Alguns dos muitos dias em Pirenópolis, passamo-los alojados num hotel instalado na encosta contrária à do velho centro.
É do miradouro privilegiado dos seus terraços que admiramos o casario secular.
Dali, percebemos melhor como se adaptou à serrania verdejante de Pireneus, como se imiscuiu e integrou na vegetação tropical: nos buritis, nos coqueiros, nos tamarindos.
A simbiose da sua história com a serra e o Cerrado imenso em redor explica, aliás, porque uma passarada exótica faz parte da vida local, com destaque para os exuberantes, esquivos e sempre atarefados tucanos.
De quando em quando, estas aves também trepadoras sobrevoam-nos a grande velocidade, acima de ruas, ruelas becos e avenidas delimitadas por casinhas térreas e alguns casarões.
Casario Colonial e uma Natureza Providencial
Em Piri, os edifícios têm paredes brancas. Têm molduras de portas e janelas coloridas, cobertas por telha portuguesa, parte delas ainda moldada nas coxas dos escravos.
Sejam ou não lares, quase todas as construções foram financiadas pelo ouro extraído do rio das Almas e bacia envolvente.
A época seca do estado de Goiás e do imenso Planalto Central brasileiro estava em vigor havia mais de um mês. Dia após dia, caminhamos para o centro de Pirenópolis sob um céu azulão, aqui e ali, sarapintado de novelos tresmalhados de nebulosidade.
Descemos a rua do Carmo. Atravessamos a velha ponte homónima, ainda hoje de madeira vermelha e branca, anunciada por candeeiros parisienses.
Daqueles lampiões elegantes que, entre proveitos de ouro, diamantes e café, se convencionou iluminarem as povoações brasileiras abastadas.
Para cá, para lá, de olho no caudal esverdeado do Almas, constatamos como, em Pirenópolis, os tempos se fundiram de forma harmoniosa.
Em plena temporada da longa Festa do Divino Espírito Santo local – uma das mais exuberantes à face da Terra – vemos-nos forçados a dar passagem a caravanas de cavaleiros trajados segundo a moda hípica de há dois ou três séculos.
Do outro lado do Almas, já em plena avenida Beira-Rio, damos com uma pelada aguerrida: camisetas contra troncos-nus, sobre o pelado irregular oposto ao Beco da Cadeia.
O Âmago Religioso e Social da Igreja de Nª Srª do Rosário
Fazemo-nos à Rua do Rosário, a via de fé da cidade que conduz à Igreja de Nª Senhora do Rosário, a primeira e maior edificação religiosa do Estado de Goiás.
Esta igreja foi erguida entre 1732 e 1736, no auge da abundância aurífera.
Foi prendada com tal sumptuosidade que, tendo em conta os parâmetros da região, começou a ser vista como uma verdadeira catedral.
Marcou – como ainda marca – o centro geográfico e social da cidade, para o que contribui o duo divinal de grandes palmeiras buritis que já quase fazem parte da fachada.
Lá vemos serem erguidos a custo os mastros quase tão altos como os buritis que ostentam os estandartes da Festa do Divino Espírito Santo. Lá se realizam missas atrás de missas, casamentos, baptizados, comunhões, ensaios musicais e tantos outros eventos.
Lá admiramos o teatro espontâneo das sombras dos crentes que assistiam a um fogo-de-artifício distante.
Entre os projectores e as paredes alvas da igreja, e ao dos participantes numa procissão eminente que não tarda a sumir-se no dourado resplandecente, algo extraterrestre, da nave.
Nascida do ouro desviado aos Goyás
O arraial que deu origem à Pirenópolis abençoada dos nossos dias resultou da determinação de bandeirantes portugueses:
Amaro Leite, Urbano do Couto Menezes, este, companheiro de Bartolomeu Bueno da Silva, filho de um bandeirante português homónimo.
Bartolomeu Bueno da Silva, pai, foi autor de tantas atrocidades cometidas sobre os Goyas que este grupo de indígenas o apodou de Anhanguera, velho diabo, no seu dialecto.
Bartolomeu da Silva – o filho – obteve do governador da Província de São Paulo a concessão do território dos Goyas em redor de Meia-Ponte.
Assim ficou conhecida a zona depois de uma inundação do Rio Almas ter destruído metade da ponte que o permitia cruzar.
O Ouro Lucrativo das Almas
Em troca, o governador exigiu que as minas de ouro fossem exploradas por portugueses. Para o cumprir, o Anhanguera filho – entretanto instalado na Vila Boa (hoje, Goiás Velho) – terra da escritora Cora Coralina – incumbiu Manuel Rodrigues Tomar de fundar um arraial.
Seguiu-se a prospecção. Ao longo do rio das Almas, o ouro surgiu em grande quantidade.
Fez milionários vários colonos portugueses. Financiou a expansão da povoação de Minas de Nossa Senhora do Rosário da Meia Ponte, e a construção de quatro igrejas.
Meia Ponte ganhou um inesperado impulso civilizacional.
E começou a competir com Vila Boa no estatuto de cidade mais abastada do estado de Goiás. Assim foi, até 1800.
O Inevitável Declínio Financeiro de Pirenópolis
Na viragem para o século XIX, o ouro já escasseava. As rotas comerciais de Goiás passaram a centrar-se noutra vizinha, Anápolis. Muitos dos habitantes emigraram.
Noventa anos depois, Meia Ponte foi rebatizada de Pirenópolis.
Piri só recuperou do marasmo a partir de 1960. Primeiro, com a construção quase messiânica de Brasília, carente de matérias-primas, em particular do quartzito abundante em redor de Pirenópolis.
Decorridos outros vinte anos, comunidades em busca de vida alternativa rejuvenesceram a notoriedade de Piri.
Para lá atraíram migrantes e visitantes vindos da nova capital brasileira.
Cercam Pirenópolis sítios e fazendas com pastos conquistados ao cerrado, salpicados de boiada, de termiteiros e ipês amarelos ou de um cor-de-rosa inverosímil.
A Fazenda Produtora de Estórias da Babilónia
Num dos nossos vários dias pirenopolinos, acordamos cedo. Encontramo-nos com Dª Telma que nos leva à sua fazenda Babilónia, a mais emblemática da região, situada a 24 km do centro de Pirenópolis.
Emulamos, assim, o programa de visita do nosso viajado pai da democracia, ex-presidente Mário Soares. “Se querem saber, eu achei ele bem simpático, sincero, muito “terra a terra” afiança-nos Dª Telma.
“Me pareceu daquelas pessoas que dá vontade de abraçar. E, isto, mesmo se ele recusou um suco de tamarindo e outro de maracujá do seu café da manhã.
Um tava demasiado amargo, o outro demasiado doce, dizia ele.”
Com mais de dois séculos de história, a Fazenda Babilónia foi – antes de mudar de donos – o engenho de cana-de-açúcar de São Joaquim, um dos maiores do Brasil numa altura em que nele trabalhavam centenas de escravos.
Os actuais proprietários respeitaram a estrutura e o aspecto colonial.
Em 1965, a fazenda foi nomeada Património Histórico.
Continua a servir o mesmo café da manhã colonial goiano delicioso e variado tomado pelo saudoso bochechas.
A Pirenópolis dos Pireneus, do Cerrado e da Cidade de Pedra
Novo dia, novas explorações. Encontramo-nos com Cristiano Costa, à data Presidente da Associação dos Guias, no CAT- Centro de Atendimento ao Turista.
Filho orgulhoso de Pirenópolis, Cris coloca-se de imediato ao dispor. Nos tempos que se seguem, entre passeios, caminhadas e soluções logísticas, ele, o irmão Tilapa e Kike Palma – um amigo de ambos – revelar-se-iam providenciais no acompanhamento da Festa do Divino Espírito Santo que levámos a cabo.
Para dizer a verdade, em muito mais do que fizemos em Pirenópolis.
Cris quis mostrar-nos um dos seus lugares favoritos em redor de Piri. Ávidos por tudo o que fosse novo, aderimos de imediato ao repto.
Na manhã seguinte, bem cedo, integramos uma pequena comitiva a que se juntaram os seus colegas Eduardo e Jorginho.
De início a bordo de um jipe, penetramos no Parque Estadual da Serra dos Pireneus, por um caminho que se desenrola entre os emblemáticos Morro do Cabeludo e os Três Picos: o Pai (1385m), o Filho e o Espírito Santo.
Já a mais de 50km de Piri, acima dos mil metros de altitude, passamos a caminhar entre buritis, cactos e chuveirinhos (Paepalanthus, caliandras ou sempre-vivas), plantas emblemáticas do Cerrado, com flores brancas que parecem gotas d’água.
A Cidade de Pedra do Cerrado
Por fim, damos com o destino da jornada. A Cidade de Pedra local é considerada a mais vasta e labiríntica do Brasil.
Situada para lá dos Três Picos, esta obra de arte geológica foi legada pela erosão de arenito e quartzito.
Ditaram testes de carbono 14 que se terá começado a formar há cerca de 800 milhões de anos, com início no período pré-cambriano.
A Cidade de Pedra surge numa área de cerrado rupestre preenchida por formações rochosas de grandes dimensões, algumas, verdadeiros pináculos recortados que há muito desafiam a gravidade.
Em 1871, aquele que se crê ter sido o primeiro homem a deixar uma descrição escrita do lugar, o médico e naturalista francês Francois Trigant des Genettes viu bastante mais.
Cidade mas não Tanto
Alvitrou que a Cidade de Pedra deveria ser uma espécie de Atlântida perdida, com muralhas fortificadas, praças, ruas, ruínas de estátuas, de templos, teatros e palácios, lares e até túmulos.
Daí para cá, pouco terá mudado. Com a “cidade” diante e bastante tempo para a contemplar, chegámos à conclusão que a imaginação do naturalista tinha pouco de natural.
Suplantava em larga escala a de Cris e dos colegas que, de tempos a tempos, nos chamavam atenção para determinadas formas familiares: o orangotango, a bruxinha, entre tantos outros.
De início, a excentricidade da língua portuguesa de Cris divertia-nos. Fazia-nos lembrar as falas de Urtigão, o famoso personagem campestre dos livrinhos Disney brasileiros.
À imagem de muitos dos goianos sem estudos aturados, Cris trocava os eles (Ls) pelos erres. Mas não só. Ao mesmo tempo, atropelava a concordância de número a torto a direito.
De acordo, para proferir “as bicicletas”, dizia “as bicicreta”.
Os Joalheiros Prodigiosos de Pirenópolis
Podiam faltar a Cristiano Costa melhores oportunidades, mas nunca a determinação. Além de guiar forasteiros, Cris criava joias num mini-estúdio artesanal que tinha há muito montado na casa em que co-habitava com a família.
Chegou a mostrar-nos como, com muita paciência e minúcia, combinava ametistas, topázios, turmalinas, esmeraldas, águas-marinhas – com sementes, metais e outros materiais.
Não era o único a fazê-lo, em Pirenópolis. À falta de outros empregos, muitos Pirenopolinos tornaram-se joalheiros e desenham as suas próprias obras de arte.
Os melhores, acabam por fornecer as lojas locais, as de outros pontos do Brasil e até mesmo do estrangeiro. Piri conta com em redor de cem ateliês.
Emprega cerca de 300 artesãos, alguns com estilos próprios prodigiosos.
Um período em que o negócio quase sempre prospera são os derradeiros dias da Festa do Divino Espírito Santo, quando as Cavalhadas da cidade têm lugar no Cavalhódromo local:
cavaleiros cristãos contra Mouros, pouco importa se estamos no coração da América do Sul.
Na manhã seguinte, como acontece ano após ano, os infiéis saíram derrotados.
Os Cavaleiros entraram em modo de repouso.
Piri voltou a viver na paz absoluta do Divino Espírito Santo.