O Mar da China continuava a fazer-nos das suas.
Enquanto percorríamos, a pouco e pouco, os 150 km de Hué para sul, fomos passando por terreolas de beira-estrada peculiares. Poderíamos tê-las apreciado melhor mas um nevoeiro denso que trepara sobre a costa, vindo de leste, envolveu-as quase toda a manhã.
Assim que chegámos a Hoi An, a meteorologia mudou. O nevoeiro dissipou-se sob o poder do sol tropical e concedeu fogachos de luz suave que aumentaram de intensidade e de duração até que aniquilaram a bruma e deixaram a cidade a descoberto, com o calor tórrido bem mais habitual daquelas paragens a deslavar as velhas fachadas coloniais.
O núcleo histórico de Hoi An ficava-se por uns meros quilómetros disseminados para norte do estuário do rio. Conscientes da navegabilidade fácil da povoação, alugamos duas pasteleiras tal e qual as usadas pelos residentes.
Estes, não tardaram a refugiar-se em massa sob seus chapéus non la. Há muito que não víamos aqueles cones amarelados e graciosos em tão grande concentração, nem a um Vietname tão agradável ao olho e, ao mesmo tempo, genuíno e hiperactivo, atrevemo-nos a concluir que com um ritmo atarefado semelhante ao que por aqueles lados seduziu o navegador, aventureiro, mercador e corsário português, António de Faria.
A determinada altura da sua vida, Faria admitiu a seu serviço, Fernão Mendes Pinto. Tinham ambos uma forte ligação a Montemor-o-Velho e o primeiro comandou o novo súbdito em várias venturas e desventuras, roubos e chacinas que Mendes Pinto veio a narrar em “Peregrinação”. Faria tem, aliás, um papel preponderante na epopeia.
Foi o primeiro europeu a visitar e a estabelecer contacto regular com estas coordenadas asiáticas.
Depois de desembarcar em Danang (um pouco mais a norte), deparou-se com a influência comercial daquela zona e procurou estabelecer um entreposto em Faifo – assim era conhecida Hoi An, entre os mercadores europeus – no centro de uma área a que os portugueses não tardaram a apelidar de Cauchichina, Cauchi provavelmente ajustada de Giao Chi, o seu nome original. Daí em diante, o Ocidente usou a adaptação de Cochinchina.
Quanto ao entreposto, só seria fundado no virar para o século XVI, quase cinquenta anos após a morte de Faria, por um soberano nativo da dinastia Nguyen. Faifo foi o primeiro lugar do Vietname exposto ao Cristianismo. Tornou-se uma cidade de tal maneira influente que os jesuítas portugueses lá instalaram uma das suas duas residências asiáticas.
Com o propósito superior de evangelizar, Gaspar d’Amaral e Duarte da Costa realizaram um trabalho imenso de transcrição de escritos religiosos codificados numa latinização da língua vietnamita.
Entre 1624 e 1644, Alexandre de Rhodes, um missionário francês, aperfeiçoou estes esforços informais, publicou o Dictionarium Annamiticum Lusitanum et Latinum e gerou a conversão quoc ngu que perdura e que nos permite ler, mesmo sem perceber, todas as palavras vietnamitas.
Como é comum encontrar ainda no Vietname, ao percorrermos as ruas e ruelas deparamo-nos com faixas e estandartes com grafismo soviético, verdadeiros testemunhos propagandistas do triunfo Vietcong. Já a arquitectura, nada tem que ver.
Subsistem, nas ruas, grandes sequências de edifícios erguidos no início do século XIX, ou mais antigos. No total, são mais de 800 estruturas com séria importância histórica e que, ainda usadas, dão mais vida à cidade. São casas e lojas, poços, pequenos templos e capelas, pagodes, edifícios comunais, assembleias e salões de congregações chinesas, túmulos e pontes.
Passamos por dois velhotes que repousam à porta de um dos templos identificado como Chua Ong. Se a um deles chega estar sentado, o outro mantém-se refastelado, ambos de tal maneira descontraídos que parecem fazer parte da pintura garrida e mitológica em fundo.
Nas imediações, damos com a ponte japonesa coberta, por ventura o monumento mais famoso de Hoi An que atravessamos, no escuro, e na companhia de um ou outro ciclista e de miúdos em uniformes escolares.
A primeira ponte naquele lugar foi erguida pela comunidade japonesa de Hoi An, em 1593, como ligação ao bairro chinês do outro lado do braço de rio estreito. Os construtores criaram uma estrutura sólida que resistisse a sismos e dotaram-na de tecto para assegurar protecção tanto da chuva como do sol.
Ao longo do tempo, a sua ornamentação permaneceu relativamente fiel à nipónica original. O nome que surge à porta desse templo – Chua Cau – foi inscrito para substituir o inicial de Ponte Japonesa. Mas “Ponte para Transeuntes Vindos de Longe” não fez grande sucesso.
E, no entanto, é o que ali somos e o que continuamos a ser.
Mesmo habituados à presença de forasteiros, os nativos olham-nos de alto abaixo, intrigados sobre se a metade feminina da dupla não seria sua conterrânea.
Não precisamos de andar muito até darmos com o caudal principal do Thu Bon e chegarmos à entrada de uma outra ponte, a An Hoi, esta descoberta. Ali, a atenção da turba de peões, ciclistas, motoristas e trabalhadores embarcados vai para o fundo do rio onde uma barqueira tentava recuperar uma qualquer mercadoria ou posse deixada cair por alguém que atravessava.
Não há nada que possamos fazer para ajudar. Continuamos a admirar a azáfama de navegação e de carga e descarga sobre o caudal esverdeado.
Esvoaçam ao vento, dezenas de bandeirolas vietnamitas projectadas de pequenas barcaças de madeira, com a sua estrela amarela de cinco pontas representante dos cinco grupos de trabalhadores na base do comunismo e envolta no vermelho do derramamento de sangue e da luta revolucionária.
Do século XVI ao XIX, as bandeiras ondulavam bem mais alto e com maior diversidade. Nesse período, as grandes embarcações portuguesas e de tantos outros países puderam atracar mesmo à entrada da povoação e carregar e descarregar produtos.
No seu regresso, as embarcações ocidentais levavam seda, papel, chá, marfim, cera, melaço, madrepérola, laca, especiarias, cerâmica asiática, enxofre e chumbo.
Tendo em conta a mudança de era, hoje, ainda se pode comprar um pouco de tudo na cidade mas não deixamos de constatar a enorme quantidade de alfaiates que expõem a sua roupa em montras sem vidros viradas para as ruas da cidade.
E que um deles apela num cartaz escrito à mão, em inglês: “Parem de olhar. Encontraram o artesão mais honesto, amigável, abnegado e preciso de Hoi an.” Nem sempre Hoi An se mostrou tão prestável para com os forasteiros.
Entre 1770 e 1780, foi palco de uma rebelião feroz liderada por dois irmãos de nome Tay Son, à frente de milhares de camponeses que se opunham ao comércio com nações estrangeiras.
O conflito quase destruiu a cidade por completo mas Faifo foi reconstruída e voltou a servir como um porto determinante para o comércio entre a Ásia e o Ocidente.
Até que, no fim do século XIX, o rio Thu Bon que liga Hoi An ao Mar da China assoreou e se tornou demasiado raso para acolher embarcações de grande porte. Prendada com este revês, a rival do norte Danang não tardou a tomar-lhe o lugar.
A Hoi An, os colonos franceses reservaram uma função de centro administrativo. Ao contrário de tantas outras cidades vietnamitas, Hoi An foi poupada à pior destruição dos bombardeamentos norte-americanos durante o conflito que opôs o norte comunista ao sul, de 1955 a 1975.
Por norma, a gratidão dos visitantes aumenta à medida que a pequena cidade mais os encanta.