Com o fim da tarde e o escurecer, acendem-se as luzes do pórtico em arco.
A entrada para o Louis Armstrong Park destaca-se no fundo da St. Ann Street, visível de umas três ou quatro esquinas, se não mais.
Às quintas, as autoridades celebram a história e a vitalidade musical de New Orleans com um evento recorrente e no tom certo.
Tendo em conta a profusão de tocadores de instrumentos e vocalistas, só na cidade e arredores, como das bandas que formam, o Jazz in the Park fez-se e faz-se por si só.
Pela apetência genuína dos músicos locais de se exibirem, de prendarem os espectadores, tantos deles também instrumentistas, com o jazz reciclado e renovado da Big Easy.
Quando não é o Jazz in the Park, são outros concertos, festivais e exibições que animam a miríade de bares e salas de espectáculos, sobretudo as do French Quarter e da “rival” Frenchmen Street.
Não só.
“Buddy” Bolden e Louis Armstrong: os Nomes Primordiais de New Orleans
Ditou a fama e relevância de Louie – ou de Pops ou de Satchmo, como era também tratado – que o espaço verde recebesse o seu nome.
Como recebeu o aeroporto internacional de New Orleans, o único no Mundo baptizado em honra de um músico de jazz, dos poucos que mantêm o sistema de som a passar clássicos de jazz, incluindo os mais afamados, de Armstrong.
Estes baptismos podiam ter calhado a outras figuras incontornáveis da cena jazzística da Cidade Crioula.
A começar por Charles “Buddy” Bolden, antecessor de Louis Armstrong, considerado, de forma mais ou menos unânime, o criador da música original que, decorrido algum tempo, viria a ser apelidada de Blues e de Jazz.
Entre 1898 e 1906 – ano em que Louis Armstrong fez cinco anos – “Buddy” Bolden foi considerado o rei da música negra de New Orleans.
Por essa altura, tocava uma corneta, nem sequer a trompete com que Pops veio a recalibrar e a refinar o Jazz. Armstrong considerou “Buddy” Bolden “um génio muito à frente de todos os outros, demasiado prodigioso para o seu tempo”. E, isto, sem que “Buddy” Bolden tenha, alguma vez, gravado a sua música.
King “Buddy” tocava a sua corneta com tal ritmo e intensidade que chegava a levar os dançarinos e quem o acompanhava a um êxtase difícil de controlar.
O talento de “Buddy” Bolden, de Jelly Roll Morton e discípulos, chegou aos ouvidos dos proprietários de bordéis, salões e salas de dança de New Orleans. Sobretudo os de Storyville, o bairro local da prostituição, entre 1897 a 1917.
Neste ano, a marinha e o exército dos E.U.A., apreensivos com a corrupção dos seus militares, forçaram as autoridades de New Orleans a fecharem os bordéis.
Subsistiram os cabarets, restaurantes, salões de dança, speakeasies e as casas de jogo e de prostituição apostadas em evadir os frequentes raides policiais.
Foi nesse ambiente ainda caótico, num estilo para sempre conotado com o jazz, que Louis Armstrong aperfeiçoou melodias que encheu com a sua voz áspera, mais tarde qualificada como Scat.
Da geração jazzística seguinte, veio a destacar-se o “Rei dos Swingers”, Louis Prima, de sangue italiano.
Os especialistas em jazz consideram este duo branco e negro de “Louis” o responsável pelo reconhecimento do jazz em redor do Mundo.
Quando, no dia seguinte, cirandamos em redor do lago no âmago do parque, acima e abaixo da ponte que o cruza, deparamo-nos com a estátua de Armstrong, trompete na mão esquerda baixa, um lenço na direita, erguida.
A Congo Square e os Primórdios da Música Orleaniana
Sobre a raia com a Congo Square, damos com uma outra estátua de bronze de uma das bandas de rua que, amiúde, percorrem as ruas do French Quarter e, por lá, entre aniversários, Mardi Gras e funerais, geram frenesins reminiscentes dos de King Buddy.
Se o acto corneteiro de “Buddy Bolden” se revelou pioneiro, devemos também sublinhar que surgiu de um contexto apurado desde 1719, o ano em que aportaram na Ilha Dauphin (leste de New Orleans) os navios negreiros, “Aurore” e o “Duc du Maine” com os primeiros dos cerca de 12.000 escravos forçados a servir na colónia de Luisiana, boa parte deles, em New Orleans.
Há uma razão secular para o Louis Armstrong Park ter incluído a Congo Square.
Com o passar dos anos, foi este o lugar adaptado pelos escravos e seus descendentes livres para se reunirem, aos Domingos, o dia em que o podiam fazer.
Lá se encontravam, munidos de tambores, guizos de gado, banzas (precursores do banjo), balafones, mbiras, maracas e outros.
Prendados com a liberdade que aquele retiro lhes concedia, combinaram sons e ritmos evocativos das terras africanas de que provinham.
Com canções introduzidas pelos colonos brancos, com frequência, hinos de trabalho e gritos de campo, temas espirituais animistas e os gospels cristãos entoados em coros de igrejas.
Com o tempo e a abolição da escravatura, as influências dos índios da região, as chegadas de Cuba e com os milhares de imigrantes europeus, ditaram a génese da prolífica música orleaniana: o estilo dixieland.
A tradição das charangas.
Com o século XX, a Emancipação dos Blues e do Jazz
A partir de 1910, a sua “catalogação” como jazz colocou os sons e ritmos de New Orleans num escaparate distinto do ragtime, então hiperpopular nos Estados Unidos.
A liberdade e profusão artística de New Orleans descambou num número surreal de bandas.
A determinada altura, tão abundantes e estridentes que um jornal diário da cidade publicou um artigo lamuriento, a queixar-se da sua culpa na infernização da cidade.
Ora, para bem dos admiradores de música em redor da Terra, essa infernização acentuou-se e diversificou-se.
Com a participação, às tantas, emblemática de salas como o incontornável Preservation Hall, o jazz conquistou uma antes inesperada adulação.
Detectamo-a também expressa num sortido de murais de rua garridos e hiperbólicos que nos deslumbram.
A Realidade Musical Actual da Big Easy
Hoje, os músicos de jazz da cidade cobram bem para tocarem junto a comensais.
Ou, como testemunhámos por ocasião do aniversário de uma forasteira prendada pela cara-metade, enquanto First Lines deambulantes.
De tal forma respeitadas que dois polícias sobre motorizadas lhes garantem e aos seguidores passagens seguras pelas esquinas do French Quarter.
Os músicos menos conceituados, esses, instalam-se nas ruas do bairro francês.
Tocam pelo prazer de tocar e por uns poucos dólares. Em busca da fama que New Orleans granjeou a tantos outros.
À saída de umas compras, vemos um trio de contrabaixo, viola e clarinete instalar-se entre o supermercado e a casa mais famosa da cidade, a LaBranche House, com varandas pejadas de plantas que despontam das armações de ferro.
No seu pleno, o lugar seria perfeito. Só que decorrem trabalhos. A rua está cheia de andaimes.
Mesmo assim, centenas de transeuntes detêm-se e assistem.
Uns poucos, recompensam os músicos.
O jazz da Big Easy renovou-se e renova-se dia após dia, nas ruas, bares e salas.
Do Jazz ao Funk, ao Rap, ao Hip-Hop e Tudo Junto
A partir do jazz, a cidade gerou uma série de novos estilos. A devoção artística e comercial das suas gentes pela música, fez multiplicar os estúdios de gravação e os agentes.
Artistas de outras partes dos E.U.A. reconheceram o talento de New Orleans.
Recorreram às suas salas de gravação vezes sem conta.
Paredes meias com talentos da casa emergentes como Fats Domino, o talentoso e multifacetado Allen Toussaint que forneceu criatividade a inúmeros outros nomes, a Aaron Neville e aos The Meters, estes, considerados pioneiros do funk, a par com James Brown.
Numa parede da Frenchmen Street, damos com um mural enorme.
Homenageia um ídolo da cidade mais recente (1941-2019), Dr. John, músico sem-fronteiras que se moveu pelos blues, jazz e funk, até ao R&B.
Com o “filho” da cidade, Lil Wayne, New Orleans deu um contributo inolvidável para a afirmação do rap sulista dos E.U.A.
Como pudemos acompanhar no Fried Chicken Festival da cidade, Big Freedia protagoniza e promove o Bounce um estilo de hip hop dançado com as ancas e o rabo que se diz originário da Big Easy.
No campo do Indie Pop, têm-se destacado os The Revivalists.
Em dois palcos distintos, um ao ar livre e outro numa sala escura, temos ainda o privilégio de descobrir nomes e sons que nos soam os mais peculiares e inesperados.
Flagboy Giz, e o Hip Hop com Génese Indía de New Orleans
Ambos espectáculos são liderados por Flagboy Giz, um orleaniano com sangue indígena que idolatra New Orleans, o Mardi Gras e tudo o que destaca a cidade das demais.
Com óbvio desprezo para a gentrificação e o excesso de forasteiros que dela se servem sem interesse genuíno.
Assistimos a actuações de Flagboy Giz, acompanhado dos The Wild Tchoupitoulas e do seu próprio filho, ainda nem adolescente.
Malgrado o calor húmido, admiramo-los enfiados em trajes tradicionais do Mardi Gras, debaixo de cocares garridos e enormes e de máscaras faciais que evocam o quão temidos foram os Tchoupitoulas na sua luta contra os invasores europeus.
Flagboy Giz, os The Wild Tchoupitoulas e a realidade musical índia de New Orleans formam um tema a que não temos como resistir.
Em breve, vamos dedicar-lhes o seu próprio artigo.
COMO IR
Reserve o voo Lisboa – Miami (Flórida), Estados Unidos, com a TAP: flytap.com por a partir de 820€. De Miami, poderá cumprir a ligação para New Orleans (1h30) por, a partir de 150€, ida-e-volta.
Onde Ficar:
The Mercantile Hotel:
themercantilehotelneworleans.com
Tel.: +1 504 558 1914-1914