Shirakawa-Go é, desde há muito, uma região eleita.
Começámos a descobri-la num documentário francês. Um comboio vencia o declive do percurso verdejante e solarengo da montanha. Logo, entrava num túnel, a meia-encosta.
Durante algum tempo, a imagem mantinha-se negra. A música que acompanhava o som do comboio parecia querer anunciar algo mas o narrador antecipa-se: “… et voilá … la vallée magique de Shirakawa-Go…”.
Saída do escuro, no outro lado da montanha, a composição revelava, então, o cenário encantador do vale do rio Sho-gawa, com as suas casitas longínquas em forma de A, semi-afundadas na neve.
O documentário manipulava a realidade. Apesar do crescimento inexorável das vias de comunicação japonesas, nenhum comboio dá ou alguma vez deu directamente para o vale mostrado a seguir ao túnel.
Ogimashi, Shirakawa-Go: um Refúgio Castigado pela Neve
Foi a inacessibilidade desta zona remota que atraiu os seus primeiros colonos, membros deslocados do clã Taira – praticamente aniquilado, em 1185, pelo clã rival Minamoto – que apostaram tudo em evitar novos confrontos mas tiveram que se defender do clima austero da região.
Isto, quase meio milénio antes da unificação do Japão conseguida pelo grande xógum do Japão, Ieyasu Tokugawa.
Shirakawa-Go continua a registar uma das maiores quedas anuais de neve do mundo. Com frequência, entre Dezembro e Abril, a intensidade e duração das tempestades isola-a do exterior do vale.
O clima impiedoso, a acumulação excessiva de neve que terá provocado o desabamento de várias das primeiras casas erguidas foram a inspiração forçada do estilo arquitectónico gassho-zukuri (mãos em oração).
As Casas Gassho-Zukuri que se Adaptaram aos Nevões
A construção gassho-zukuri foi aperfeiçoada com o passar dos séculos. Suporta, sobre estruturas fortes feitas de troncos de cedros, enormes telhados em V invertido e três ou quatro andares desenhados para alojar famílias extensas (às vezes de quase 30 pessoas).
Como é visível no maior de todos os gasshos de Shirakawa-Go, Wadanake – agora declarado Tesouro Nacional – as casas reservam ainda espaço para diversos tipos de armazenamentos e indústrias: sericultura no topo, produção de nitrato, (essencial para a produção de pólvora) abaixo do primeiro piso.
Fazemos aqui um aparte para referir que a pólvora alterou uma balança de poder que era secular no Japão e se tornou vital para a sobrevivência dos xóguns (senhores feudais).
Começou a ser produzida em grande quantidade em Shirakawa-Go e restante província de Hida, pouco depois de as armas de fogo terem sido introduzidas no Japão, pelos mercadores portugueses, a partir de 1543.
Passado meio milénio, a história do país do sol nascente deu voltas e mais voltas. A mais importante de todas – também ela militar – acabou em tragédia. Melhor do que proclamou o ex-primeiro ministro Yoshida Shigeru, o Japão perdeu a 2ª Guerra Mundial mas ganhou a paz.
Por extensão, uma combinação entre prosperidade económica e equilíbrio social que é única à face da Terra.
A Invasão Nipónica e Fotográfica da Pitoresca Ogimashi
Não espanta, portanto, que, como os vemos, os senhores japoneses continuem bem armados.Na multidão que, aos fins de semana, flui entre os cento e dez gasshõs de Ogimachi, cruzam-se inúmeros de chefes de família abastados (muitos octogenários e nonagenários), munidos de modelos SLR Canon ou Nikon topo de gama.
Isto, apesar de os seus conhecimentos de fotografia pouco passarem da função On/Off.
Até nas mais paragens mais remotas deste bastião do consumismo se percebe que o dinheiro é abundante. Mesmo assim, a forma algo desalmada com que o Japão e os japoneses se habituaram a gerá-lo causou e continua a causar sérios revezes ambientalistas e paisagísticos.
Nem Shirakawa-Go nem Hida, em geral, parecem estar a salvo.
Shirakawa já era um importante destino turístico antes de a UNESCO ter aceite Ogimachi e Ainokura na lista do Património Mundial. A partir da classificação, no entanto, a fama da região e o número de visitantes aumentaram de forma exponencial.
Contribuiu para o processo a conhecida predisposição social japonesa para os comportamentos de grupo.
À medida que os autocarros de excursão descarregavam mais e mais pessoas, aliciados pelo lucro, muitos dos proprietários de gasshos transformaram-nos em lojas de recordações. E, aos terrenos em redor, em pequenos parques de estacionamento pagos.
Estas e outras atrocidades culturais fizeram com que a UNESCO ameaçasse com a desclassificação que, à data da criação deste texto, estava em julgamento.
O Encanto Outonal Alternativo de Ogimashi, em Dias Menos Populares
Apesar do revês, a região de Shirakawa-Go e, sobretudo, Ogimachi têm o seu indiscutível encanto. Esse encanto só aumenta se forem visitados de Segunda a Sexta enquanto os japoneses trabalham.
Se o quiser confirmar, experimente observar Ogimachi do alto do ponto de observação do casario de Ogimashi, o Shiroyama Tenbodai.
De preferência, bem cedo ou ao fim do dia quando as excursões estão ausentes e o cenário bucólico dos campos cultivados e da floresta em redor – possivelmente envolto numa névoa suavizante – exibe todo o seu esplendor.
Durante o Outono, parte da área entre Gokayama e Tokayama, destaca-se pelo exotismo vermelho-amarelado das suas montanhas arborizadas, exuberantes quando os raios de sol nelas incidem, ou empasteladas quando está enevoado ou chove.
A paisagem só não é divinal porque foi vitima da mesma falta de sensibilidade que prejudicou Shirakawa Go, desta feita, a um nível governamental.
A Modernidade Estrutural que Afecta a Beleza do Japão Rural
Como explica Alex Kerr no seu livro “Lost Japan”, a determinação nacional de fazer o país “funcionar” e facturar, em conjunto com a grande densidade populacional – são 130 milhões de habitantes num país de montanhas – tem causado a sua destruição.
Ao volante, ao longo da estrada 158 e entre incontáveis e intermináveis túneis, essa mácula surge-nos sob a forma de uma floresta de postes de alta tensão e cabos, sopés de encostas e margens de rios cimentadas, sequências surreais de barragens, plantações introduzidas de cedros etc. etc.
Com o tempo, habituamo-nos a apreciar os cenários com uma espécie de filtro visual. No templo Hachiman Jinja, para cúmulo do inesperado, convivemos com os Kigurumis (personagens vivas) da saga vídeo-animé Higurashi No Naku Koro Ni
Quando partimos de volta a Takayama, os gasshos soltam fumo branco com cheiro a lenha.
A noite cai de vez sobre o vale e os telhados em A de Shirakawa-go.