apoio na realização deste artigo às seguintes entidades: Embaixada da Índia em Lisboa; Ministry of Tourism, Government of India; Meghalaya Tourism.