O Abrigo Disputado do New Yak Hotel
O conforto. O bem-estar. O calor. Não serão os visitantes-caminhantes que estão mal habituados. A necessidade é universal.
Durante o circuito Annapurna, mal o sol se some para trás das montanhas, a vida parece girar em redor do fogo. No New Yak Hotel de Braga, repetiu-se a competição pelos lugares em redor do lume, naquele caso, alimentado a lenha na salamandra do estabelecimento.
Um grupo de alemães que despertava com as galinhas e com o dia já planeado de fio a pavio, voltou a vencer.
Saímos do quarto, de duche tomado e tralha mais ou menos arrumada. Quando entramos na sala de estar e de refeições da pousada, os jovens teutónicos monopolizavam o calor.
A sala estava disposta sob o comprido. Sobravam apenas uns poucos lugares no extremo oposto à salamandra, junto ao balcão e à saída da cozinha.
Sem alternativas, é lá que nos instalamos. Pedimos o jantar. Antes, durante e um bom tempo após a refeição, participamos num outro passatempo clássico das pousadas do Circuito Annapurna.
O New Yak carecia de tomadas nos quartos. Tudo o que eram carregamentos de baterias de dispositivos estava concentrado numa única torre com dezenas de entradas.
Estranho Passatempo Eléctrico
Fosse ou não propositado, as entradas dessa torre Made in China não seguravam a maior parte das fichas. O problema já seria sério com três ou quatro fichas por ligar.
Mas eram mais de trinta as que disputavam a torre. Mal lá colocámos os nossos dispositivos, percebemos o quão frágil era o contacto que obtínhamos. Bastava um outro hóspede tocar numa das suas fichas que fazia desligar duas ou três em volta.
Na prática, esta falha fazia com que nenhum deles ficasse tranquilo com os carregamentos. Em vez de conversarem à mesa, sossegados, repetiam vaivéns à torre de alimentação.
Mal uns a deixavam, apareciam logo outros preocupados com a possibilidade de os anteriores terem desligado os seus aparelhos.
Nós, estávamos sentados logo ao lado da torre. Até podíamos ter ficado em último na disputa pelo fogo mas, compensámos na intimidade que conseguimos com aquela caprichosa central eléctrica.
Outra consequência da sua disfuncionalidade foi que ninguém teve paciência para esperar até aos dispositivos ficarem carregados em pleno. Nessa noite, nós como os outros hóspedes, confiámos o seu funcionamento a powerbanks que trazíamos carregados para emergências.
Nem sequer o dono da pousada permitiria grandes noitadas. Feito o seu habitual lucro, na hora pós-refeição do costume, os funcionários do New Yak deixaram de colocar lenha na salamandra. A sala depressa ficou gelada. Era o sinal que todos conheciam de que chegara a hora de ir para a cama.
A entrada vespertina na povoação, tinha deixado antever uma Braga deslumbrante. De acordo, dormimos o melhor possível.
Novo Dia, Nova Braga
Pouco depois da alvorada, sentamo-nos na esplanada na companhia do compincha turco de caminhada Fevsi. Sob um sol uma vez mais radiante, devorámos as papas de aveia com maçã e mel do nosso contentamento.
O alemão Josh, que havia recuado uns bons quilómetros até Chame para recuperar o seu Permit do circuito, já ali surgia. Passada meia-hora, chegou um outro grupo de caminhantes que tanto Fevsi como Josh conheciam. Eram Bruno e Cris, ambos brasileiros.
E Lenka e Tatjana, alemãs, a primeira com ascendência russa. A segunda, filha de pai alemão e de mãe também alemã mas com origem meio cazaque, meio chinesa.
Confraternizamos por breves momentos. Após o que cada um segue no modo para que mais estava virado. Fevsi ficou a vegetar na esplanada. Nós, Josh, Bruno e Lenka saímos à descoberta de Braga.
Como acontecera no fim de dia anterior, alguns iaques pastavam a erva ensopada no declive suave entre os dois paredões de rocha calcária que encerravam a povoação a leste e a ocidente.
Não eram só iaques. Cinco ou seis potros que se tinham juntado ao pastorício, compunham o cenário bucólico com que a manhã nos prendava.
O Misticismo Sobranceiro do Mosteiro de Braga
Por mais que a natureza e a geologia do lugar ali resplandecessem, eram as componentes humanas que tornavam Braga especial: o seu mosteiro budista excêntrico, encaixado na base de uma miniatura de cordilheira repleta de picos afiados, uma gompa com história única e importância a condizer.
E o casario intrigante que, à vista, parecia quase troglodita instalado abaixo e em redor.
Kama Chhiring, um morador, concedeu um depoimento online ao site de repositórios culturais Mandala da Universidade da Virginia.
Nesse testemunho, explica em dialecto manange que um grande lama tibetano – Khatu Karma Lapsang, da décima primeira incarnação – passou por aquela zona há mais de meio milénio.
Decorrido algum tempo, esse Karmapa mandou lá erguer o mosteiro de Braga para abrigar uns poucos ídolos tibetanos que, na actualidade, os religiosos budistas continuam a proteger e a preservar.
Nos dias que correm, o templo abriga muitos mais. Guarda centenas de estátuas de Buda, umas mais sagradas que outras, de acordo com a sua antiguidade.
Graças ao mosteiro, o budismo tibetano disseminou-se pelas aldeias e lugarejos da região. Mantem-se, hoje, a fé indisputada não só das povoações de língua manange como de muitas outras destas partes dos Himalaias.
A gompa de Braga não é, todavia, o tipo de mosteiro que receba, todos os dias, grandes comitivas de crentes. Apesar de contar com mais de trezentos moradores, Braka parece-nos deserta.
Tínhamos lido em qualquer lado que a visita do mosteiro implicava o pagamento de uma entrada. Mas, quando ascendemos para o tecto-terraço nas suas alturas, não encontrarmos vivalma a quem pagar o ingresso.
Uma Deslumbrante Cúpula Panorâmica
Subimos para o derradeiro andar por uma pequena escada de madeira esculpida.
Dali de cima, por uma boa meia-hora, deixamo-nos deslumbrar com a visão majestosa das montanhas Annapurna III (7.555m) e Gangapurna (7.455m) a sul, com os seus cumes altivos ainda bem nevados.
Daquele cimo, examinamos ainda a leva de casas feitas de pedra cinza, adobe e madeira, umas encavalitadas sobre as outras, cada qual com o seu estandarte budista multicolor a esvoaçar, todas elas apoiadas na falda oposta em que se havia aninhado Braka.
Esta era a Braka secular e genuína. Aquela que os forasteiros como nós vasculhavam de passagem. Havia a outra, bem mais recente.
A instalada de ambos os lados da estrada Manang Sadak, com o rio Marsyangdi à vista, onde se sucediam as pousadas e casas de chá, nas posições mais convenientes para capturarem os caminhantes derreados e esfomeados. Primeiro a New Yak.
Logo, várias outras, alinhadas na direcção de Manang que já distava menos de quatro quilómetros. Manang é a maior das povoações das redondezas.
Os caminhantes lá tratam dos derradeiros preparativos e procedimentos para a travessia suprema do circuito: a do desfiladeiro Thorong La, a 5.416 metros de altitude, quase dois mil acima da Braga que continuávamos a explorar.
De Passagem, pela Vida Ténue de Braga
Deixamos Bruno e Lenka entregues a um momento de contemplação e meditação que requeria silêncio. Voltamos a descer para a base do templo. Vagueamos pelas ruelas da aldeia ainda cobertas de gelo ou neve nos recantos por que os raios solares não se haviam ainda aventurado.
Uns poucos lares estavam abandonados. As suas ruínas precipitavam-se sobre os becos estreitos. Obrigavam-nos a caminhar sobre pilhas de pedras resvalantes.
Esses lares, como os outros, contavam com janelas de madeira rendilhadas e, mesmo se sem a cor de outros tempos, elegantes.
Quase todas as casas incluíam currais na base. E, sobre estes currais, haviam alpendres que os moradores atafulhavam de lenha seca, em que instalavam os seus estendais de roupa e, aqui e ali, pequenas antenas discais de televisão.
Regressamos à orla deste casario, onde os lares raiavam com o prado ensopado que mantinha os animais de carga ocupados. Nessa zona, limítrofe, damos por fim com alguma vida humana.
Entre Cabras e Iaques
Uma família transportava grandes cestos a transbordar de uma mistura escurecida de palha com caruma. Faziam-no entre um monte escorado da substância e um curral a quem davam uma nova cama.
Mais abaixo, um rebanho de cabras regressava ao seu abrigo.
Para gáudio de Tenzin, um menino nepalês com os seus dois anos (ou menos) que se entretinha a tentar barrar a passagem aos cabritinhos e que vimos celebrar, sorridente, quando Sonan Tchincap, o seu jovem pai, lhe passou um deles, castanho-claro, bem felpudo, para o colo.
Voltamos a cruzar-nos com mais iaques. Dois deles, negros, já quase mais vacas que iaques de tantos cruzamentos passados, permaneciam junto a uma vedação de madeira, imóveis, com excepção para as bocas que pareciam mastigar e saborear o ar.
Tal como o percebíamos, só há pouco tempo os donos os tinham soltado da frigidez nocturna dos seus aposentos.
Enregelados, hirtos a condizer, os animais recarregavam-se com o calor solar da manhã, ainda mais lentamente que os telemóveis e powerbanks na New Yak.
Ainda nos virámos para trás duas ou três vezes. Nunca chegámos a ver os bovídeos mexer-se.
Naquelas deambulações e preparos, o dia ia quase a meio.
Estava na altura de regressarmos à base logística da pousada.
Havia muito mais que explorar nos arredores de Braga pelo que estendemos a estadia por outra noite. Manang e o temido Thorong Pass podiam perfeitamente esperar.