Nantou é a única província de Taiwan isolada do oceano Pacífico. Quem hoje descobre o coração montanhoso desta região tende a concordar com os navegadores portugueses que baptizaram Taiwan de Formosa.
Uma de tantas depressões tropicais desfaz-se, aos poucos, sobre Taiwan e a meteorologia exibe-se, sobre a ilha, com trejeitos e caprichos que nos voltam a surpreender a cada dezena de quilómetros que passa, com uma intermitência tresloucada entre céu pouco nublado e sol escaldante e cumulus nimbus assustadores que despejam bátegas diluvianas.
Temos Jack ao volante. É esta a versão anglófona do nome condutor rechonchudo que pouco mais sabe de inglês e liga ao chefe para que este fale connosco de cada vez que se depara com falta de informação ou dificuldades de outros tipos.
“It’s boss!” comunica-nos pela enésima vez desde que havíamos deixado a capital Taipé. “Speak, speak!.” E passa-nos o telemóvel para a mão.
Em conferência com o patrão, decidimos que estava na hora de deixarmos as profundezas luxuriantes da garganta de Taroko e avançarmos para sudoeste na direcção da principal cidade da província, a homónima Nantou e a Hsitou. O trajecto obriga-nos a contornar, pela sua face norte, o monte Chilaichushanpei, um dos mais imponentes da velha Formosa.
Estamos num dos domínios mais sísmicos à face da Terra. Jack têm-no bem presente. No seu estilo fanfarrão de vale-tudo, pesquisa pacientemente num tradutor do seu diminuto smart phone e comunica-nos quase em êxtase: “This road, before, cabuuum! Fall down.”
“Before” já tinha sido há uns tempos mas nenhum taiwanês alguma vez esquecerá o famoso terremoto 921, assim chamado por ter acontecido em 21 de Setembro de 1999, com uma intensidade máxima aproximada de 8.0 e epicentro em Jiji, a umas meras dezenas de quilómetros de onde andávamos. O sismo vitimou mortalmente quase 2.500 pessoas e deixou sem casa mais de 100.000.
Foi etiquetado pela imprensa local de Terramoto do Século, também devido à insatisfação e à devastação económica e política que veio a gerar, com a derrota do partido Kuomintang nas eleições de 2000.
Passamos Wushe e, logo, Puli, ao longo da Central Cross Island Highway e entre encostas íngremes muitas delas repletas de um dos bons chás do Oriente.
Mesmo se praticamente todas as povoações da província foram seriamente afectadas, quando chegamos a Hsitou não detectamos nem sinal deste evento. Reina uma paz de espírito verdejante como há muito não sentíamos, preservada numa neblina densa que teimava em não levantar. Instalamo-nos numa pousada elegante erguida em grande parte em bambu e, mal saímos para explorar a floresta húmida em redor, percebemos a abundância quase excessiva daquele caniçal frondoso e exótico.
Com o novo status quo de pseudo-nação da República da China, a reflorestação da zona tem sido um dos principais projectos e com enorme sucesso. Ainda durante a ocupação japonesa de Taiwan, foi estabelecida uma reserva florestal. A Universidade Nacional de Taiwan que agora a gere cultiva mais de um milhão de árvores – ciprestes, cedros e pinheiros – e rebentos de bambu, todos os anos, nos seus viveiros em terraços. Mais tarde, são distribuídos pela ilha, onde mais falta possam fazer.
Em comparação com a atmosfera de panela de pressão em que certas zonas se veem envoltas o clima de Hsitou é refrescante e o lugar tornou-se muito popular como refúgio de fim-de-semana, também entre casais em lua de mel. Quando chega a sexta, é invadido por uma populaça de Taipé ansiosa por descontrair da azáfama do dia-a-dia em comunhão com a Natureza. Como vínhamos desgastados das muitas centenas de quilómetros já percorridos de carro e a pé, também nós nos entregámos a uma evasão descomprometida, entretidos a circundar o Lago da Universidade e a explorar os trilhos que seguem os riachos que o alimentam. No término de um deles, deparámo-nos com um cipreste com quase 50 m de altura que se crê ter 2800 anos.
A origem do lago para que nos mudámos em seguida é bastante anterior. E, não fosse um projecto hidroeléctrico ainda desenvolvido pelos japoneses, em vez de apenas um, ainda hoje existiriam dois, lado a lado. Em vez disso, a barragem que os nipónicos ergueram fundiu-os num só, o maior de Taiwan, com mais de 9 km de área. A maior parte dos habitantes não se ressentiram por aí além com a mudança. Além de superlativo, calhou que o novo reservatório de águas azuladas e límpidas tivesse enorme encanto. De acordo, muito mais que Hsitou, o Sun Moon Lake é a principal atracção natural da ilha. Muitos trabalhadores de Taipé anseiam em comprar casas nas imediações para ali se retirarem em harmonia, na segunda metade das suas vidas.
Na altura em que ali chegámos, Jack não conseguia um ensejo oposto. Mal desligou o sempre hiperactivo telefone fez questão de manifestar desagrado pelo tempo que já o tínhamos obrigado a passar longe do seu lar na capital. “Wife very angry! Have to go back!”
Conhecemos bem a duração da tarefa de que o haviam incumbido e optamos por ignorar uma vez mais os seus desabafos. Em vez, pedimos-lhe que nos levasse ao templo de Wenwu, que substituiu dois outros bem mais antigos submersos pela represa da hidroeléctrica. Ali, vencemos a guarda de dois leões de guarda de pedra vermelhos e intimidantes e subimos a escadaria para explorarmos duas alas distintas: uma dedicada aos deuses da guerra Guan Gong e Yue Fei e uma posterior erguida em homenagem a Confúcio.
Divindades bem distintas eram adorados em Taiwan antes da ocupação massiva da etnia Han que migrou para a ilha a partir do século XV principalmente da região de Fujian, no litoral da China continental.
Várias tribos aborígenes habitavam Taiwan há pelo menos 10.000 anos, vindas de outras ilhas do Pacífico, de tal maneira que os taiwaneses originais se assemelham muito mais ao povo filipino que, na sua maioria, pertence à etnia malaia). Em tempos, os únicos ocupantes da Formosa, oa aborígenes perfazem, hoje, apenas 2% (quase 400.000) dos mais de 20 milhões de habitantes. Mesmo assim, dividem-se em onze tribos, cada qual com a sua língua.
À imagem do que aconteceu em várias outras paragens do Mundo, os aborígenes de Taiwan também sofreram forte discriminação. Essa situação só melhorou substancialmente nos anos 90 quando o governo lançou um programa de promoção da cultura aborígene de seis anos que contemplou cuidado médico, apoio jurídico e empréstimos subsidiados. Também o melhoramento de estradas que ligavam cidades a povoações aborígenes e a marcação de territórios-reserva que não puderam mais ser vendidos a não-indígenas.
De então em diante, a cultura indígena de Taiwan não cessou de conquistar adeptos. Todo o artesanato e artes em geral ficou na moda e entraram nas casas dos Taiwaneses, a música aborígene entrou nos tops da Formosa e a sua gastronomia nos menus dos restaurantes das grandes cidades. Muitos aborígenes fizeram questão de se livrarem dos seus nomes chineses e recuperarem os tribais. Em simultâneo, casais de etnia Han recém-casados vestem trajes aborígenes durante as sessões fotográficas das suas bodas.
Mas, nem sempre a nova atitude das autoridades e da população chinesa pelos mais antigos habitantes da ilha se reveste da merecida subtileza e genuinidade.
Movidos pela proximidade e pelo aconselhamento frenético de Jack, resolvemos espreitar uma tal de Formosan Aboriginal Culture Village.
Erguido de forma pouco coerente, o parque temático foi pensado para congregar um microcosmos cultural dos grupos étnicos reconhecidos pelo governo, lado a lado com um castelo europeu pouco condizente, um jardim e um vasto parque de diversões. Não demorámos a constatar com o conjunto arquitectónico e que, mesmo coloridos e muito mexidos, os espectáculos levados à cena sobre um palco arredondado no centro de um lago artificial entregavam a Formosa indígena a um óbvio exibicionismo comercial. A locução, apenas em mandarim, pouco nos ajudou a ultrapassar o problema.
Jack assistia pela primeira vez aos shows com indisfarçável deleite. Nós aguentamos uns estoicos quarenta minutos, após o que deixamos o anfiteatro para examinarmos as áreas que agrupavam as habitações, tradicionais, totens e outros elementos fulcrais da sua cultura com pena de não estarmos a admirar uma das suas manifestações a sério, como o Festival das Colheitas ou outra.