A viagem desde Campo Grande para o âmago do Pantanal matogrossense contava já com três horas e meia, incluídas duas paragens em estações de serviço peculiares no meio do nada.
Tínhamos saído da grande cidade ainda cedo, mesmo assim, rendidos ao facto de que não escaparmos à fornaça em que se transformavam aquelas paragens interiores, já quase bolivianas do Brasil, quando o sol disparava para o seu zénite tropical.
Uma Visita Inesperada a Maria dos Jacarés
Faltavam menos de 20km para o destino final. O motorista Sr. Carlos anuncia-nos um inesperado motivo de interesse. “Olhem, a gente tá a aproximar-se aí da Maria dos Jacarés que passa lá na Globo Rural, vocês querem parar?“
A referência soa-nos tão enigmática quanto aliciante. Mesmo derreados e conscientes da meteorologia dantesca no exterior, aceitamos o repto. Carlos detém o carro diante de um negócio-domicílio pespegado à beira da estrada, na iminência de uma ponte sobre um dos incontáveis meandros do rio Corixo Mutum.
Sai por sua conta, em jeito de emissário. Regressa com boas notícias. “Ela não estava a contar mas uma vez que vocês são jornalistas, diz que tá tudo jóia. Vamos lá falar com ela!”.
Entramos no boteco erguido com umas meras tábuas, telheiro de chapa e envolto de uma rede verde e fina que o mantinha arejado e protegido das melgas e mosquitos por ali tão abundantes.
No interior, um homem cinquentão com feições de índio, dormita sobre uma mesa. Uma senhora de idade condizente surge das traseiras do estabelecimento e apresenta-se. “Boa tarde, Maria dos Jacarés, sejam bem-vindos. Vocês querem conhecer meus mininos, né ?”
Continuamos a ouvi-la nas traseiras ribeirinhas de onde tinha aparecido. Um quase monólogo que, à medida que se desenrolava, se tornava surreal como, aliás, tudo em redor.
Ocorre a Maria, ou melhor a Eurides Fátima de Barros – o seu verdadeiro nome – que teremos eventualmente influência política.
Apelo aos Políticos Brasileiros e o Chamamento dos Jacarés
A esperança de podermos melhorar a sua vida fá-la desabafar. “As coisas não tão nada fáceis por aqui, mesmo aparecendo lá no Globo Rural e nas outras TVs e tudo isso, o senador que prometeu que ia legalizar o meu negócio não fez nada ainda. Agora falam por aí que vão me expulsar.
Já chegou o outro cara lá de baixo que quis ficar com meu sítio à força…vocês me ajudem, tá? Eu só quero continuar por aqui. Tratar dos meus mininos!”
A menção dos infantes repetia-se, persistente. Ainda ninguém nos havia esclarecido a que se referia ao certo a senhora mas o seu título não deixava margem para dúvidas. Chegados à beira plana e relvada do Corixo Mutum, Maria apresenta-nos, por fim, as suas crianças.
“Gordo, vem cá! Bruto, Filipão, Ronaldinho, Dunga, Pelezão! Venham à mamãe!” Dª Maria avança em direcção ao rio. Faz soar um berrante, uma corneta de chifre usada no Brasil pelos vaqueiros. Durante um curto hiato, nada acontece. De repente, um grande jacaré negro emerge do rio.
Caminha vagaroso na nossa direcção. Maria bate duas pedras uma na outra e faz chocalhar um ramo de árvore. Vários jacarés seguem o pioneiro. Instalam-se sobre o relvado, na expectativa, na companhia de um bando de urubus que tinham detectado a acção dos céus e pressentiam um banquete.
Maria dirige palavras ternurentas a alguns dos seus répteis preferidos. Prenda-os com pedaços de carne. Mais ao Gordo que aos restantes, quase todos com nomes de jogadores ou treinadores de futebol brasileiros.
Então, escolhe um espécime mais destacado, para nos demonstrar o seu à vontade entre a bicharada. Pega-lhe numa pata e levanta-a.
Deita-se sobre ele, tudo acompanhado com sussurros e demonstrações de afecto afins. “Tadinhos dos meus mininos. Teve uma altura que o pessoal vinha aqui e matava eles. Aí eu decidi me instalar e tomar conta. Agora todo o mundo pode gostar e ver eles. Vocês me ajudam também a protege-los, né?”
O à vontade da anfitriã e a noção de que eram jacarés e não crocodilos do Nilo tinham-nos tornado incautos. Quando demos por ela, estávamos a passear entre os bichos e debruçar-nos para melhor os fotografarmos e filmarmos.
Este texto é a prova de que sobrevivemos para contar.
Rumo ao Passo do Lontra
Maria disse adeus aos jacarés. Nós seguimo-la de volta ao boteco e despedimo-nos com desejos de que os políticos de Campo Grande lhe concedessem a melhor sorte. Enfiamo-nos no carro, cruzamos o Corixo Mutum e completamos os 17km que nos faltavam.
Abastecidos por torrentes intensas e por alguns dos lençóis freáticos maiores à face do Planeta, vários rios serpenteiam por estes lados, em distintos sentidos, entre ilhas mais ou menos grandes de Terra que, mal se instala a época das chuvas, diminuem a olhos vistos.
Ao longo dos tempos, a dinâmica de seca e inunda da meteorologia tem-se mantido regular e controlável pelas comunidades que teimam em colonizar o imenso Pantanal.
Abundam as fazendas boiadeiras, umas com propriedades a perder de vista, outras comedidas, mais comparáveis a chácaras (pequenas quintas). A espaços, as margens dos rios e das estradas principais acolhem também comunidades na sua origem piscatórias.
Lá se instalam os negócios que servem as fazendas, os criadores de gado, os pescadores e as gentes que com estes levam para diante as suas vidas. A Passo do Lontra a que entretanto chegamos é uma de tantas.
Surgiu como um simples rancho “de pouso” usado pelos boiadeiros que cruzavam a região, a 110km para noroeste da cidade de Miranda e quase a mesma distância de Corumbá, na iminência do limiar leste boliviano.
Quando as maravilhas do Pantanal começaram a correr mundo, as suas gentes empreendedoras adaptaram-se às oportunidades trazidas pelos turistas forasteiros.
Uma Fazenda à beira do rio Miranda
Instalada em 1979 por João e Marilene Venturini, a fazenda Passo do Lontra foi uma das que mais cedo se dedicou a receber e entreter os adeptos brasileiros e estrangeiros da pesca e os ecoturistas que lá começaram a afluir.
É como parte do segundo grupo que damos entrada na sua propriedade, em época alta da pesca, não tanto do ecoturismo. As temperaturas máximas teimavam em passar os 40º. Nem todos os viajantes estavam dispostos a suportar tal provação.
O sr. Carlos imobiliza o carro no parque de estacionamento, de frente para um passadiço de madeira dotado de carris de tal forma longos que mal lhes conseguimos perceber o término.
O passadiço conduz-nos às imediações do rio Miranda. Ramifica para outro paralelo ao rio que nos leva aos edifícios palafíticos principais da fazenda.
Refugiamo-nos da sauna que se fazia sentir na frescura ventilada da sala de refeições.
Logo ao lado das portadas de saloon, um pitoresco posto de pinga embelezado por girassóis, dá as boas-vindas aos recém-chegados. “Enjoy the Pantanal” versa o rótulo da garrafa, entre sete copinhos encaixados numa base de madeira maciça.
Atiramo-nos às várias delícias do buffet pantaneiro. Recuperamos assim forças para o fim de tarde de descoberta que tínhamos pela frente. Satisfeitos e recuperados, bebemos um pouco da cachaça com esperança que a leve anestesia aliviasse o calor insano.
Podíamos – provavelmente devíamos – ter dormido uma sesta.
Em vez, começámos de imediato a investigar o que nos reservavam os dez hectares da Passo do Lontra, sempre pela rede de passadiços elevados que a serviam, alguns suspensos sobre o terreno ensopado e verdejante.
A Prolífica Fauna Pantaneira
Em plena época seca, inúmeros animais procuravam água mais fresca e corrente. Concentravam-se junto às margens do Miranda e em redor da fazenda.
Passamos por caravanas de capivaras em travessia de uma das lagoas locais e por jacarés camuflados na vegetação anfíbia.
Damos com mergulhões que enchem os papos de grandes peixes e com tantas outras aves: carcarás destemidos que não se afastam sequer à nossa passagem.
Passamos por tucanos, araras azuis e vermelhas socializáveis, por tachãs e aracuãs, estas últimas os estridentes e infalíveis despertadores do Pantanal.
Mesmo esquivos como são, detectamos e encaramos macacos bugios, todos intrigados pela curiosidade fotográfica que, sem aparente explicação, por eles manifestávamos.
Por volta das quatro e meia da tarde, damos por findo este périplo zoológico inicial. Encontramo-nos com Jeferson no embarcadouro da fazenda. Lá inauguramos a primeira de duas fascinantes incursões fluviais: aquela, vespertina. Uma outra, com início sobre a aurora do dia seguinte.
Em ambas, o Miranda e as suas margens exibiram-nos a realidade fluvial, semi-humanizada daquele não tão remoto Pantanal.
Duas ou três grandes chalanas desajeitadas percorriam o rio para cá e para lá. Proporcionavam aos clientes a bordo, uma dinâmica total de pesca que só não rivalizava com o desafogo e o conforto das fazendas.
Pequenas lanchas surgiam imobilizadas de forma quase sagrada em recantos estratégicos do rio.
Partilhavam-nas mais pescadores, invariavelmente determinados a fisgarem o maior número de pintados, pacus, dourados, cacharas, jaús, barbados e, claro está, as piranhas que o Pantanal lhes concedesse.
Do rio Miranda ao Vermelho e de volta ao Miranda
Serpenteamos no Miranda até ao lugar a que a ele se entregava um afluente, o Vermelho.
Constatamos como o marcava a agonia de uma chácara que se havia instalado na ponta do V criado pela confluência e a que o poder da torrente inflacionada pelas chuvas havia erodido as margens, já quase a provocar o colapso dos edifícios de madeira.
E, no entanto, em plena época seca, a superficialidade das águas ocre do Vermelho barram-nos de o subir mais que umas centenas de metros.
Em jeito de compensação, revelam-nos o ninho hiperbólico ocupado por um casal de tuiuiús, ou jabirus, as enormes cegonhas do Pantanal e mais altas das aves voadoras das Américas, suplantadas apenas, em amplitude de asas, pelos condores andinos.
Quando nos aprontamos para deixar o Vermelho, encontramos ainda uma família de lontras em plena missão de caça.
Acompanhamo-las na sua passagem para o Miranda e no longo trajecto periférico, em parte, anfíbio, que lá empreenderam até quase ao Passo do Lontra.
Na segunda saída para o Miranda, vimos o sol nascer. A começar, tímido, a vencer um manto de névoa celestial escura, para, logo, exibir num laranja-rosado radiante, a sua grande esfera do contentamento terrestre.
De quando em quando, vimo-lo ser rasgado pelos voos de mais aves atarefadas: garças, mais carcarás, gigantescos tuiuiús, os Tupolevs pantaneiros.
Esse sol envergonhado não tardou a sair da casca. Às dez da manhã já desalmava uma vez mais o encharcado Pantanal.
A determinada altura das suas vidas, a primeira geração dos Venturinis – João e Marilene – tinha deixado a Passo do Lontra ao filho Sandro para se instalarem noutra sua fazenda, situada a 20km para norte.
Fizesse o calor que fizesse, estava na hora de também para lá nos mudarmos.
Como Ir:
A TAP voa todos os dias, directamente de Lisboa para várias cidades brasileiras. As mais convenientes para chegar a Campo Grande e ao Passo do Lontra, no Pantanal do Mato Grosso do Sul, São Paulo e Brasília. Destas cidades, poderá completar a viagem com uma companhia aérea brasileira.
Os autores agradecem à TAP e à FUNDTUR Mato Grosso do Sul o apoio concedido na criação desta reportagem.