A fronteira é tripla e impõe-nos processos aduaneiros multiplicados.
Mesmo assim, despachamo-nos do lado tailandês mais cedo do que esperávamos. Ao atravessarmos para a margem do Laos, retrocedemos uns quilómetros no rio.
Em Huay Xai, espera-nos uma multidão ansiosa de agentes e vendedores oportunistas. Ignoramos a pressão o mais que podemos.
Conseguimos, assim, ser dos primeiros a chegar às instalações locais das autoridades e a obter os carimbos no passaporte. À saída, os agentes voltam à carga.
Sabem de cor e salteado a que vêm os turistas semi-acidentais. Só duas razões poderiam trazer europeus, americanos e australianos a estes confins duvidosos do Sudeste Asiático.
O Triângulo Dourado estende-se pelas montanhas em redor e é uma das regiões produtoras de ópio e heroína mais activas do mundo. Colocando de parte que algum dos adolescentes viesse fechar negócios ilícitos e arriscados, só uma hipótese fazia sentido: a de que Luang Prabang se tinha tornado numa escala incontornável.
A viagem fluvial, com uma duração de quase dois dias e um pouco cansativa, não se revelava sequer a única hipótese. Partem regularmente aviões de Chiang Mai, no norte da Tailândia, para Luang Prabang.
Mesmo assim, a diferença de preços e o encanto épico de descer o Mekong por vales profundos e aldeias tribais foram razões suficientes para todos termos optado pelo barco lento. A viagem reservava, no entanto, os seus próprios contratempos.
“Esse é perigoso. Vão bem mais rápido e seguros nas nossas lanchas, garanto-vos!” afiança o representante de uma pequena empresa familiar de speedboats com visuais de motonáutica, enquanto todos os outros fazem promessas semelhantes.
Os viajantes bem que folheiam os seus Lonely Planets, Rough Guides e Routards repletos de conselhos, post its e rabiscos. Mas não vêm preparados nem para a situação real nem para decidir sob ameaça de tantos lobbies.
Pelo Mekong e pelo Laos Abaixo
Como se não bastasse, atrapalham-nos questões só aparentemente menores. “Almofadas, almofadas” apregoam mulheres protegidas do sol tropical. A sugestão gera nova vaga de indecisão. Ter ou não comprado aqueles apetrechos Made in China virá a ter enorme significado.
Embarcamos nessa mesma manhã numa espécie de paralelepípedo verde-amarelo flutuante. Como um jogo das cadeiras internacional, os passageiros disputam os lugares de forma aguerrida.
Os que despertam tarde demais para o passatempo, começam de imediato a destilar junto da fornalha alimentada pelo velho motor de dois tempos e a endoidecer com o seu tuk-tuk-tuk ensurdecedor.
Ao longo de dois dias, o percurso sinuoso faz-se a uma velocidade ridícula, com repetidas paragens para recolher camponeses surgidos do nada.
Os novos passageiros trazem para bordo inevitáveis cargas rurais: grandes molhos de vegetais, sacos e sacas sabe-se se lá do quê, galinhas, coelhos e até cabras.
Os forasteiros examinam os recém-chegados de alto a baixo. Salvo uma ou outra vítima de excessivo incómodo, mostram-se animados com o seu embarque. Todos viajam em modo de descoberta.
E qualquer novidade combate a monotonia crescente da navegação num Mekong já diminuído que a estação seca continuava a encolher.
A Escala Providencial de Pakbeng
A noite insinua-se. Torna-se cada vez mais complicado ao homem do leme e aos seus auxiliares identificar as rochas e baixios.
Sem aviso, vislumbramos uma povoação de palafitas no topo de uma encosta pedregosa. Pouco depois, a embarcação em que seguimos junta-se a uma longa sequência de réplicas já ancoradas no sopé fluvial da aldeia.
Tínhamos chegado a Pakbeng. Dizia-se a bordo que era aquele o meio da viagem.
A maior parte dos estrangeiros já só pensava na recompensa de uma refeição quente e de um sono revigorante. Tal como no embarque inicial, também ali tiveram que aturar a disputa dos proprietários das pequenas pousadas locais pelo lucro das suas estadas.
A noite passou em três tempos, encurtada por uma partida madrugadora que o nevoeiro cerrado acabou por adiar. Atrasados, ainda meio ensonados, voltamos aos mesmos assentos do dia anterior, prontos para mais um dia no Mekong.
Oito horas e muitas ultrapassagens de speedboats depois, todos estamos novamente ansiosos por voltar a terra.
Por Fim, o Desembarque em Luang Prabang
A aproximação da cidade nas margens elevadas do Mekong surge como uma miragem. Com apenas 16.000 habitantes, Luang Prabang é, em detrimento da capital Vientiane, o destino obrigatório do Laos.
O cenário montanhoso em redor, os cerca de trinta e dois templos budistas que, apesar das várias guerras que assolaram o país, se mantêm de pé e a omnipresente arquitectura colonial francesa conferiram-lhe, em 1995, o estatuto de Património Mundial da UNESCO.
Justificam a presença e trabalho permanente de arquitectos franceses, japoneses e lao.
Muito pouco mudou por estes lados desde o período da colónia mais vasta a que os franceses sabiam estar, no mapa, entre a Índia e a China e assim baptizaram de Indochina.
Isolada do frenesim capitalista das suas vizinhas do sudeste asiático, Luang Prabang respira ar puro.
Irradia calma e espiritualidade, agitada apenas pelos visitantes que, consoante a época mais ou menos chuvosa do ano, chegam uns atrás dos outros.
O Legado Francófono de Luang Prabang
Disposto ao longo de uma península na confluência dos rios Mekong e Nam Khan, o coração histórico e cultural da cidade ostenta, ainda hoje, o requinte das casas Lao de madeira e bambu e dos edifícios coloniais franceses de tijolo e estuque.
Na rua principal, a Thanon Sisavangvong, quase todos os rés-do-chão deram lugar a cafés, restaurantes, bares e outros pequenos negócios, decorados com bom-gosto e, aqui e ali, influências francófonas anacrónicas, caso do Principezinho envergonhado com que nos deparamos numa creperia pitoresca.
Para lá da introdução da electricidade e do número crescente de carros e outros veículos, a hora de ponta continua a verificar-se quando os alunos deixam as escolas e as ruas se enchem de miúdos de uniforme branco e azul, a pé e de bicicleta.
Nas restantes horas do dia, é o tom alaranjado do vestuário dos monges que mais sobressai e materializa a mais forte imagem de marca do budismo.
Onde quer que andemos passamos por templos e santuários, alguns verdadeiros complexos que agrupam edifícios elegantes e grandiosos adornados por materiais nobres.
Habitam-nos, em comunidade, centenas de aprendizes religiosos que recebem os ensinamentos sagrados e se sujeitam à obrigação partilhada das tarefas terrenas: cuidar dos templos e jardins circundantes, lavar roupa e loiça, preparar as cerimónias.
Voltamos a encontrar os mesmos passageiros do barco do Mekong no Talat Dala, o mercado da cidade para onde confluem, todos os dias, dezenas de mulheres hmong, mien e tai, vendedoras hábeis das mantas, tapetes e outros artefactos distintivos das suas tribos.
Da Avenida Thanon Sisavangvong à Beira Tropical do Mekong
Chega a hora de almoço e o calor castiga como nunca. Juntamo-nos aos visitantes dos quatro cantos do mundo que trocam peripécias das suas últimas viagens na avenida Thanon Sisavangvong e partilhamos dois pratos tradicionais acompanhados da emblemática Beer Lao.
Uma hora mais tarde, alguns metros abaixo, regressamos à sombra preciosa dos coqueiros da rua marginal.
Dali, contemplamos as brincadeiras dos miúdos lao sobre velhas câmaras de ar infladas e os barcos coloridos que atracam e zarpam. Até que o fluxo indolente do rio nos inquieta e nos metemos de novo a caminho.
Avançamos na direcção contrária e deparamo-nos com a colina de Phu Si, também, ela repleta de templos. Centenas de degraus acima, surge o Wat Tham Phu Si.
Este, é, de todos, o local mais panorâmico de Luang Prabang e aqui se reúnem, todas as tardes, inúmeros adoradores do pôr-do-sol.
Enquanto recuperam da subida, os primeiros a chegar dão a volta ao templo, e apreciam a paisagem circundante. Em seguida, tomam o seu lugar numa mini-bancada e dividem-se entre contemplar o astro e comentarem o cansaço dos próximos a vencer a longa escadaria para o monte.
O pôr-do-sol revela-se impressionante e suscita uma salva de palmas colectiva. Aos poucos, aqueles felizardos de férias ou em ano sabático retornam à animação das ruas centrais que já esperam para lhes servir o jantar.
Mais uma vez à mesa, ouvimos de outros mochileiros observações bem dispostas sobre o cansaço acumulado e expressões de admiração pela beleza mística do Laos.
Uma australiana, em particular, mostra grande dificuldade em conformar-se: ”pois, têm razão. Mas como é possível um país destes ter estado tanto tempo de costas viradas para o mundo? “