O desembarque no aeroporto Fua’amotu deixa antever um destino, no mínimo, peculiar.
A varanda cénica do edifício está à pinha com famílias chorosas que acenam e gritam aos seus regressados. Os homens que descem com peso e pompa a escadaria do avião vestem tupenus tradicionais – longas saias de sarja – que combinam com camisas ou t-shirts coloridas, invariavelmente XL, XXL ou XXXL. É raro o tonganês adulto com menos de 90 quilos.
As mulheres, essas, gerem, de forma criativa, a combinação kofu-tupenu. Por vezes, recorrem a cores e cortes inovadores mas respeitadores da tradição.
Nota-se nos presentes a felicidade concentrada própria dos retornos com tempo contado.
No interior do edifício, o stand do turismo parece ter sido abandonado há décadas. Não encontramos bandas a tocar melodias de boas-vindas nem anfitriões de ocasião a oferecer colares cheirosos de flores ou a saudação polinésia nacional malo e lelei.
Noutros países do terceiro mundo, os turistas têm que aturar autênticos cercos e quase raptos de taxistas, comissionistas de guest-houses etc etc. À chegada a Tonga, são literalmente ignorados por não passarem de forasteiros, personagens à margem da corrente de emoções gerada pelos reencontros.
Depois da Educação, a Diáspora de Tonga para o Mundo
Tongatapu – a ilha sagrada do sul – alberga cerca de 71.000 habitantes. São 70% da população total do arquipélago de Tonga. Aqui, como nas restantes ilhas, é rara a família que não se sacrificou à diáspora. Esse é um dos preços que Tonga continua a pagar pela sua soberania e consequente preservação étnica e cultural.
Tantos como os residentes no arquipélago, os emigrantes dispersaram-se por subúrbios da Austrália, Nova Zelândia e dos Estados Unidos. Lá formam colónias pesadas e saudosas.
A Capital Diminuta e Sui Generis de Nuku’alofa
A capital de Tonga, Nuku’alofa, depressa desilude todos os que chegam à procura de mais um paraíso tropical.
Incaracterística em termos urbanísticos e arquitectónicos – apesar de alguns edifícios notórios, como o Palácio Real – a cidade espraia-se entre a vastidão do Pacífico do Sul e os mangais da lagoa de Fanga’ Uta.
Algo poeirenta e gasta, Nuku’alofa (Residência do Amor) em tonganês – tem nas suas gentes genuínas e o principal cartão de visita.
Entre os números que classificam Tonga, destacam-se os 98% da taxa nacional de literacia. A acção educacional de Tonga assenta numa sólida base religiosa. Está bem patente na quantidade de uniformes com cortes e cores inequívocos que distinguem as entidades formadoras, quase todas tradicionalistas.
Nos pátios escolares, nas paragens de autocarro, nas lojas à beira da estrada, onde quer que calhe, os agrupamentos espontâneos de trajes repetem-se e saltam à vista. São de tal maneira considerados que a sua produção é, para as raparigas, uma prática académica obrigatória. Como quase tudo, em Tonga, comunal.
A importância da aprendizagem vem de há muito. O Reino nunca foi governado por um país ocidental.
E no entanto, quando os primeiros missionários chegaram, no século XVIII, a desconfiança deu lugar a um respeito venerador que moldou a cultura vigente e lhe impôs o Cristianismo em diferentes expressões.
A maioria dos tonganeses (cerca de 38%) são metodistas seguidores de Wesley.
Entre as várias outras religiões adoptadas pela população destacam-se a Mórmon, o Catolicismo e a Igreja Livre de Tonga.
Ao fim da tarde e aos fins de semana, os tonganeses reúnem-se nas suas igrejas.
Participam em longos e intensos ensaios musicais e cerimoniais que aprofundam os laços entre os crentes e uma fé incondicional na graça divina.
O Desgoverno Real de Tonga
Qualquer visitante atento e interessado depressa percebe que, malgrado a reverência histórica pela monarquia, acima deles, os tonganeses não têm podido confiar em mais ninguém.
De motoreta ou de carro, dá-se a volta a Tongatapu em menos de duas horas e isto apesar de os rent-a-car locais entregarem os veículos com os depósitos quase vazios e de a velocidade máxima permitida ser 40 km/h.
Entre coqueirais densos e campos cultivados, a berma das estradas revela povoações pacatas que agrupam pequenas casas rurais, hortas e jardins patrulhados por cães e gatos, por galinhas e porcos que contribuem para a auto-subsistência quase sempre problemática dos lares.
A economia nacional conta com uma vasta componente não monetária. Depende das remessas de dólares garantidas pelos emigrantes.
O sector monetário – a começar pelas telecomunicações e satélites, ambas vitais para um país espalhado pelo oceano – está nas mãos da família real e outros nobres.
E, se em tempos, os reis de Tonga dominaram o Pacífico em redor se tornaram famosos pela ambição e coragem, mais recentemente, Tāufaʻāhau e o seu governo (mas não só) pouco mais fizeram que sujar a imagem da monarquia.
O Descalabro Real da Monarquia de Tonga
Espantaram primeiro os vizinhos australianos e neozelandeses – depois todo o Pacífico – com uma série de investimentos e esquemas imaturos que comprometeram futuras ajudas externas ao país.
Entre as medidas polémicas – todas tomadas com o objectivo de obter rendimento fácil – contaram-se os projectos de tornar Tonga numa lixeira nuclear; de vender passaportes tonganeses (e respectiva nacionalidade) a estrangeiros, alguns com sérios problemas com as justiças de outros países…
…permitir o registo de embarcações sob a bandeira de Tonga, muitos dos quais se viria a descobrir envolvidos em operações ilegais incluindo o fornecimento da Al Qaeda;
… o frete, por um ano, de um Boeing 757 depois deixado inoperacional no aeroporto de Auckland, que viria a causar a falência da Royal Tongan Airlines;
a reclamação de um slot de satélites geo-orbitais para lucro exclusivo da princesa; a construção de um hotel de aeroporto e casino com um criminoso procurado pela Interpol; a aprovação de uma fábrica de cigarros para exportação para a China, apesar da reprovação das autoridades médicas e contra décadas de promoção da saúde pública.
A encerrar esta prodigiosa lista, há ainda que assinalar a confiança quase cega em diversos especuladores “milagrosos” que prometeram mundos e fundos, com destaque para Jesse Bogdanov, que se auto-proclamou publicamente o bobo da corte de Tonga e foi responsável por parte dos 26 milhões de dólares americanos entretanto perdidos pelo monarca de Tonga.
Estes procedimentos erróneos e vários outros que envolveram a liberdade de imprensa e de expressão reforçaram a acção do movimento pró-democracia de Tonga e a contestação da nação. A frustração só aumentou quando Siaosi Tupou V chegou ao poder e adiou, de imediato, o cumprimento de promessas de abertura política feitas pelo pai.
Este adiamento viria, aliás, a ter graves consequências.
A Lei da Subsistência Tonganesa
Durante um passeio ao entardecer pelos famosos Mapu’a Vaca blow-holes – buracos nas rochas que projectam enormes jactos de água quando atingidos pelas ondas – e ao longo da Piha Passage, voltamos a desvendar a dependência da natureza em que vive a maior parte dos tonganeses.
Assim que a maré vaza, um pelotão de nativos munidos de facas e catanas passa o recife a pente. Recolhem todos os peixes e moluscos que se deixaram aprisionar pelo recuar da água.
Logo ao lado, pescadores regressam da faina em barcos artesanais em que arriscam as vidas para assegurar alimento para a família.
Salvo raras excepções, a concentração da riqueza nacional de Tonga na família real e o agravar do desequilíbrio social retiraram aos tonganeses mais humildes qualquer possibilidade empresarial. Até os mais insignificantes negócios, surgem nas mãos de estrangeiros.
Distribuídas por Tongatapu como pequenas prisões coloridas, as mercearias são todas chinesas. Sucedem-se à beira das estradas, às vezes separadas por escassas dezenas de metros.
A única proprietária que cede a explicar-nos a razão de ser das grades, fá-lo de forma receosa.
A determinada altura arrepende-se: “os tonganeses não nos querem aqui, odeiam-nos e nós também não queremos nada com eles …” … em 2006 assaltaram todas as nossas lojas … levaram tudo … “
Foi preciso encontrarmos Bob, um expatriado holandês de idade avançada para percebermos um acto que parecia ir contra a aparente pachorra inesgotável dos locais. “Isso deveu-se a mais uma das espertezas da realeza” Explica-nos Bob.
“Depois de terem permitido a entrada dos chineses ao abrigo da venda de passaportes, o rei não resistiu aos subornos e permitiu a entrada de contentores vindos da China por valores simbólicos. Além disso, a promessa de abertura à democracia foi mais uma vez adiada ad eternum … As pessoas daqui, respeitam a monarquia. Infelizmente, a monarquia não as tem respeitado de volta! …“
Os tonganeses entregam-se de alma e coração à sua fé e paixões. São formas de esquecerem as traições de que são vítimas. E de enriquecerem espiritualmente as suas vidas. Nalguns casos, não só.
Soluções Alternativas para Tonga: o Râguebi e o Turismo
O râguebi foi introduzido na ilha pelos colonos, missionários e comerciantes de origem britânica. O brilhantismo do desporto nos vizinhos Austrália e Nova Zelândia, depressa contagiou as ilhas mais próximas do Pacífico. Tonga não foi excepção.
Como a própria sociedade, o râguebi local organizou-se em redor das pequena povoações.
Em, Tongatapu, a partir das cinco da tarde, os rapazes e homens mais jovens confluem para os campos pitorescos e mal amanhados das suas aldeias.
São irregulares. Não têm quaisquer marcações. A erva chega, por vezes, aos joelhos dos praticantes. Estes, apesar de conscientes das melhores condições no ocidente, não se queixam.
Encarregam-se eles próprios de cortar os relvados e de outras tarefas acessórias.
Instigada por tanta dedicação, Tonga continua a ter uma das selecções de râguebi mais aguerridas e respeitadas do mundo.
Por detrás da entrega, escondem-se, no entanto, sonhos de sucesso internacional, já tornados realidade por jogadores poderosos e de renome de que se revelaram expoentes o All Black Jonah Lomu e o Wallabie Toutai Kefu.
Já o turismo é a eterna solução adiada para todos os males do Reino.
Em termos de potencial, as maiores probabilidades surgem do lado de Vava’u, um grupo de ilhéus do norte com as características certas para aliciar investidores, acolher resorts, atrair turistas do sol e da praia em voos charters e facturar de imediato.
A Tongatapu parece estar reservado um papel de entreposto logístico e cultural. Até isso está por preparar.
Enquanto as condições políticas e económicas continuam por reunir, a capital Nuku’ alofa ensaia esse seu papel com algumas pequenas ilhas idílicas ao largo: Pangaimotu, Fa e Atafa e em cada uma das raras ocasiões em que os cruzeiros internacionais atracam no porto.
Até lá, caso a realeza não adira a novos contos do vigário, o mercado de Talamahu manter-se-á como a maior expressão comercial da capital.
As principais fontes de receitas de Tonga continuarão a provir das remessas dos emigrantes, da exportação de cocos, baunilha, bananas e café e de raízes alimentares como a mandioca o taro e a cassava.
Para todos os efeitos, os tonganeses já perderam uma vez a paciência.
Aguardam, ansiosos, pela representação parlamentar tantas vezes esquecida conscientes de que, uma vez conquistada, a democracia e o progresso dificilmente lhes irão escapar.