Passámos a madrugada e o início da manhã às voltas na floresta do PN Yala, à procura dos seus sempre elusivos leopardos.
Por volta do meio-dia, donos e senhores de fotografias mal-amanhadas de espécimes demasiado distantes ou demasiado escondidos, voltamos à companhia do motorista Ari e inauguramos o trajecto que nos levaria a Ella.
Passamos por Kataragama, por Sella e pelo templo hindu local em que os fiéis louvam Lord Ganesh. Cumpridos alguns quilómetros na mesma estrada, cruzamo-nos com elefantes de verdade, entretidos a devorar frutas de árvores à beira do asfalto.
Em Buttala, flectimos para oeste. Uns minutos depois, Ari anuncia-nos Wellawaya e, não tarda, a primeira paragem digna desse nome: “Pronto, já cá estamos em Buduruwagala.
Este é um dos santuários budistas mais antigos e importantes do Sri Lanka. Eles costumam fechar cedo, por isso viemos mais depressa e directos. Divirtam-se, vou estar por aqui.”
Escala em Buduruwagala, um Santuário Budista Milenar
Não que fosse necessário mas a sequência Sella-Kataragama – Buduruwagala voltava a evidenciar-nos a complexidade religiosa da nação singalesa.
À hora tardia em que damos entrada no espaço de Buduruwagala, o reduto natural envolvente parecia por nossa conta.
Milenar, o monumento consiste em sete imagens esculpidas lado a lado, na face de um grande rochedo enegrecido pelo tempo. Seis delas surgem alinhadas ao lado de um buda Avalokitesvara agora embranquecido, a maior escultura de Buda do Sri Lanka. Crê-se que uma delas represente Tara, a consorte de Buda.
Um passar de olhos mais atento pela superfície ampla do rochedo prova-nos que tínhamos afinal companhia. Num recanto, cada qual sentado sobre sua rocha arredondada, dois monges budistas admiravam as esculturas.
Por respeito à sua paz reverente, mantivemo-nos à distância mas quando um deles caminhou sobre a laje de pedra na base do monumento e se prostrou na base do grande Buda a rezar, aproveitamos para enriquecer as imagens que dali levávamos com uma preciosa escala e relação humana.
Os monges não tardaram a debandar. Pressionados pelo percurso que ainda tínhamos pela frente, seguimos-lhes o exemplo.
A Ascensão Lenta e Sinuosa para Ella
Aos poucos, deixamos as terras planas do sul e inauguramos uma ascensão sinuosa e vagarosa para os mil metros de altitude de Ella. Pelo caminho, a selva de montanha adensava-se a olhos vistos. Irrigavam-na incontáveis veios que conduziam de volta ao Índico a água despejada pelas persistentes chuvas.
Devagar devagarinho, retidos por sucessivos camiões Tata (mas não só), atingimos um meandro da estrada atravessado por um desses riachos, frequentado por dezenas de cingaleses saídos de autocarros de excursão com pinturas exuberantes.
O Deleite Melodramático das Ravana Falls
Ari detém o carro. Aconselha-nos a redobrarmos cuidados ao caminharmos sobre as pedras polidas que ladeavam o curso íngreme das quedas d’ água acima, as Ravana Falls.
“Todos os anos aí escorrega alguém e já vários turistas, até estrangeiros, acabaram por morrer. Trinta e seis até agora, acreditem ou não. As autoridades já deviam ter feito alguma coisa a este lugar… “
Malgrado o dramatismo do alerta, dedicamo-nos a admirar e a registar mais que as quedas d’água em si, o frenesim balnear que os cingaleses de visita ali geravam, entregues a aturados banhos de sari ou de tanga (consoante o género) sob repuxos caídos de pequenos tanques, ou em convívios bem-dispostos nas lagoas então quase rasas abastecidas pelas cascatas.
Atentos como nós às tropelias e comoções dos banhistas, macacos sinicas felpudos endémicos do Sri Lanka espreitavam as melhores oportunidades para furtarem os petiscos e posses dos primos humanos desatentos.
Ella já só distava cinco quilómetros, vinte minutos de derradeiras curvas e contracurvas. Por essa altura, o despertar madrugador começava a cobrar-nos o seu preço. Como o reclamava também a Ari.
De acordo, regressámos ao carro e completámos o percurso até à guest house recôndita em que tínhamos reservado estada.
Instalamo-nos e damos ao motorista, a liberdade porque tanto ansiava, com o compromisso doloroso de nos voltar a apanhar às oito da manhã.
A Epopeia Ferroviária do Trecho Ferroviário Ella – Kandy
A essa mesma hora, metemos as malas na bagageira do carro, após o que Ari nos deixou à entrada de um desvio que conduzia a um vale cruzado pelos carris do trajecto ferroviária Ella-Kandy. Sabíamos que o comboio passava sobre uma ponte da era colonial, a Ponte dos Nove Arcos.
Após uma descida por caminho de cabras para o nível dos carris. Instalamo-nos num lugar privilegiado para o apreciarmos. No processo, atravessaram a também chamada Ponte no Céu sucessivos camponeses, alguns deles conduziam vacas.
Por fim, por volta das 9h20, o comboio apareceu da curva dissimulada que antecede a estrutura. Primeiro, uma locomotiva longa e poderosa.
Aos poucos, as onze carruagens puxadas pela máquina, o conjunto de um azul-claro que se destacava do panorama vegetal-tropical em redor.
Estávamos longe de ser os únicos dedicados àquele programa. Noutras ladeiras subsumidas na vegetação, sobre varandas e terraços feitos panorâmicos de restaurantes e pousadinhas em redor, vários outros estrangeiros admiravam o filme ferroviário.
Breve Convívio com a Autoridade Cingalesa
De um lado e do outro da ponte, dois polícias enfiados nas tradicionais fardas cingalesas cor-de-mostarda controlavam os movimentos dos forasteiros de maneira a evitar que as suas desventuras fotográficas terminassem em tragédia.
Após descermos do poiso instável que havíamos escolhido, sentamo-nos num bar improvisado na floresta, entre a ponte e o túnel que seguia. Lá bebemos duas lassis à conversa com J.M.W.S Karunarathne e A.W.M Nandasena, o duo da autoridade destacado para a ponte.
Revigorados pelo descanso e pelo iogurte-refresco, seguimos carris-a-fora até à estação de Ella, meros 2km dali, e onde subiríamos a bordo do comboio.
Como já esperávamos, os lugares em turística e em 2ª Classe com assento marcado estavam esgotados. Compramos bilhetes para 2ª Classe Normal e sujeitamo-nos ao imprevisto.
A Fascinante Estação de Ella
Durante a nova espera pelo comboio, fizemos da vida da estação de Ella, uma deliciosa viagem cultural.
Enfiamo-nos no gabinete pitoresco do chefe da estação e fotografamo-lo, orgulhoso do seu posto, sob fotos emolduradas do presidente do Sri Lanka, com uma bandeirinha cingalesa sobre a sua secretária de mogno.
Examinámos com inevitável curiosidade étnico-religiosa, a entrada na plataforma de uma família muçulmana, as suas três mulheres cobertas por chadares negros.
Entretanto, o surgimento súbito da composição interrompeu as brincadeiras de um grupo de amigos indianos sobre os carris e gerou uma disputa frenética pela beira da plataforma.
Por Fim, a Bordo e a Caminho
Mais confusão menos confusão, conseguimos instalar-nos à porta de uma das carruagens que o absoluto relaxamento da empresa ferroviária estatal do Sri Lanka nos permitiu – como a tantos outros jovens passageiros acrobatas – manter abertas, a servir de poleiros e de arejamento providencial aos vendedores de comida que caminhavam de uma ponta à outra da composição sem descanso.
O comboio fluía com a suavidade comprometida pelos muitos meandros impostos pela serrania e pelos sucessivos túneis que a perfuram.
O trecho inicial do percurso fez-se por uma selva algo ressequida, antecedida por bananeiras e papaeiras da beira-linha.
A determinada altura, já numa altitude superior, passa a fluir entre plantações de chá vastas e ondulantes, as mesmas aperfeiçoadas pelos colonos britânicos e que continuam a produzir e a exportar o famoso chá do Ceilão, como é o caso da reputada e infindável Edinburgh State.
Badulla, Ohiya, Pattipola, Ambewela, as estações sucediam-se.
A cada paragem, a composição renovava as suas gentes, os saris, as camisas lustrosas dos homens, os sacos, trouxas e embrulhos atirados de ambos os lados das carruagens com a habitual emergência e audácia destas paragens sobrelotadas.
Dois miúdos pintarolas recém-subidos a bordo encantam-se com a nossa comoção fotográfica.
Sem pejo ou cerimónias reclamam-nos a atenção com poses e mais poses estilosas atrás de sorrisos juvenis e dos óculos baratuchos a fingir de aviador.
Nestes e noutros entreténs, não damos pela chegada à paragem em que Ari nos esperava. Só o aviso estridente comunicado, via altifalantes, pelo chefe de estação nos salva de prosseguirmos a em vão.
Desembarque Antecipado em Nanu Oya
Tínhamos já percorrido a secção realmente imperdível do trecho Ella-Kandy que o Lonely Planet classificou de forma sensacionalista como “A Viagem de Comboio Mais Bela do Mundo”. De acordo, em boa parte devido conselho de Ari, saímos em Nanu Oya.
Não encontramos o motorista nem à primeira nem à segunda. Desistimos de o procurar.
Vemos os moradores da povoação caminharem sobre os carris como se de um trilho se tratasse e emulamos-lhes os passos asulipados. Acabamos a fotografar a composição vermelha que tínhamos abandonado a atravessar uma outra ponte local.
Ari apareceu do nada. Ou melhor – assim calculávamos – de mais um dos seus frequentes masala chais. Voltámos ao carro híbrido em que nos conduzia e ao asfalto.
Eram duas da tarde. Kandy distava 85km, três horas no pior dos casos. Alertamos Ari de que íamos continuar sem pressas, com as paragens necessárias, nem que chegássemos de noite. Dito e feito.
Duas da Tarde: Hora da Descoberta do Chá Cingalês
Cruzamos Nuwara Eliya, outra hill station pós-colonial repleta de chá, no momento, coberta por um manto de névoa que irrigava as plantações verdejantes.
Uns quilómetros adicionais para norte, detemo-nos na fábrica de chá Glen Loch, também ela sintomática da predominância colonial escocesa destas paragens.
Ari estaciona e deixa-nos entregue à guia de serviço, Shiva Kala de seu nome, uma cingalesa senão deusa da destruição, do tempo e da morte (como os deuses que tinham inspirado o seu baptismo) pelo menos, divinal; a mulher mais bonita e encantadora que tínhamos encontrado no Sri Lanka, concordamos pouco depois, sem demasiados atritos.
Seguimo-la e às suas narrativas sorridentes. Cheiramos folhas de chá verde. Comparamos com outras tostadas, do negro. Provamos uma série de infusões aromáticas e espreitamos a loja bem abastecida de caixas e saquinhos com designs apelativos.
Éramos os últimos visitantes da fábrica, numa tarde que se tornara chuvosa.
Os Derradeiros Quilómetros para Kandy
Calculamos que, sorrisos à parte, Shiva Kala deveria estar desejosa de nos trocar pela família e fazemos-lhe a vontade.
Chegamos a Kandy às oito e um quarto da noite, hora tardia que deixou Ari apreensivo quanto às jornadas que estavam por vir. Para compensar, deixámo-lo levar-nos a um hotel em que se poderia hospedar de graça. Arrependemo-nos em três tempos.
Fosse como fosse, estávamos em Kandy, coração do Ceilão, na Cidade-Reino histórica que Portugal nunca conseguiu subjugar e que, a partir do século XVII e da conquista holandesa do forte de Galle, precipitou o colapso do Ceilão Português,