Boa vontade nunca faltou a Don Carlos Carrillo, disso estávamos certos. Só que, amiúde, o seu acolhimento voluntarista em Pucón descambava em trapalhadas que nos víamos obrigados a resolver.
Saímos bem cedo da Cabaña Quiñolafquen em que nos tinham alojado. Deixamo-la disparados para o Parque Nacional Huerquehue, um ex libris de Pucón e uma das áreas protegidas mais antigas do Chile, fundada em 1912.
À entrada, o administrador do parque dá-nos más notícias. “Pois, eu entendo que estava tudo combinado mas olhem que, lá da municipalidad, não me chegou nada.”
No dia anterior, na nossa presença, Don Carrillo tinha de facto telefonado para uma delegação local da CONAF, a influente Corporación Nacional Forestal. Só que o fez para a do parque errado: ligara para o Parque Nacional Villarrica em vez de para o Huerquehue.
Explicamos o equívoco ao paciente director e sublinhamos que vínhamos do outro lado do Planeta, que os cenários de Pucón eram maravilhosos e que nos sentiríamos frustrados se não os pudéssemos revelar em Portugal.
Por sorte, além de compreensivo, é amante da fotografia de natureza. “Só tenho uma D50, nada como esses vossos maquinões. Mas lá vou fazendo o meu melhor. Olhem, não há problema. Entrem. Cansem-se o mais possível e, acima de tudo, divirtam-se”.
O Parque Nacional Huerquehue Deserto
Dois dias antes, tínhamos subido aos 2860m do cume sulfuroso do vulcão Villarrica, um dos mais activos do Chile, na iminência da cidade de Pucón. Ainda sentíamos as pernas a recuperar do castigo. Em pleno périplo pela América do Sul, não lhes podíamos dar tréguas.
Estávamos a entrar em Abril. A época alta de Pucón terminara em Fevereiro, o derradeiro mês do estivo chileno. Apesar de o dia ter amanhecido uma vez mais glorioso, não víamos vivalma. A inesperada solidão, só agigantou os cenários de visual alpino a que entretanto nos entregámos.
Pouco depois de o tomarmos, o trilho dos Tres Lagos enfia-se num bosque inclinado e denso de bambu que atravessamos com a ajuda de mini-pontes feitas de tábuas cobertas de terra. Para cima, esse bosque dá lugar à floresta andina da Patagónia mais característica destas partes.
Passamos a caminhar entre troncos de araucárias musgosos, com dezenas de metros, copas altivas e sub-copas ramificadas com tal simetria ou excentricidade que nos habituamos a apreciá-las como obras de arte vegetais.
Pela Beira do Lago Tinquilco
A profusão destas araucárias e de outros tipos de coníferas e de pinheiros compunham vastas áreas mais que sombrias, lúgubres, em que ziguezagueávamos como insectos ávidos de luz. Isto, até que o trilho se farta da soturnidade e nos conduz para a beira do leito em forma de garrafa do lago Tinquilco.
Barrado pela multidão de araucárias em redor, não corre sequer uma aragem. De acordo, mais que um lago, o Tinquilco (“águas quietas”) revela-se um espelho rigoroso que duplica as formas arbóreas e os tons já semi-outonais envolventes. Alguns dos seus recantos surgem repletos de um capim alto que, contraluz, marcam uma presença quase espiritual.
Às tantas, um par de cantarilhos sai de dentro desse capim. Gera sulcos aquáticos pioneiros no caudal que, durante uma boa centena de metros, se desfazem à nossa frente.
Continuamos a subir o trilho Tres lagos. À laia de recompensa pelo esforço, somos recompensados pela vista majestosa do cone quase-perfeito do vulcão Villarrica, malhado de negro e branco-neve, bem acima das copas supremas das araucárias.
No dialecto mapuche – a etnia indígena predominante da região – Huerquehue significa “lugar de mensageiros”. Como que ilustrá-lo, o Villarrica lança sinais de fumo para o céu azulão, completamente desprovido de nuvens.
São mensagens inequívocas do poder destrutivo do vulcão. De como, no seu sopé e à sua sombra, Pucón nunca poderá dormir descansada. De qualquer maneira, o passado da agora idílica região sempre se provou tudo menos tranquilo.
Mapuches: os Mensageiros Indígenas de La Araucania
Os mapuches são um grupo de etnias indígenas que partilham uma mesma base social, religiosa e até económica. Contam-se em redor de um milhão e setecentos mil, quase 10% dos mais de dezoito milhões de habitantes do Chile. 80% de todos os indígenas desta nação sul-americana. Mas, já só cerca de 200.000 falam fluentemente os seus dialectos originais mapudungun ou huilliche.
Ao longo da história, os mapuches chegaram a influenciar e/ou dominar a quase totalidade da Patagónia hoje chilena e argentina. Submeteram os poderosos tehuelches e outros indígenas da vasta pampa albiceleste, uma aculturação que ficou conhecida pela Araucanização da Patagónia.
A partir de 1540, os recém-chegados conquistadores e colonos espanhóis terminaram com esta supremacia mapuche. E introduziram o termo arauco, a adaptação hispânica de um lugar mapuche rag ko traduzido como água barrenta. O próprio termo araucária deriva de tal adaptação.
Nessa manhã, durante boa parte da tarde, alternamos entre a floresta de coníferas e os lagos, mais dois ou três ao longo do percurso: o El Toro, o Chico e o Verde, um trio de vizinhos ligados por fluxos de água estreitos.
De Volta ao Abrigo Ribeirinho de Pucón
Regressamos a Pucón de autocarro, com a cabeça a tombar-nos para a frente, tal era o cansaço acumulado.
A noite insinua-se. Antecipamo-la em La Poza, uma amostra de baía do grande lago da cidade, chamado Villarrica, como o vulcão que dele se destaca a sul.
Passamos pelo Vapor-Chucao, um navio construído em 1905 e mais tarde trazido para o lago para assegurar trajectos de ida e volta entre Pucón e a povoação de Villarrica.
Quase 100 anos depois, esse Vapor permanece atracado em frente ao velho hotel Gudenschwager, o mais antigo de Pucón, erguido em 1923, por um colono alemão, Don Otto Gudenschwager Becker. A imobilidade do navio contribuía, uma vez mais, para a do lago. Sob as altas pressões que se haviam instalado na zona, à imagem dos lagos do PN Huerquehue, também o Villarica parecia ter-se solidificado.
A Omnipresença Vulcânica do Villarrica
Sentamo-nos a ver o sol esparramar-se para ocidente, sobre a margem oposta à que estávamos. Durante esse popular processo astral, um barqueiro aparece do nada. Cruza a baía de lado a lado. As suas remadas vigorosas agitam o caudal. Num instante, aquele mar de água-doce-azul-petróleo ganha um surpreendente encanto listado.
Ao mesmo tempo, o azular crepuscular da atmosfera faz destacar as manchas brancas do cone do vulcão. E assim se desenrola a noite. Até que o breu absoluto que se apoderou de La Araucanía e de Pucón nos convenceu a darmos o dia por fechado.
Sem espanto, sem cedências. Foi sobretudo com um já inexplicável entusiasmo que dedicámos o dia seguinte a explorarmos mais da região, segundo um itinerário rodoviário e caminhante entre quedas d’água e outros fenómenos naturais.
Salto atrás de Salto, em Redor de Pucón
Continuou a deslumbrar-nos a elegância e bom gosto que a Natureza por ali assumia: os padrões belíssimos de musgo, líquenes e rocha terrosa que forravam o paredão do grande Salto de la China, um mergulho fluvial com uns impressionantes 70 metros.
Também o Salto El Léon que se seguia, com 20 metros adicionais e bem mais volumoso, de tal maneira aspersor que irrigava um exuberante arco-íris residente. E o fulgor outonal da manhã que penetrava a floresta de soslaio e iluminava folhagens pendentes; fetos e arbustos rasteiros.
Encantaram-nos ainda os passadiços cobertos de húmus encharcado, pingado pelas ramagens de bambu. Mas, no que diz respeito a Natureza, é melhor ficarmo-nos por aí. Regressemos às gentes de Pucón.
Em prospecção pelo mercado da cidade, reparamos na quantidade de pinhões à venda. Não só na quantidade. Na quantidade e na diversidade e tamanho hiperbólico de boa parte deles. Outra coisa que constatamos são os traços distintos dos vendedores.
Estávamos no coração de La Araucanía. A abundância de piñoneros – assim chamam os chilenos às araucárias – explicava a profusão das suculentas sementes. Mas, como já vimos, La Araucanía também se preserva o cerne territorial dos mapuches.
A Longa Resistência Mapuche
Foi algo que, pouco depois de entrarem pela costa chilena revelada por Fernão de Magalhães, os conquistadores espanhóis tudo fizeram para mudar.
Ditou o destino que, no fim da primeira metade do século XVI, uma investida levada a cabo por Juan Bautista Pastene, um súbdito do mentor da conquista do Chile Pedro de Valdívia, tivesse originado a longa Guerra de Arauco. Foi travada durante quase três séculos – 1544 até à independência do Chile, em 1818 – contra os resilientes mapuches.
Nesse período, os mapuches resistiram e causaram destruição generalizada nas cidades e posses coloniais. Por volta de 1600, conseguiram até a demarcação de uma fronteira clara, assente na expulsão dos espanhóis para zonas mais a norte do esguio Chile.
No século XIX, o conflito tornou-se ainda mais complexo já que as forças fieis à Coroa Espanhola passaram a confrontar-se com as recém-formadas independentistas. Os chefes mapuches aliaram-se às primeiras mas os independentistas triunfaram.
De 1860 em diante, o exército do Chile independente concentrou-se, por fim, em dominar os mapuches. Malgrado a resistência feroz, os indígenas capitularam. Os que insistiram em permanecer nas terras – muitas delas entregues aos colonos – foram colocados em reduções. Decorridos 150 anos, é numa dela que os encontramos.
O Refúgio Mapuche de Quelhue
Seguimos na direcção do rio Pucón O Minetue. Acompanhamos a sua correnteza repleta de rápidos que só deixamos quando se entrega ao lago Villarrica. Cruzamos um outro, o Quilque. Daí em diante, avançamos por uma estrada de rípio até às imediações de Quelhue. Demoramos um bom tempo a achar o lugar que não víamos indicado e, pelo menos como por ele perguntávamos, ninguém parecia conhecer.
Por fim, lá encontramos Gabrielle, uma adolescente que nos explica o caminho. Logo, uma casa comunal e um dos tradicionais grandes grupos familiares, em pleno convívio regado por Pisco e refrigerantes, em redor de uma mesa. Tal como Gabrielle nos havia alertado, os mapuches abominam a inundação turística da sua região que acontece, ano após ano, de Dezembro a Fevereiro.
Rejeitam tudo o que são tratamentos da sua comunidade como atracções. Com o máximo de sensibilidade possível, explicamos que não éramos propriamente turistas, que ali tínhamos chegado sós, sem nada de mais planeado e que gostávamos apenas de os conhecer, de saber como viviam agora.
Acabaram por nos convidar para a mesa. Conversamos sobre tudo um pouco mas pouco ou nada da espécie de apartheid sul-americano em que os mapuches há muito vivem. Bebemos pisco-sour. Comemos empanadas. Insistimos um pouco mais. Por fim, os anfitriões autorizaram que os fotografássemos. Deixámos Pucón com a recordação do convívio, do humor, da sua abertura de espírito. E dos seus rostos e sorrisos generosos.
Bem mais do estávamos a contar.