O Caribe Revolto de Las Terrenas
Estamos a chegar ao fim de Setembro.
A época oficial de furações das Caraíbas vai a meio. Temos tido sorte. As tempestades que por esta altura se formavam para leste do Atlântico flectiam para norte.
Dias mais tarde, uma delas, a Lorenzo, fortalecida até furacão de categoria 5, desafiou qualquer lógica do clima. Avançou Atlântico do Norte acima e fustigou os Açores. Ainda teve energia para atormentar o litoral da Irlanda e da Grã-Bretanha.
Também a beira-mar caribenha de Las Terrenas que nos acolhia mostrava uma face distinta da solarenga turquesa-esmeralda que atraía veraneantes de outras partes do mundo em catadupa.
Agitado por uma tal de tempestade tropical Karen que curvou abruptamente para norte ao passar para lá das pequenas Antilhas, o mar escurecido e revolto estendia-se em vagas vigorosas e espumosas até à base dos coqueiros e ao limiar do areal já de si encurtado.
Para frustração adicional dos banhistas, por esses dias, os nadadores-salvadores dos hotéis ao largo erguiam a bandeira vermelha e seguiam instruções para lhes proibirem a entrada na água, mesmo que fosse para meros mergulhos refrescantes. Sobravam as piscinas de ladrilhos luzentes e águas doces. Não era a mesma coisa. Nem ao que ali tinham ido.
Decidimos caminhar para fora do seu raio de acção. Umas centenas de metros para leste, a entrada no mar era menos profunda e problemática. Percebemos que não existiam correntes, apenas o movimento normal e controlável das vagas, tão habitual nas nossas praias portuguesas. Divertimo-nos a enfrentá-las e delas apanharmos boleias, até vermos a copa dos coqueiros bem acima das cabeças.
Retomamos a caminhada. Ao nos aproximarmos de uma tal de Punta Bonita da Península de Samaná, apercebemo-nos que parte dos empreendimentos – os mais expostos ao mar – ainda não tinham recuperado os danos de furacões ou tempestades da época passada.
E como os caprichos do clima tornavam voláteis investimentos feitos a pensar sobretudo na longa bonança caribenha de Dezembro a Maio, quando aquele mesmo litoral e os do Caribe em geral assumem os seus visuais de mar, céu e vegetação luxuriante imaculados.
Cascada Limón, Charutos de Outros Aromas
O dia seguinte amanhece radiante. Deixamos o hotel às oito num camião descapotável que começou por compor a sua lotação com passageiros provindos de outros hotéis à beira-mar e de paragens distantes e em breve frígidas do mundo: canadianos, franceses, alemães, americanos, entre outros.
Logo, seguimos caminho por terrinhas e terreolas verdejantes e pitorescas da península de Samaná. Como é da praxe ocorrer nestes tours, a empresa tinha uma paragem programada numa loja local, no caso de charutos. Tratava-se da Las Ballenas, situada em El Cruce. Descemos. Atravessamos a estrada após darmos passagem a dois jovens surgidos do fundo da estrada a galope sobre cavalos enfezados.
Entramos. Sentimos de imediato o cheiro disseminado a tabaco natural, com laivos dos vários aromas em que os charutos ali eram fabricados: mango, baunilha, conhaque e outros. Um cigarrero que trabalha à mão detrás de um pequeno balcão concentra as atenções.
Atrai um grupo curioso de espectadores que segue as suas mãos atarefadas a cortar e enrolar as folhas de tabaco até chegar a outro dos charutos artesanais que deram nome à marca. E a outro. E a outro mais.
As distintas embalagens Las Ballenas cercam-nos. Numa pequena estação laboral à parte, um artesão mais novo munido de um velho ferro de engomar e vestido com uma t-shirt de basquete dos Oklahoma City Thunder, trata de as aumentar. Abordamo-lo e inteiramo-nos melhor do seu ofício.
Com receio de inutilizar as embalagens que estava incumbido de finalizar, Eduardo Cancu mal tira os olhos do ferro. Mesmo assim, dá-nos corda suficiente para percebermos que processa umas boas centenas por dia. E que, “graças a Deus, não é aquela a única tarefa que leva a cabo na empresa”.
Regressamos todos ao camião e ao modo de viagem. Por meros 2km, os mesmos que dali distava o Rancho Limón de onde era suposto partirmos rumo à queda d’água homónima.
Mal descemos de volta ao solo, damos de caras com uma pequena multidão expectante de dominicanos da zona, cada qual a segurar o seu cavalo. Chegam mais forasteiros. Um responsável pela operação de lhes dar montada, chama os conterrâneos segundo um qualquer critério.
Aos poucos, os estrangeiros são convidados a montar o cavalo atribuído e seguem floresta adentro guiados pelos seus escudeiros apeados.
Não somos dos primeiros a receber cavalo, nem nada que se pareça. Para compensar, os guias que nos calham são jovens, divertidos e inconscientes. Momentos depois de partirmos, já nos incitam a puxarmos pelo trote do cavalo. Por eles, poderíamos até ter cumprido o percurso a galope, ao que não será de todo alheio o facto de um deles se chamar Gerónimo.
Só que o percurso era pedregoso, irregular e lamacento, pouco convidativo a grandes coboiadas. Mesmo assim, conquistamos a dianteira num ápice.
Já na derradeira descida sinuosa para a cascata, passamos por uma vaca perdida que espreitava toda esta acção com ar desconfiado do meio da floresta tropical. Ora, ao desmontarmos já com vista para a cascada Limón, sem percebermos nem como nem porquê, essa ou outra vaca quase igual, nadava em pânico, às voltas, dentro da lagoa da queda d’água.
A vaca dá mais duas voltas, percebe que só há saída pelo lado em que os humanos assistem, incrédulos, à natação que praticava e resigna-se. Por fim, deixa a lagoa, atabalhoada e descontrolada. Obriga-nos a todos a nos refugiarmos da sua imprevisível trajectória. Quando a maior parte dos passageiros do camião ali se juntaram, já o animal se havia sumido.
Devido à falta de chuva nas semanas prévias, a Cascada Limón exibia um caudal contido. Assim sendo, o protagonismo passou quase directamente do bovídeo para duas araras que empresários oportunistas para ali levaram para ganharem uns pesos de cada vez que alguém cedia à atracção cromática e instagramica de com elas se fotografar.
Vaca fora, humanos dentro. A lagoa não tardou a encher-se de banhistas desejosos de se refrescarem do calor húmido e clorofilino da floresta tropical. Também lá mergulhamos e descontraímos por algum tempo. Após o que regressamos à cavalgada, desta feita, encosta acima.
Constatamos que a maior parte dos pseudo-jóqueis tinham-se detido numa pequena venda de artesanato e comidas no cimo da rampa. Desmontamos para a investigarmos e comprarmos a água de garrafa que já nos escasseava. Um vendedor ouve-nos tagarelar.
Mesmo se falávamos o nosso habitual português original, não o brasileiro, reconhece a língua. “Portugueses? A minha banca é boa para vocês! Ninguém vende tão barato. Mais barato só no Pingo Doce!”, atira, divertido.
Tratando-se da República Dominicana, um destino há muito em promoção em Portugal, não nos espantava por aí além que um cibao do interior rural de Hispaniola estivesse a par dos slogans publicitários dos supermercados lusos.
Incursão a Los Haitises, a “Terra das Montanhas” Dominicana
Havia algum tempo que cirandávamos pela península de Samaná, da costa norte ao interior ranchero. Decorridos três dias, estava na hora de nos fazermos à sua baía. De Las Terrenas viajamos na diagonal para o litoral sul da península, rumo à cidade portuária de Samaná.
Entramos numa lancha de perfil piscatório. Em três tempos, zarpamos do molhe para a baía em frente à cidade. Navegamos sob a Puente Peatonal de Cayo Samaná. Pouco depois, encaramos uma floresta cerrada com uma concentração incrível de coqueiros estendidos da beira-mar até ao cimo da encosta.
Seguimos a favor da ondulação pelo que, sem tráfico marítimo que o condicionasse, o barco avança estabilizado, a grande velocidade e na diagonal, de um lado ao outro da baía.
Meia hora depois, vislumbramos a colónia de outeiros arredondados e florestados com entre 30 a 50 metros – lomitas, assim lhes chamam os dominicanos – que sinaliza a entrada da Bahia de San Lorenzo e o acesso ao Parque Nacional Los Haitises, mais para o interior.
À medida que nos embrenhamos no parque passamos por algumas destas lomitas independentizadas. Umas, surgem sós, outras, em duos ou trios que parecem flutuar sobre o mar.
Conhecedores destes domínios labirínticos, o timoneiro e o guia levam-nos directos a uma gruta conhecida por Boca de Tiburón, o interior oco de um haiti (montanha no dialecto tribal Taíno) a que não tardamos a nos entregar.
Devagar, devagarinho, ancoram o barco na praia oculta no interior da gruta. Desembarcamos para o areal ensopado e inspeccionamos o cenário invertido na sua moldura de calcário esculpida pelo tempo.
De regresso aos Haitises solarengos, apontamos ao Cayo de los Pájaros, uma formação rochosa coroada de vegetação e que, mesmo aquela distância, víamos sobrevoada por dezenas de aves.
Aproximamo-nos mais um pouco. O suficiente para apreciarmos os voos peculiares das fragatas que nos remetiam para o imaginário pré-histórico de bandos conflituosos de pterossauros. E, em oito ou nove fragatas macho, em particular, os corações escarlates que possuem sob o papo e que fazem inflar para conquistarem as fêmeas para acasalamento.
Alguns abutres que pairavam no mesmo espaço aéreo acima do ilhéu verdejante quebravam a exclusividade das fragatas sem desrespeitarem a uniformidade da negrura que salpicava o céu azulão.
Do Haiti avícola do Cayo de los Pájaros, zarpamos para outra das várias grutas do parque, recheada de pictogramas e petróglifos ali legados pelos ancestrais dos indígenas Taínos encontrados por Cristovão Colombo e seus homens nestas paragens.
De maneira a evitar a profanação deste património, as autoridades mantêm guardas no pequeno-ancoradouro que dá acesso à gruta. Um deles descansa sentado numa cadeira. Traja boné e t-shirt cinzentos, calças verde tropa e galochas. Sobre a barriga e o peito, mantém uma caçadeira de canos-serrados, pronta para o que desse e viesse.
Daquela gruta, navegamos para uma das zonas de manguezal do parque. Percorremos um canal delimitado pelas raízes anfíbias destas árvores até que damos com nova doca.
Estávamos à entrada da Cueva de la Línea, uma outra gruta patrulhada por morcegos e guarnecida com mais inscrições pictográficas. Também esta conta com uma abertura natural que exibe o verde resplandecente da floresta acima.
Uns visitantes atrás dos outros fazem-se fotografar naquele meio submundo. Até que uma inesperada sobrepopulação da caverna os obriga a todos a debandar. Percorremos o mesmo canal de manguezal.
Entretanto, voltamos ao mar recolhido de Los Haitises e à Bahia bem mais aberta de San Lorenzo. Cumprimos o regresso para o porto de Samaná contra o vento, com o barco sempre aos saltos sobre pequenas vagas. Bem menores que as que constatámos resistirem na volta às praias de Las Terrenas.