A velocidade parcimoniosa, o número de paragens demoradas, a instabilidade na carruagem e a paisagem campestre atravessada pela linha JR Nikko não deixavam grande margem para dúvidas.
A grande e sofisticada Tóquio tinha ficado para trás.
Mais duas ou três estações e apeadeiros anunciados com som estridente e confirma-se a gare terminal de Nikko. Os passageiros confluem para o final da plataforma e afunilam-se na porta de saída. Pouco depois, disputam também um lugar nos autocarros que os irão poupar à ladeira que conduz ao complexo dos templos.
Continuamos sem pressas e desperta-nos curiosidade a vida local. Subimos, assim, ao ritmo marcado pelas pernas carregadas e vamos examinando a panóplia de estabelecimentos térreos, do restaurante que sugere o bife irrepreensível de Ishigaki a antiquários recatados e excêntricos.
Torna-se óbvio que, quanto mais nos afastamos da estação, mais dificuldade têm os negócios de prosperar, mesmo sendo Nikko um dos lugares predilectos entre os viajantes tanto os nipónicos como os forasteiros que se aventuram por estas terras sagradas do imperador.
Ponte Shinkyo e a Travessia para o Japão Medieval e UNESCO de Nikko
A estrada urbana 119 desemboca no rio Daiya. Submete-se a uma espécie de recuo forçado no tempo quando introduz a passagem pela ponte Shinkyo, laqueada a vermelhão.
O caudal desce de uma encosta verdejante e frondosa. Flui apressado e forma águas brancas que se debatem com rochas polidas e determinadas.
De acordo com a lenda, Shodo Shonin, um sacerdote budista que estabeleceu um retiro na zona no século VIII, atravessou este rio sobre duas serpentes gigantes.
Durante a época medieval, a ponte serviu apenas os membros da corte imperial e os generais. Já nos dias que correm, a pequena ponte faz parte do santuário Futarasan e podemos considerar que é para todos mesmo se cobra a cada transeunte uma portagem turística inflacionada de 500 ienes (quase 4 euros).
Do lado de lá do Daiya, impõe-se a sombra da encosta florestada que abriga o reduto histórico de Nikko. Vencemos as escadarias na companhia de alguns outros visitantes nipónicos idosos de perna curta mas vigor preservado. A meio do trilho, confrontamo-nos com um grupo de campesinos fora de tempo e contexto.
Percorremos toda uma rua ajardinada que esconde templos e estalagens e deparamo-nos com uma alameda de terra batida que serve o complexo dos principais monumentos.
Não somos propriamente os primeiros a chegar. Há uma multidão organizada e tranquila de ambos os lados, contida por linhas duplas de cordas esticadas e pela presença de agentes de autoridade austeros.
O Cortejo Grandioso Toshogu Nikko Festival
A espera prolonga-se. Intensifica a ansiedade e dá origem a pequenas contendas de cada vez que espectadores soberbos em lugares com visibilidade reduzida tentam instalar-se sobre os pequenos escadotes ou bancos trazidos de casa. Entretanto, é inaugurado o espectáculo e estas diferenças são debeladas.
A procissão tinha partido das imediações da ponte Shinkyo às dez da manhã em ponto. Vencida a primeira curva, surgem na dianteira religiosos que carregam três relicários com os espíritos dos três principais xoguns da era Tokugawa.
É, assim, reproduzida a cerimónia original em que, de acordo com a sua vontade em vida, a sepultura do fundador da dinastia Ieyasu Tokugawa (1543-1616) foi movida do monte Kuno para Nikko.
Dão seguimento ao séquito mais de mil outros participantes divididos por categorias. Vemos sacerdotes xintoístas a cavalo, centenas de samurais sob capacetes dourados e armaduras garridas e listadas, em tons combinados de amarelo e negro, também de azul e branco.
Integram ainda a parada figuras reais e imaginárias da época, membros das classes e posições mais humildes: simples soldados, arqueiros, falcoeiros, cortesãos, porta-estandartes, músicos
E … Tengu, um cão celestial semi-deus xintoísta, representado com a sua habitual face vermelha e nariz exagerado.
O cortejo prova-se tão pomposo quanto colorido. Move-se em jeito de câmara lenta até que passa sob o torii (portal) imponente de granito, ao lado de um pagode de cinco andares com 35 metros.
Entra, por fim, no santuário-mausoléu Tosho Gu com a bênção dos dois reis Deva escarlates que examinam cada um dos visitantes dos pés à cabeça.
O Estatuto Quase Divino do Imperador Ieyasu Tokugawa
À sua maneira, Ieyasu Tokugawa fez por merecer toda esta reverência. Nascido em 1541, tornou-se num xógun temido e conquistador.
Os portugueses chegaram ao Japão em 1543. Relataram um arquipélago em que o Imperador tinha um poder quase simbólico, semelhante ao do Papa na Europa e em que a autoridade sobre território era disputada por vários clãs liderados por senhores da guerra.
Um conjunto de circunstâncias e ironias do destino fizeram com que, em 1600, o domínio do Japão fosse disputado na Batalha de Sekigahara, por dois exércitos desses clãs.
Ieyasu liderava o vitorioso.
Apesar de terem passado mais três anos até que consolidasse o seu poder sobre o clã rival Toytomi e os restantes senhores feudais do Japão (os daimyo), esta batalha é reconhecida como o início oficioso do último xogunato supremo e indisputado.
Depois dela, até à restauração Meiji que, em 1868, pôs cobro ao período feudal Edo (ou Tokugawa) o Japão viveu em paz e viu reforçada a sua nacionalidade.
Ieyasu, o fundador da dinastia e principal responsável por esta mudança granjeou inúmeros tributos póstumos dos descendentes e súbditos, incluindo a dedicação de 15.000 artesãos vindos de todo o Japão para trabalhar durante dois anos na reconstrução do seu mausoléu.
O Reconhecimento e a Vassalagem do Povo Nipónico
Popularizou-se a noção de que tinha as qualidades ideais para ascender ao poder. Era corajoso mas, quando necessário, cuidadoso. Estabeleceu alianças calculistas sempre que sentiu que com elas poderia beneficiar.
Viveu numa era de brutalidade, violência e morte súbita mas foi fiel a quem o apoiou e recompensou, sem reservas, os vassalos que o seguiram.
Ieyasu teve dezanove esposas e concubinas que lhe concederam onze filhos e cinco filhas. Sabe-se que tinha sentimentos fortes pelos descendentes mas também podia ser cruel com quem o atraiçoava ou se lhe opunha.
Ordenou a execução da sua primeira mulher e do filho mais velho, alegadamente por motivos políticos.
O grande xógun também nadava com frequência. Sabe-se que, num período mais avançado da sua vida, o fazia no fosso no castelo de Edo (actual Tóquio).
A Falcoaria Real que o Festival de Nikko continua a Homenagear
Mas o seu passatempo favorito sempre foi a falcoaria que considerava um treino perfeito para a guerra. Ieyasu defendia que “quando se vai para o campo falcoar, aprende-se a compreender o espírito militar e também a vida dura das classes mais baixas.
Exercita-se os músculos e treina-se os membros. Caminha-se e corre-se. É-se indiferente ao calor e ao frio e é menos provável que se fique doente.” Também esta sua paixão é recuperada com frequência em Nikko.
Num dos dias em que exploramos a povoação, passamos por debaixo do torii e constatamos uma secção pré-delimitada para um outro qualquer evento.
Entramos na área do santuário Tosho Gu e vemos um grupo de falcoeiros trajados com elegância histórica e alinhados com as suas aves de rapina sobre os braços esquerdos.
Soa música xintoísta. A estranha melodia religiosa deixa pouco espaço para dúvidas sobre o cariz da cerimónia. Pouco depois, um sacerdote que empunha uma vara harai gushi purifica os falcoeiros brandindo as longas fitas shide em frente das suas cabeças e dos falcões.
Uma Vez Mais A Falcoaria Destaca-se
Findo o ritual, os falcoeiros descem as escadarias do recinto em fila, dirigem-se para a saída e ocupam os lugares respectivos. Já cercados por uma multidão entusiasta, dão início às suas exibições. Atam pedaços de carne a cordas e fazem-nas girar no ar em contínuo.
Então, soltam as aves que ganham altitude, preparam-se para a investida e, em quase todos os casos, capturam as presas a fingir em plena rotação, para sua recompensa imediata e sensação de dever cumprido dos mestres.
O comboio JR Nikko para Tóquio partia dentro de três horas. Percorremos os derradeiros quilómetros no domínio póstumo de Tokugawa de regresso à estação da cidade.
Pouco depois, regressámos ao Japão futurista.