O guia nascido no Zimbabué Test conduz-nos num dos jipes clássicos de game drive.
Após um percurso introdutório entre a vegetação arbórea do PN Gorongosa, chegamos a uma savana desafogada, preenchida por erva seca quase rasa, por áreas de tufos fartos e densos, de meia-altura.
Salpicavam-na palmeiras exóticas, umas anãs, outras, nem por isso, de leque, ilalas ou afins.
“Bom, eles andavam por aqui, hoje cedo. Vamos lá ver se ainda andam…”
O encontro não é imediato. À medida que vasculhamos o labirinto dourado soprado pelo vento, Test chega a duvidar do sucesso da busca. E a impacientar-se.
Por pouco tempo.
“Ah pronto! Lá estão eles. Estão a vê-los?” Claro que estávamos.
Dois jovens leões tinham surgido do nada. Arfavam. Davam-nos a ideia de estarem incomodados pelo calor que ainda só era o das dez da manhã. “Comeram com o resto da alcateia durante a madrugada. Agora, tiraram um tempo para eles.” acrescenta Test.
De facto, víamos muitos mais herbívoros em redor: impalas, baualas, pivas e outros.
O que interessava aos leões era, no entanto, a sombra mais ventilada das redondezas.
De tal maneira a perseguiram para cá e para lá, apareceram e desapareceram no meio do mato tufoso que pareciam connosco jogar às escondidas.
Foi o nosso primeiro avistamento de leões na Gorongosa.
Vários se seguiriam. Tão fáceis como esse.
Os Incríveis Rios e Ecossistemas
A sua busca, permitiu-nos, em simultâneo, começar a apreciar a beleza singular da Gorongosa.
Forma-a um retalho de ecossistemas disseminado do sopé da serra homónima até ao Planalto de Cheringoma, percorridos por uma série de rios que há séculos irrigam o lago Urema e sustentam a incrível biodiversidade destas paragens:
o Vunduzi que nasce nas vertentes da Serra da Gorongosa, o Nhandugue, o homónimo Urema, o Muaredzi.
E outros menores que, por norma, se somem durante a época seca.
Test conduz-nos em direcção à orla do Urema, o lago. Em Junho, com as chuvas já há uns meses passadas, esta orla é um tando vasto forrado de erva bem verde e suculenta.
Surge pejado de herbívoros, em particular de incontáveis pivas, numa abundância que não tínhamos encontrado em nenhuma outra parte do mundo.
Constatamos pela primeira vez, o quanto a fauna da Gorongosa recuperara dos seus anos mais negros.
À conversa com Vasco Galante, o Director de comunicação do parque, este mostra-nos um vídeo de um filme promocional, de 1961, realizado por Miguel Spiguel e narrado pelo inconfundível Fernando Pessa.
Conta-nos Vasco que, na sua juventude abrantina, aquele mesmo filme, com o imaginário de selva e de safari, o tinha deslumbrado e suscitado o sonho de conhecer o lugar.
De Reserva de Caça a Parque Nacional Colonial Exuberante
Por essa altura, a Gorongosa resplandecia. De 1920 a 1959, fora uma reserva de caça que a Companhia de Moçambique determinou com 1000 km2.
Em 1940, tinha-se tornado famosa.
De forma incauta, as autoridades dotaram-na de um campo turístico na planície aluvial junto ao rio Mussicadzi.
Como muitos receavam, em 1942, inundações danificaram as infraestruturas. Vasco mostra-nos outro filme. Nele vemos como as alcateias lideradas por leões com enormes jubas cor de fuligem se apoderaram dos edifícios.
Como subiam as escadas em caracol para chegarem ao terraço onde repousavam e perscrutavam os seus domínios e passavam os olhos pelos inúmeros espécimes que por lá deambulavam: pivas (3500), gnus (5500), impalas (2000), zebras (3000), búfalos (14500), elefantes (2200), hipopótamos (3500), centenas de elandes, pala-palas e gondongas, todas as espécies inventariadas, mais tarde, pelo ecologista sul-africano Kenneth Tinley.
Em 1951, uma nova administração do governo colonial teve em conta que a Gorongosa era já visitada todos os anos por mais de 6000 turistas.
Ditou a construção de infraestruturas de acomodação, de um restaurante e um bar, tudo no Chitengo.
Quatro anos mais tarde, a Gorongosa foi decretada parque nacional. O Chitengo recebeu novas estradas e outras infraestruturas.
No final dos anos 60, contava também com uma estação de correios, uma estação de combustível, uma clínica para urgências, uma loja de artesanato, duas piscinas e até um clube nocturno.
Os Anos Inofensivos da Guerra da Independência
De 1964 a 1975, a guerra pela independência gerada pela frente de libertação de Moçambique (FRELIMO) quase não afectou o parque.
Em 1972, uma Companhia Portuguesa apoiada por vários membros de uma tal de Organização Provincial de Voluntários estacionou na zona para o proteger.
Em 1976, nova contagem confirmava vários milhares de animais e bem mais que os 200 leões antes verificados, o maior número até à data.
O seu ecossistema provava-se saudável como nunca.
Até que, financiada e armada pela África do Sul e pelo governo “branco” da Rodésia do Sul, entrou em cena a Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO), em oposição à FRELIMO.
1981-1992: a Destruição Traumática do Parque
Chegámos a 1981. A Guerra Civil tomou conta do país e, para a Gorongosa, confirmou-se o pior cenário possível: que a RENAMO não tardaria a usá-la como seu quartel-general.
Nesse mesmo ano, a RENAMO atacou Chitengo. Raptou vários dos seus trabalhadores e dois cientistas estrangeiros.
Em 1983, o parque foi encerrado. De então em diante, a violência e destruição aumentaram. Batalhas terrestres e bombardeamentos aéreos destruíram os edifícios.
Soldados de ambos os lados do conflito abateram centenas de elefantes para venderem o marfim e assim obterem novas armas.
Soldados famintos mataram milhares de distintos herbívoros e os próprios leões – hoje protegidos e monitorados com coleiras de localização – e outros predadores foram dizimados por pura diversão ou morreram de fome por falta das suas presas.
A guerra civil terminou em 1992 mas a fauna do parque continuou a ser vítima da caça furtiva. No final das atrocidades, quase todos os animais de grande porte tinham sido reduzidos em 90% ou mais.
Como é óbvio, em 2017, ainda havia muito a fazer.
As infraestruturas e a fauna recuperaram e de que maneira.
De Novo à Descoberta do PN Gorongosa
Na manhã seguinte, saímos bem cedo, em novo modo de game drive conduzido por Moutinho, um jovem guia nativo. Um nevoeiro denso envolve a Gorongosa.
Pelo caminho, surgem, a espaços, silhuetas fantasmagóricas de animais na estrada de terra exígua que a vegetação tropical se esforçava por invadir: imbabalas, inhacosos e pala-palas – o nome moçambicano das palancas-negras emblemáticas de Angola.
Espreitamos lagos legados pelos meses das chuvas (Janeiro a Abril), repletos de aves:
gansos do Egipto, íbis, marabus, cegonhas de bico-amarelo e de lombro-preto, pelicanos e tantos outros.
Quanto mais do parque percorríamos, mais nos encantávamos com os seus cinquenta e tal ecossistemas:
o tando sem fim, a floresta de acácias-amarelas e as savanas salpicadas de palmeiras exóticas, as margens ervadas e pantanosas do Urema, o próprio lago partilhado por hipopótamos e crocodilos.
A floresta tropical das encostas da serra e tantos outros ambientes.
Em Busca dos Elefantes Esquivos do Parque
Após intensa procura, lá encontrámos um macho elefante solitário, mais tarde, outro. Não é por acaso que a memória destes paquidermes tem a fama que tem.
Na Gorongosa, mal detectam os jipes, os elefantes recordam os traumas passados durante e após a Guerra Civil.
Reagem com imediata suspeição e chegam a perseguir os veículos. Ao contrário dos leões – que voltamos a encontrar com facilidade à beira do Urema – são esquivos.
Mas, com o tempo, tudo sara.
Assim considerou o governo moçambicano que, em 1994, com o apoio do Banco Africano para o Desenvolvimento e a União Internacional para a Conservação da Natureza tratou de recuperar infraestruturas, de abrir picadas e estradas.
De desminar a região, e combater a caça furtiva com apoio de oitenta funcionários recém-contratados, alguns antigos trabalhadores do parque e até ex-combatentes.
Greg Carr: da Mensagem do Embaixador Moçambicano na ONU à Acção
Após o virar do século, Greg Carr, o norte-americano que inventou o Voice-mail e com ele prosperou, entrou na equação.
O multimilionário do Idaho, acolheu uma sugestão do embaixador moçambicano na ONU durante um encontro promovido pela família Kennedy de apoiar a recuperação de Moçambique da guerra.
Pouco depois, visitou a Gorongosa. Ficou rendido e convencido de que o parque poderia funcionar como um forte móbil turístico de desenvolvimento do centro de Moçambique.
Em 2004, Joaquim Chissano validou uma parceria do Ministério Moçambicano do Turismo com a Fundação Carr, que Greg criara em 1999 para uma gestão de trinta anos da Gorongosa. Essa parceria previa um seu investimento de quase 25 milhões de euros.
Em infraestruturas, reintrodução de animais – como aconteceu com os 54 elefantes que comprou ao vizinho sul-africano Kruger Park –, integração das comunidades da Gorongosa e seu benefício dos lucros estimados do projecto.
Vasco Galante: o Braço Direito e o Homem Sempre no Terreno de Greg Carr
Por esta altura, Vasco Galante tornou-se o braço direito de Carr. Farto da vida empresarial que levava em Portugal, decidira já mudar de vida e Moçambique tinha-lhe ficado no coração.
Quando descobriu que Greg Carr procurava um responsável para a equipa da Gorongosa, o delicioso filme de Miguel Spiguel com locução de Fernando Pessa passou-lhe em repetido pela mente.
Vasco tornou-se parte incontornável da família do parque. Como o é Mateus Mutemba, o administrador com quem temos igualmente o privilégio de conviver, recém-galardoado pela National Geographic como um dos seus “Emerging Explorers” de 2017.
O Interesse dos Americanos na Gorongosa vs Política Isolacionista de Donald Trump
Nos dias em que nos acolhe, Chitengo está num frenesim.
Dezenas de norte-americanos do Idaho, quase todos com ligação a Greg Carr ou à sua família, estavam de visita.
A presença destes ianques não impede os sucessivos cercos e incursões dos babuínos à cozinha do restaurante. Nem os passeios nutricionais dos bandos de facocheros um pouco por todo o complexo.
Juntamo-nos a um dos jipes em que seguem. Percebemos que, em grande parte dos casos, eram os primeiros safaris em que participavam e como viviam com entusiasmo e interesse redobrado toda a aprendizagem biológica da Gorongosa:
uma equipa de ornitólogos que capturava, pesava e identificava abutres para posterior estudo;
o assombro pelos seus ecossistemas sempre em mutação e o pôr-do-sol, exuberante, a desfazer-se para os lados da Serra.
Quando o escuro se instala, ajudamo-los e ao guia Moutinho – Monty como preferiam chamar-lhe – de foco luminoso em riste, a encontrar espécies nocturnas: ginetas, civetas e estridentes jagras.
De regresso a Chitengo, passamos por um dos incêndios vistoriados com que as autoridades mantêm a vegetação sob controle durante a época seca.
No churrasco de despedida que se seguiu, um dos representantes do grupo americano agradeceu a oportunidade ao parque.
Aproveitou para alfinetar as políticas de relações internacionais de Donald Trump que cortou no apoio do USAID e de outros programas dos E.U.A. aos países mais necessitados.
“Poupamos nos programas com que ganhamos amigos no mundo, vamos ver-nos a gastar em armas para combater novos inimigos”.
O PN Gorongosa está prestes a receber uma extensão territorial até às margens do rio Zambeze.
Nos dias que correm, tão ou mais crucial para a Gorongosa que a ajuda externa é que Moçambique se mantenha em paz.