Em 1956, taiwaneses cépticos duvidavam que os 20km iniciais da Central Cross-Island Hwy fossem possíveis. O desfiladeiro de mármore que a desafiou é, hoje, o cenário natural mais notável da Formosa.
Só a nós parece divertir a espécie de montanha-russa rodoviária que percorre a costa oriental da ilha principal de Taiwan, entre Suao e Hualien. Os ciclistas inveterados relatam entre si e não só, que, apesar do seu relevo tresloucado, a Formosa é provavelmente o melhor destino asiático para se explorar a pedalar. Maldizem, todavia, este trecho espartilhado entre o oceano Pacífico e o sopé rochoso da Cordilheira Central. Lyndall Pyckering, por exemplo, queixa-se a uma ciclo-comunidade online que mal teve tempo para admirar a paisagem ou sentir a dor nas coxas provocada pelas constantes subidas, tal era a concentração que se via forçado a manter para evitar ser ensanduichado contra os paredões de pedra ou cimento, pelos camiões e autocarros de turismo que disputavam o asfalto.
Ao volante mas da berlina Volvo do patrão, Jack sofria a bom sofrer para evitar que o seu posto de trabalho tivesse o mesmo destino: “maldito trânsito! O governo devia proibir pesados de uma vez por todas nesta costa!” Percebemos que seria esse o seu protesto mesmo se exteriorizado no inglês rudimentar a que já nos havia habituado. Já confiávamos na sua experiência. Por isso mesmo, seguíamos dedicados às secções mais fotogénicas daquele litoral extremo que, por alturas do penhasco de Chingshui, se tornou vertical como nunca. Ali, falésias de montanhas com mais de mil metros mergulhavam, a pique, no mar azulão.
Alguns quilómetros para sul e para o interior, damos entrada em terras de Hsiulin. Este distrito é, há muito, o maior de Taiwan em termos de área. Alberga seis aldeias e tem quase 15500 habitantes, na sua grande maioria de etnia Taroko. Em tempos mais recentes, as etnias aborígenes da ilha e a garganta de Taroko conquistaram tal importância que as autoridades forçaram que Hsiulin mudasse o seu nome para Taroko, termo da etnia truku que significa maravilhoso. Foi alegadamente o que proferiu um indígena dessa tribo quando deixou pela primeira vez o território escavado da garganta e se espantou com o oceano.
Em breve, deixámos essa a vastidão marinha oriental para trás. Entramos num desfiladeiro apertado ora verdejante ora rochoso, de mármore bruto para sermos mais precisos, a razão de ser do seu outro nome, Garganta de Mármore.
Desviamos 2.3 km para oeste da estrada principal e damos com a Eternal Spring Shrine, uma nascente natural profícua e ininterrupta que uma ordem budista abençoou com um santuário atravessado pelo fluxo. Foi erguido em honra dos mais de 200 trabalhadores (militares veteranos) que pereceram na construção arrojada da Central Cross-Island Highway e têm os nomes inscritos em placas de pedra.
Ainda hoje, a Garganta de Taroko e a Eternal Spring Shine reservam os seus riscos, sobretudo se quem as visita é apanhado por tempestades ou tufões, muito frequentes em Taiwan.
Apesar de preferir este novo domínio à estrada marginal frenética que nos trouxe de Taipé, Jack conhece bem os seus perigos. “Cuidado nesse trilho!”, alerta-nos com dramatismo inusitado. “Em tempos, um casal de lua-de-mel posava para fotos junto ao santuário quando foram surpreendidos por uma derrocada!“. Apurámos ainda que aquela encosta já tinha desabado várias vezes e que, desde 1950, o santuário fora reconstruído duas vezes.
Quando regressamos da caminhada e dos salpicos rejuvenescedores da nascente, Jack suspirava de impaciência detrás do seu Taiwan Times amarrotado. “Estava a começar a ficar preocupado” justifica o seu descontentamento ainda e sempre em inglês rudimentar.
Não queremos intensificar o seu desespero. Enfiamo-nos e às mochilas de trabalho no Volvo e arrancamos em direcção às entranhas de Taroko.
Aos 3.6 km, chegamos às imediações da Swallow Grotto, um penhasco pejado de pequenas grutas talhadas por antigas correntes subterrâneas e em que milhares de andorinhas instalaram os seus ninhos.
Para diante, encontramos a ponte suspensa Jinheng e voltamos a atravessar o rio Liwu que percorre todo o desfiladeiro, desta feita, numa inevitável vertigem provocada pelo balanço permanente da estrutura de corda.
Enquanto o cruzamos, percebemos a velocidade drástica com o seu leito profundo se deve inundar vezes sem conta, ao receber o grosso das chuvas torrenciais alimentadas pelo Pacífico sobreaquecido. Após algum esforço, também a forma latente da Yindiaren Rock, um enorme rochedo esculpido pela erosão com a forma de um chefe nativo-americano com o seu cocar.
De volta ao modo rodoviário, cruzamos a ponte colorida Liufang e atingimos o Tunnel of Nine Turns. Ali, o confronto Homem versus Natureza de Taroko assume uma gravidade inédita. A determinada altura, a estrada principal desemboca num desvio que conduz a uma série de túneis curtos escavados no mármore, ao longo da garganta sinuosa e irrigada por quedas d’água que mergulham no rio Liwu, ali agitado por rápidos furiosos.
Caminhamos ao longo destes túneis semi-abertos. último revela-nos a verdadeira dimensão do cenário
Apenas 2 km para diante, o caprichoso Liwu obriga-nos a nova travessia, a da Bridge of Motherly Devotion.
Esta ponte foi construída pelo ex-Presidente de Taiwan, Chiang Jing-guo, filho de outro bem mais famoso, Chiang Kai-shek pioneiro político-militar da República da China (Taiwan) que viu o seu exército derrotado na guerra civil que grassava China continental e se viu forçado a refugiar na ilha.
Chiang Jing-Guo, inaugurou a ponte em memória da sua mãe, inspirado pelo pai. Chiang Kai-shek, ele próprio, mandara erguer um pavilhão budista em honra da avó de Jing-Guo.
Vencemos os leões de pedra que guardam a sua entrada e contemplamos os enormes calhaus que partilham o caudal farto, agora na companhia de Jack que volta a recorrer um dos seus termos anglófonos preferidos: “Rio doido, não é" ? ” questiona-nos sabendo de cor e salteado que o iríamos confirmar.
Tiangsiang é a última e a maior povoação da Garganta de Taroko. Surge encaixada no seu limiar, com montanhas verdejantes em fundo. Vislumbramos, a destacar-se da vegetação, o pagode de seis andares de Heavenly Summit e um buda dourado que abençoa os visitantes, os que, como nós, se sacrificam a subir o trilho íngreme até ao complexo religioso de Xiangde e os outros que, como o nosso anafado e indolente condutor, se furtavam à pequena peregrinação. “ Lá acima??! Está doido. O Marco está doido, Sara, só pode ser isso!”
Rimos a bom rir, deixamo-lo à galhofa com outros condutores e guias turísticos e fazemo-nos ao caminho. Estávamos no derradeiro território do desfiladeiro e não guardávamos tempo para descontrair nas suas termas de Wenshan, um momento adicional de lazer com que muitos visitantes fazem questão de terminar a exploração de Taroko. Em vez, voltámos a massacrar a pernas em nome de Buda e da descoberta. Seguiu-se uma longa viagem rodoviária pela continuação da Central Cross-Island Highway, até Hsitou, já no lado de lá de Taiwan.