A penumbra da floresta de cedros em que se esconde o núcleo histórico de Nikko destaca-se para lá do caudal bravio do rio Daiya.
É nela embrenhados que nos juntamos a um pelotão de peregrinos nipónicos que avançam com grande determinação. Mais para a frente, passamos por um grupo de trabalhadores rurais que pouco reagem à agitação em redor das suas terras.
Completamos um caminho mais amplo ladeado por santuários e estalagens que continua para uma alameda imponente, de terra batida, que conduz ao complexo religioso secular da povoação.
Ingressamos no interior do santuário ToshoGu determinados a explorá-lo com a reverência que merecia ao Japão o seu xogum Tokugawa Ieyasu.
Do lado de lá do pórtico de entrada, damos com os Sanjinko, três casas de armazenamento sagradas, uma delas com imagens em relevo de elefantes criadas por um artista que se acredita nunca ter visto a verdadeira criatura.
À esquerda da entrada fica o Shinyosha, o templo sagrado que abriga um cavalo branco esculpido, desta feita mais credível. Este estábulo está adornado por várias imagens alegóricas de macacos, também em relevo.
Na mais famosa, três das figuras primatas aconselham por mímica “não oiça o mal, não veja o mal, não fale o mal” e demonstram, assim, os três princípios do budismo Tendai.
Continuamos o périplo.
Na sequência, encontramos uma fonte de granito em que, de acordo com a prática xintoísta, dezenas de fiéis japoneses disputam as colheres douradas disponíveis para lavarem as bocas, depois de já terem feito o mesmo às mãos.
Logo após, encontramos o edifício exuberante da biblioteca do santuário, com mais de 7000 pergaminhos e livros religiosos. Passado novo pórtico e lance de escadas, emergem a torre do tambor e o campanário.
Nas imediações, surge o Honji-do, um salão conhecido por ter no tecto uma pintura de Nakiryu, um dragão que chora.
Ali, de quando em quando, ouvimos monges baterem duas barras uma contra a outra para demonstrarem a acústica do salão, em concreto que o dragão ruge quando o som é feito debaixo da sua boca.
O próximo edifício a destacar-se é o pórtico do Pôr-do-sol (Yomei-mon), coberto de folha de ouro, esculpido de forma intrincada e pintado com flores, dançarinas, animais míticos e sábios chineses.
Para a posteridade, ficou a crença de que, preocupados com que a sua perfeição pudesse despertar a inveja dos deuses, os responsáveis pela construção decidiram colocar o derradeiro pilar de pernas para o ar.
Deixamos para trás o Jin-yosha que serve de abrigo aos santuários portáteis usados durante os festivais. Chegamos ao Salão Principal e ao de Veneração que alojam pinturas dos 36 poetas “imortais” de Quioto e um tecto com cem dragões todos distintos.
Aos poucos, aproximamo-nos de Sakashita-mon, um pórtico adicional que se abre para um trilho ascendente entre enormes cedros que conduz, por fim, ao túmulo de Ieyasu, tal como esperávamos, solene.
Os japoneses têm um ditado popular que professa que não se pode dizer “belo” (kekko) até se ter visto Nikko. Nesse fim-de-semana, milhares levaram a expressão à letra e confluíram para a zona sagrada da cidade determinados em descobrir mais sobre a alma e a história do país.
Percorremos, na sua companhia, a avenida que liga Tosho Gu a Futarasan – o templo mais antigo de Nikko, fundado pelo eremita Shodo Shomin, em 1619 – ao mausoléu Taiyu-byo.
Após o prioritário ToshoGu, por norma, os visitantes dirigem-se a Futasaran para venerar três divindades xintoístas: Okuninushi, Tagorihime e Ajisukitakahikone.
E descobrir o santuário protector de Nikko, dedicado à montanha Nantai que, com 2248m, contribui em grande parte para a rigidez climatérica da região.
Já no mausoléu Taiyu-byo, prestam homenagem ao neto de Ieyasu, Iemitsu Tokugawa (1604-51) que decretou que o seu sepulcro não pudesse ofuscar o do avô. Como se isso fosse possível.
Para a maior parte dos japoneses de hoje, Ieyasu Tokugawa é digno de toda a reverência que ali admiramos e de muito mais.
Nascido em 1541, o militar tornou-se um xogun temido e conquistador. Dois anos depois de Ieyasu ter vindo ao mundo, os portugueses desembarcaram em terras hoje japonesas. A supremacia e o território das várias ilhas eram disputados por senhores da guerra, líderes de clãs rivais.
No contexto desses sucessivos conflitos calhou que, em 1600, o domínio de quase todo o actual Japão estivesse em jogo numa única batalha, a de Sekigahara. Travaram-na dois exércitos, ambos formados por diversos clãs aliados.
Ieyasu conduziu o triunfante. Decorreram três anos até que a sua supremacia sobre o clã rival Toytomi e os demais senhores feudais do Japão (os daimyo) fosse indisputado.
Hoje, a batalha Sekigahara é tida como o dealbar oficioso do derradeiro xogunato supremo. Depois dela e até à restauração Meiji – que, em 1868, encerrou o período feudal Edo (ou Tokugawa) – as ilhas nipónicas viveram por fim em paz.
Também a nacionalidade japonesa começou a ganhar expressão.
Ieyasu, o fundador da dinastia e mentor militar e ideológico desta evolução drástica foi prendado com inúmeros tributos póstumos dos descendentes e súbditos. Entre eles, contou-se a entrega de 15.000 artesãos provenientes de todo o Japão que trabalharam dois anos a fio na reconstrução da sua última morada.
Regressemos ao mausoléu. Não demorámos a perceber que o edifício Taiyu-byo do santuário Toshogu agrupava vários dos elementos do modelo original.
Revelava-se mais pequeno e mais intimista, com algum mistério adicional emprestado pelas dezenas de lanternas de pedra doadas pelos daimyo e pela sombra lúgubre da floresta de cedros japoneses em redor que nos fazia a alameda de acesso ao santuário casamenteiro Meiji, de Tóquio.
Os cedros são, aliás, omnipresentes na área histórica de Nikko.
Por ali se situa uma avenida que é recordista mundial, registada no livro do Guiness como a mais longa via do mundo ladeada de árvores, com 35.41 km de extensão e guarnecida de 200.000 criptomérias japónicas.
Trata-se da única propriedade cultural japonesa designada pelo governo nipónico ao mesmo tempo como Sítio Histórico Especial e Monumento Natural Especial.
O lugar para onde nos mudamos em seguida, ávidos por alguma reclusão, é igualmente singular. Demoramos a achá-lo, atrasados pela incompatibilidade linguística e por indicações dúbias ou disfuncionais.
Quando vislumbramos finalmente a colecção sublime de jizos de Gamman-Ga-Fuchi, tudo muda.
Estas esculturas budistas protectoras das crianças e dos viajantes surgem dispostas sem fim aparente numa franja de floresta à beira do rio Daiya.
Insinuam-se-nos estranhamente arredondadas, clonadas, cobertas de musgo e agasalhadas pelos crentes com gorros e babetes vermelhos.
Bake-jizo, a longa sequência, parece diverti-se com quem tenta contar os congéneres, que se dizem incontáveis. Começamos por tentar a tarefa. Depressa nos rendemos à razão daqueles jizos castradores. E ao tédio da contagem.