Tínhamos aterrado pela primeira vez em Lanzarote, dois dias antes. Não seria a última.
Quando nos aproximamos de Uga, a visão inesperada de uma colónia de dromedários destacada da rotunda que antecede a povoação surpreende-nos.
Percorremos toda a orla sul do casario branco da aldeia. Após o que nos vemos entre o de Uga e o da vizinha Yaiza.
Uma vez mais, ficamos à porta do pueblo. O rumo certo ditou-nos uma mudança drástica de direcção.
Daí, em diante, com as montanhas amareladas pelas costas, apontados ao norte de Lanzarote, entramos num vasto domínio de terra áspera e negra.
A recta por que nele nos embrenhamos ondula e sacode-nos consoante os caprichos do molde lávico em que assenta.
Uns poucos quilómetros depois, a crueza do panorama dantesco apoderava-se de tal maneira das nossas mentes que nelas já não cabia o espanto recente causado pelos camelos de pedra.
A História Secular dos Dromedários, os Tractores de Lanzarote
Os dromedários chegaram às Canárias com as primeiras incursões dos conquistadores e colonos do arquipélago ao continente africano, durante o século XV.
Confrontados com a falta de outros animais de tracção, os colonos importaram estes camelídeos, sobretudo do litoral oeste da velha Berbéria, hoje marroquino.
Diz-se que, com frequência, os animais eram rebocados em vez de trazidos a bordo. As embarcações em que era suposto serem transportados revelavam-se demasiado instáveis para suportarem o peso de dezenas de espécimes em constante movimento.
Tivessem sido camelos, dromedários ou ambos, os espécimes vivos que, às tantas, vislumbramos estacionados à esquerda da estrada desempenham, hoje, uma nova função: carregar os visitantes do PN Timanfaya sobre as suas bossas, numa curta volta entre as montanhas e crateras de fogo que dotam os mais de 50km2 do sudoeste da ilha.
Encostamos junto ao echadero de los camellos. Asseguradas algumas fotos, ficamos à conversa com Fatah, o também condutor dos animais, dromedários diga-se de passagem. “Olhem, comecei por vir para cá trabalhar uns tempos e acabei por me mudar de vez de Marrocos.
O trabalho aqui era garantido. Mais tarde, pude trazer a família. Agora temos uma vida privilegiada.” conta-nos enquanto ajusta as correntes descaídas de um dromedário sonolento.
Rumo ao Âmago Vulcânico do PN Timanfaya
Logo, retomamos o trajecto para a entrada do PN Timanfaya. Durante uns quilómetros adicionais, dunas e vertentes inclinadas de montes obstruem-nos a vista à esquerda da via.
Do outro lado, por contraste, a imensidão corrosiva de lava fazia resplandecer o avermelhado da primeira caldeira que distinguimos naquela enxurrada vulcânica, a Caldera del Coranzoncillo.
Prosseguimos, até darmos de caras com El Diablo, a estátua-símbolo que César Manrique, o artista omnipresente em Lanzarote, criou como identidade do parque.
Nessa viagem inaugural a Lanzarote, submetemo-nos ao programa seguido pela grande maioria dos visitantes do PN Timanfaya.
Avançamos até ao Islote de Hilário, já antes conhecido por Tinecheide (montanha do Inferno), o termo usado pelos nativos majos de Lanzarote, os mesmos autores de timanfaya (montanhas de fogo).
O Refúgio e Base Operacional do Islote de Hilário
Ditou a localização do Islote de Hilário que servisse de centro operacional do parque nacional, de seu parque de estacionamento, restaurante, loja de recordações e ponto de partida para as voltas regulares de autocarro por entre as ditas montanhas de fogo.
Pois, apesar de maravilhados com a exuberância geológica de Timanfaya, terminamos a volta como todo e qualquer fotógrafo se sentiria: frustrados.
Mesmo se a gentileza e compreensão do condutor nos permitiu umas fotos extra-programa, sempre que nos abria a porta do autocarro em lugares especiais.
Um ano e pouco depois, regressamos a Lanzarote e ao PN Timanfaya. Desta feita, preparados.
Conseguimos pré-autorizar um trajecto de carro monitorizado por um fiscal do parque. Conduz-nos Eva Acero, uma guia galega radicada em Lanzarote.
Com Eva ao volante, pudemos deter o carro onde desejámos e fotografámos de janelas abertas, num itinerário mais abrangente que o do autocarro e que contemplou uma paragem no Miradouro da Montaña Rajada (350m).
Montaña Rajada e o Panorama Extraterrestre do Mar de Lavas.
Ali, mesmo alertados pela nossa aparição, dois corvos recusam-se a descolar do pouso de lava de que nos vigiam. Chegamos ao muro de pedra que separa o alto do miradouro da falésia rochosa logo abaixo e de uma das extensões vulcânicas quase inverosímeis do PN Timanfaya.
Tal como os corvos se tinham habituado a contemplar, desvendamos a planície rugosa do Mar de Lavas, esventrada por um sulco sinuoso aberto pelo fluir da lava em busca do Atlântico.
Alinhadas com este sulco, destacavam-se as crateras da Montaña Encantada, a de Pedro Perico e de Halcones. Mais para sul, víamos ainda a Maria Hernández.
Este conjunto de crateras colapsadas sobre si formava um panorama que o fundo oceânico azulava de dramatismo. De tal maneira extraterrestre que nos ajudou a compreender o porquê de a NASA ter usado imagens de Timanfaya durante os treinos dos astronautas da Apollo 17, a 6ª e derradeira missão tripulada a alunar, em Dezembro de 1972.
Subjugamo-nos à autoridade do parque. Regressamos ao sopé da Montaña Rajada e ao trecho do Camiño Pista Rural Ruta de Los Volcanes habitualmente percorrido pelo autocarro.
Em Circuito Entre as Montanhas de Fogo
Serpenteamos a sul do conjunto das Montañas del Fuego, a certo ponto sobranceiro, com vista para a estrada que nos conduziu à entrada do parque e para a Caldera del Corazoncillo, agora, com uma boa metade do seu interior exposto.
Devagar, devagarinho apreciamos as formas gentis e os tons requentados das escórias e da bagacina alaranjada do El Valle de la Tranquilidad.
Detêm-nos hornitos, pequenos fornos de que se destaca o Manto negro e algo fantasmagórico de La Virgen. E as entradas misteriosas para distintos túneis de lava, tratados em Lanzarote por jameos.
Prestamos ainda atenção a uma outra das centenas de plantas que encontraram forma de se desenvolver no ecossistema de lava, que ajudaram a justificar a criação do parque e contribuem para o estatuto UNESCO de Lanzarote de Reserva da Biosfera.
Por fim, bastante tempo após o previsto, já sobre a hora de almoço, o fiscal do parque consegue que regressemos à base logística do Islote de Hilário.
O Refúgio Gastronómico do Restaurante “El Diablo”
Ficamos entregues a Eva Acero e ao acolhimento do restaurante “El Diablo”, o coração gastronómico do PN Timanfaya, também ele concebido por César Manrique e pelo seu colaborador de longa data Jesús Soto.
Reparamos em vários pormenores da arquitectura e da decoração do estabelecimento, característicos da criatividade de Manrique, filho de Lanzarote para quem o respeito ambiental e pela Natureza única da ilha sempre conduziu o seu trabalho: o edifício que integrava o restaurante que, ao longe, mal se distinguia da plataforma de rocha em que assenta.
Os candeeiros em forma de frigideira. A grelha instalada sobre uma chaminé vulcânica que traz à superfície o calor geotérmico libertado pelo magma e, assim, permite cozinhar as especialidades da casa.
E, claro está, o entorno de janela panorâmica de 360º que, nos permitia e aos restantes convivas devorarem os cenários enquanto saboreavam a refeição.
Comemos especialidades canárias. Seguidas de sobremesas fiéis ao fio vulcânico que nos orientava, uma delas um “volcán” de chocolate com recheio de Peta Zetas que nos explode na boca.
O Calor Geotérmico Logo Abaixo do Islote del Hilário
De regresso ao exterior, um ano e tal depois, voltamos a assistir ao mini-espectáculo ali repetido até à exaustão por funcionários do parque.
Um geiser provocado após despejarem água por uma abertura mesmo à frente da janela do restaurante. E a entrada em combustão de um arbusto colocado num buraco murado, a uns poucos metros do “géiser”.
O fogo quase instantâneo só espanta os espectadores até que são informados das temperaturas registadas um pouco abaixo, 610ºC a meros 13 metros de profundidade.
Numa outra medição, a temperatura incrível de 277ºC a apenas 10cm abaixo do solo.
Esta fornalha subterrânea impressiona, até porque subsiste em períodos de inactividade vulcânica. Mas, se comparada com o longo inferno na génese dos cenários do PN Timanfaya, não passa de um nada térmico.
1730 – 36 e o Cataclismo Vulcânico que Gerou o Domínio Extraterrestre
Recuemos a Setembro de 1730. Lanzarote contava com três séculos de colonização europeia e uma população distribuída por diversas povoações.
Nessa altura, a resistência dos indígenas majos tinha sido há muito reprimida e a vida autónoma dos nativos quase erradicada. A principal preocupação dos colonos mantinha-se os ataques dos piratas berberes e dos corsários ao serviço da coroa britânica, caso de Sir Walter Raleigh.
Assim foi até que, como narrou o padre Lorenzo Curbelo, “no dia 1 de Setembro de 1730, entre as nove e as dez da noite, a terra se abriu em Timanfaya, a duas léguas de Yaiza…e uma enorme montanha se elevou do seio da terra.”
Daí em diante e por seis anos, as erupções sucederam-se em distintas crateras do sudoeste da ilha, no que se confirmou um cataclismo vulcânico ímpar.
Calcula-se que cerca de dois mil milhões de metros cúbicos de lava e cinza tenham sido lançadas sobre o que antes eram terra arável e povoações, parte de torrentes que entraram pelo Atlântico e fizeram que Lanzarote se estendesse para sul e sudoeste.
Não se registaram vítimas humanas mas boa parte do gado pereceu vítima dos gases tóxicos. Com o tempo, quase metade dos habitantes da ilha viram-se forçados a partir. Lanzarote tornou-se mais inóspita do que já era.
A ilha recuperou. Já não as povoações soterradas, pelo menos o seu número de habitantes, nas últimas décadas, graças à intensificação do turismo em função da sua paisagem vulcânica e humanizada recém-formada.
Ao fim do dia, de saída do parque, no regresso ao alojamento na costa leste, passamos por alguns dos mais recentes moradores.
Passada a entrada de Yaiza, antes de chegarmos à rotunda de los Camellos,
Fatah conduzia uma longa caravana dos seus dromedários, a caminho da granja em que passavam as noites enegrecidas pelo solo de lava de Lanzarote.