A caminhada ainda não tinha começado quando surgem as primeiras queixas.
Deixamos Santa Elena de Uairén – a cidade mais próxima da fronteira entre a Venezuela e o Brasil – num 4×4 que o condutor fez questão de levar aos limites.
Se na estrada asfaltada e larga saíamos das curvas praticamente a derrapar, depois do desvio para o trilho de terra que levava a Paraitepui, o desafio passou a ser proteger o corpo dos saltos que o jipe dava sobre os buracos e desníveis.
Günther, o alemão do grupo, já tinha acordado algo indisposto, segundo suspeitava graças a alguma empanada demasiado frita do dia anterior. Não aguentou. Algo contrariado, o condutor lá parou e pudemos todos recuperar do cataclismo motorizado.
Dez minutos depois, estávamos de novo em condições de prosseguir. Faltavam 15 quilómetros para chegarmos ao ponto de partida do itinerário.
A pequena escola de Paraitepui surge numa encosta. Daí para a frente, sucedem-se dezenas de cabanas típicas da região. Os habitantes não mostraram qualquer reacção à invasão dos forasteiros.
Malgrado o chamariz dos dólares, euros e bolívares aqui deixados pelos visitantes, a aldeia faz o possível para proteger o que resta da sua identidade cultural. Fotografar os seus membros, interior de habitações ou outros domínios privados é algo que só uma compensação financeira à altura da desfeita pode conseguir.
De acordo, seguimos sem paragens até uma espécie de quartel-general improvisado para acolher os grupos e tratar dos últimos preparativos. Faltava quantificar o que havia para transportar. E apurar quantos carregadores seriam necessários.
Foi algo de que se encarregou, Marco Alexis, o guia nativo.
Marco estava habituado a acumular funções e a encarregar-se dos mantimentos e utensílios essenciais.
Como tal, decidimos em conjunto contar apenas com um homem adicional. Ouvimos algumas suas derradeiras indicações. Por fim, colocámos as mochilas às costas.
Desde a chegada a Paraitepui que víamos, à distância, o objectivo da expedição.
Chegara a hora de o perseguir.
Não fossem os jéjenes que infestam esta zona do norte da Venezuela, demoníacos mosquitos imunes aos repelentes convencionais e os quilómetros iniciais do percurso, sempre a descer, teriam sido um passeio.
Depois de atravessarmos um primeiro curso de água, aos mosquitos juntaram-se duas ou três subidas que exigiram esforço máximo. Até ao cume, nenhuma etapa nos pareceu tão desgastante como a primeira.
Sentíamos um cansaço a que Marco Alexis e o tio Manuel, habituados a repetir a jornada de ida e volta, já eram imunes mas que o primeiro sabia ser extremo para a maior parte dos viajantes que se metem nestas aventuras.
De acordo, o guia determinou a primeira paragem para descanso.
Após servir guloseimas achocolatadas que repuseram, de imediato, as energias, transmitiu algumas informações suplementares.
Os Tepuis da Savana Venezuelana e os Indígenas que nunca foram Pemón
Tudo se passava no estado venezuelano de Bolívar.
Mais precisamente numa região remota que entra pelos territórios brasileiro e guianês, denominada Gran Sabana.
Das centenas de tepuis (mesetas rochosas) existentes na Gran Sabana, tínhamos como destino o cimo do mais elevado (2723m), o Monte Roraima. Um “irmão”, de nome Kukenan, apenas 123 metros mais baixo, afirmava-se logo ao lado.
Entre eles, há uma espécie de desfiladeiro orientado de norte para sul. Dali, as nuvens oriundas do Atlântico espreitavam e, de tempos a tempos, invadiam a paisagem.
Os penhascos verticais que separam os topos do Monte Roraima do solo ultrapassam os 500 metros de altura. Estabelecem uma fronteira que foi, durante muitos milénios, inexpugnável.
Em termos de extensão, nem o Roraima nem o Kukenan se podem comparar aos maiores tepuis existentes à face da Terra. Um destes, o Auyantepui é conhecido por ser do seu topo que mergulha a queda de água mais alta do Mundo, o Salto Angel, com 989 metros.
Ora, o Auyantepui abrange uma área de 700km². São quase vinte vezes os 34km² ocupados pelo Monte Roraima.
Cerca de doze quilómetros depois de Paraitepui, chegamos ao primeiro acampamento intermédio, junto ao rio Tok.
Marco Alexis e um outro tio, também ele de apelido Alexis – uma espécie de guru do Monte Roraima preparam um jantar que o grupo devorou num ápice.
Logo, juntaram-se ao grupo, reforçaram a boa disposição geral e ofereceram uns goles de rum que nos anestesiaram do cansaço acumulado.
Alexis descarta alguma timidez inicial. Faz impor a sua sabedoria da savana. Desbobina uma série de contos e informações fascinantes.
Destas, chamou-nos a atenção o descontentamento dos indígenas perante o termo “Pemón”, universalmente aceite pelos estrangeiros para os denominar.
Segundo fez questão de nos explicar, “Pemón” significa, num dialecto local, “os humanos”. foi a expressão utilizada pelos índios no primeiro encontro com europeus, para responder a uma questão do género “Quem são vocês?”.
Alexis voltou a realçar que não existe nem nunca existiu um grupo de índios Pemón. Mesmo contra a sua vontade, basta uma breve pesquisa na Internet para constatar como a palavra é usada de forma viral em qualquer texto sobre esta região da América do Sul.
A Caminho da Segunda Base e do Sopé do Tepui Monte Roraima
Apesar de alguma chuva e da trovoada rimbombante, nessa primeira noite, conseguimos dormir e recuperamos do forte desgaste muscular.
Às seis e pouco da manhã estávamos prontos para percorrer os mais dez quilómetros até à segunda base, já situada no sopé do Monte Roraima.
Ainda era cedo quando chegámos à margem do rio Kukenan. Àquela latitude quase equatorial, o sol já nos queimava a pele sem cerimónia. Consciente da dificuldade crescente da caminhada,
Marco dá-nos autorização para um mergulho. “Mesmo com tanta fotografia, são um grupo rápido!”, elogiou-nos. “Merecem a recompensa!”
Em pleno rio Kukenam, constatamos que a vista longínqua dos “manos” tepuis se tinha transformado numa imagem bem dotada de formas e cores.
Daí para a diante, o caminho foi cumprido sempre a subir e debaixo de um sol cada vez mais cruel. Por essa altura, já ninguém se lamentava.
Conversa puxa conversa, atingimos o acampamento base.
À Descoberta do Cimo Extraterrestre do Monte Roraima
As tardes e noites ali passadas tiveram como tema incontornável de debate a localização da rampa para o topo. Malgrado a proximidade relativa, continuávamos a achar difícil acreditar que, no dia seguinte, chegaríamos ao cimo do tepui
Tudo o que sobressaia da rocha vertical era uma estreita saliência coberta de arbustos em que o equilíbrio parecia impossível.
Os mais ansiosos começaram então a imaginar momentos de pura vertigem, de suspensão entre a parede e o abismo e a centenas de metros de altura.
Com a melhor das oportunidades, os guias não tardaram a presentear o grupo com novo jantar altamente calórico e mais alguns tragos do bom rum caribenho.
O último assalto fez-se entre a vegetação selvagem que cobria a encosta mesmo até ao paredão de rocha.
Cumprimo-lo por um trilho em que se alternavam troços quase verticais que exigiam locomoção “quadrúpede” com outros, mais suaves, que se venciam com facilidade de pé.
De quando em quando, surgiam mais pequenos riachos e quedas d’água que sugeriam descanso e reabastecimento. Em duas ou três ocasiões, também passamos por zonas livres de mato que nos permitiram contemplar a vastidão da Gran Sabana.
Após um trecho final traiçoeiro que nos obrigou a caminhar apoiados no penhasco, com cuidado redobrado para evitarmos o resvalamento de pedras, conquistamos o topo.
Tiradas as fotos da praxe, impôs-se que achássemos o lugar em que iríamos passar a noite.
Com esse objectivo em mente, Marco inaugurou uma bem mais exigente liderança na superfície do Monte Tepui.
Mesmo antes avisados, foi com surpresa que nos deparámos com a crueza do “Hotel”, uma simples reentrância numa falésia com espaço suficiente para as tendas e que assegurava relativa protecção contra a chuva e o vento.
Ali nos instalámos sem caprichos.
E dormimos.
Marco desperta-nos sobre o nascer do sol.
Tinha já preparado um novo pequeno-almoço bem venezuelano de arepas, huevos revueltos e café. A refeição durou pouco. A vontade de explorar sobrepunha-se a tudo. Como tal, quinze minutos depois, entregamo-nos ao cenário surreal.
O percurso revelou-se, uma vez mais, complexo.
As fracturas na rocha sucediam-se, profundas. Alternavam com grandes cristas intransponíveis, longas superfícies com padrões de fragmentação, cursos de água, vales alagados e outras formações problemáticas.
Paramos pela primeira vez em El Foso, um enorme buraco circular para onde corria um riacho que mesmo antes de se juntar a lençóis subterrâneos, se transformava em lagoa.
Em seguida, alcançámos o Vale dos Cristais, como o nome indica, uma área coberta de cristal bruto em que se destacavam algumas esculturas naturais impressionantes.
Prosseguimos para norte. Contornamos, os vastos “Labirintos”.
Ali, a negrura impressionante do Roraima torna-se mais densa. Parece não ter fim, um efeito gerado pela sucessão de milhares de blocos irregulares de rocha, intercalados com fendas suficientemente amplas para permitir a passagem.
Como Marco nos confessou, aquele era um reduto misterioso e algo perigoso em que nem os próprios guias se sentiam à vontade.
A explicação, substanciada pelos exemplos das várias pessoas desaparecidas para sempre nos topos do Roraima e do “irmão” Kukenam, frustrou qualquer exigência ou iniciativa rebelde.
Manteve-nos na direcção do principal objectivo da expedição.
A Tripla Fronteira Disputada do Cimo do Monte Roraima
O lugar em que o Monte Roraima atinge a sua altitude máxima (2.800 m) assinala também a convergência das linhas que separam os territórios da Venezuela, Brasil e Guiana.
Esta fronteira é denominada pelos venezuelanos de BV 0 (Brazil-Venezuela: zero).
Está identificada, no terreno, por um marco geodésico que deveria ter assinalados, em cada uma das suas faces, o país correspondente.
Mas a Venezuela reclama, há muito, uma parte significativa do território da Guiana.
Por esse motivo, a placa que sinaliza o lado guianense é arrancada vezes sem conta pelos visitantes e guias venezuelanos do Monte Roraima.
A Tripla Fronteira coincidia com o ponto mais setentrional do tepui a que estava previsto chegarmos.
Marco não cedeu à pretensão que partilhávamos de continuar em direcção à Proa de onde poderíamos observar a vastidão da savana brasileira e da selva guianense.
O guia aproveitou, inclusive, para dramatizar a sua resposta negativa: “amigos, prefiro dispensar o vosso pânico quando nos virmos perdidos, às escuras, enregelados, sem tendas nem sacos-cama, nesta vastidão agreste”.
Ele, melhor que ninguém, conhecia a realidade. Ao nosso ritmo fotográfico displicente, já seria difícil voltar ao “Hotel” antes do anoitecer, quanto mais metermo-nos em novos desafios.
Muito devido ao desaparecimento de nativos e descobridores forasteiros, o Roraima cedo se envolveu num profundo misticismo, alimentado e divulgado pelas tribos da região cujos relatos enigmáticos vieram a despertar a curiosidade de mais e mais exploradores.
Mesmo confirmada a sua inexistência, os dinossauros e outras criaturas pré-históricas, assim como personagens míticas são um tema recorrente das velhas lendas e estórias improvisadas pelos nativos de etnia Arekuna, Taurepan e Camaracoto.
Desde o meio do século XVIII que essas narrativas fascinavam aventureiros do velho mundo.
É mais que provável que a ascensão pioneira ao topo do Monte Roraima tenha sido feita pelos indígenas, antes da chegada das expedições europeias.
Os primeiros registos escritos das tentativas de conquista do topo datam do início do século XIX e comprovam diversas desistências.
Foi apenas em 1838 que o cientista inglês Sir Robert Schomburgk achou forma de subir.
Desde então, a lista de visitantes nunca mais cessou de aumentar. A ironia das ironias está em que, apesar de ter escrito e publicado o livro mais famoso sobre o Monte Roraima: “O Mundo Perdido”, Sir Arthur Conan Doyle nunca foi um deles.
Conan Doyle limitou-se a assimilar os relatos dos indígenas e dos primeiros exploradores. Elaborou, assim, uma ficção romantizada protagonizada por um cientista aventureiro e meio louco, o Professor Challenger, que chega a confrontar-se com dinossauros.
O tema d’ “O Mundo Perdido” foi várias vezes adaptado ao cinema e televisão mas a mais famosa das versões cinematográficas é a saga Parque Jurássico, filmada, em parte, nas planícies repletas de palmeiras da Gran Sabana.
A Origem Geológica do Monte Roraima
Como todos os tepuis da região, o Monte Roraima fazia parte da formação Roraima, um gigantesco maciço rochoso com mais de 3.6 biliões de anos gerado pela compressão de várias camadas de areia e sílica provocada por grandes oscilações térmicas.
Esta formação começou a fragmentar-se no fim do Período Jurássico (há cerca de 150 milhões de anos) quando a América do Sul se separou do continente africano.
Nessa era, forças provindas do interior da Terra, causaram fortes movimentações tectónicas que criaram as primeiras fissuras e fracturas na sua superfície.
Ao longo de milhões de anos, novas derivações das placas e uma forte erosão, fizeram com que a maior parte da rocha original fosse arrastada para o mar.
Hoje, do gigantesco bloco inicial, resistem apenas algumas pequenas ilhas no tempo, os actuais tepuis da Venezuela, Guiana e Brasil.