Um cimo revela-nos a vastidão de uma anhara ajustada a um vale suave.
Intersecta-a a estrada 140 em sobe e desce, ladeada de gramíneas amareladas que as chuvas recentes fizeram crescer bem acima de um angolano alto e espadaúdo.
Detemo-nos para admirar a paisagem e a aldeia de adobe e colmo que se estende no topo oposto, de ambos os lados do asfalto, sob uma caravana de nuvens alvas.
Enquanto o fazemos, um vulto aproxima-se e define-se.
Um rapaz de t-shirt de futebol, chinelos e auscultadores nos ouvidos subia a ladeira a cantarolar sem cerimónias.
“Tá boa essa música!” atiramos, em jeito de saudação.
“Não é má, pai e mãe” responde-nos com uma cortesia que expõe a importância da idade e da estrutura familiar na sociedade ainda quase-tribal deste interior da província de Malange.
Prosseguimos. Cruzamos a aldeia.
Passamos para lá da crista e, não tarda, por uma tal de praça do Desvio da Terra Nova.
Lá se destaca um mercado de vegetais e fruta em que dezenas de moradores das redondezas vendem e nos sugerem os seus produtos.
Algo ansiosos por completarmos a viagem, agradecemos as ofertas, mas continuamos, os derradeiros quilómetros, por uma via terciária, estreita a condizer, quase engolida pela savana, em que grandes falhas e buracos nos obrigam a ziguezaguear sem apelo.
Sucedem-se outras aldeias de adobe e colmo. A aldeia do Meio, assinala o âmago de nova linha habitacional de beira da estrada.
Uma ponte de campanha permite-nos cruzar o Cole, um afluente do Lucala, o rio que buscávamos.
Passamos por mulheres com lenha, ou alguidares, à cabeça, que a estreiteza da via obrigava a recolher para dentro da vegetação.
Logo, por um derradeiro povoado. Uma subida deixa-nos de frente para uma cancela.
De Entrada na Pousada Calandula
O guarda saúda-nos e dá-nos passagem. Instantes depois, estacionamos na Pousada Calandula, junto a troncos, cepos e cavacos fadados para lenha.
Recebe-nos Samuel.
O jovem anfitrião de serviço e de modos delicados confirma o que esperávamos. A uma quarta-feira, somos os únicos hóspedes da pousada.
Quando nos instalamos, abrimos a porta para a varanda. Amplifica-se, então, o troar das quedas d’água homónimas.
Avistamo-las em estreia absoluta, do topo dos seus 410 metros de extensão e 105 de altura, um colosso de colapso fluvial que nos deixa embevecidos.
Em África, só as cataratas de Victoria suplantam as de Kalandula em grandiosidade. No resto do Mundo, as de Iguaçu-Iguazu.
Ainda Samuel acendia a lareira para a noite, já saíamos à descoberta.
Segundo nos explicara, dois trilhos quase opostos permitiam atingir o cimo e a base das cataratas.
Kalandula: da Primeira Visão ao Cimo das Quedas d’Água
Tomamos o do cimo, por uma ladeira entre cultivos e a floresta densa. O caminho deixa-nos sobre a margem esquerda elevada.
Por ali, uns poucos miúdos banham-se em piscinas naturais delimitadas por rochas. Dois ou três adultos pescam numa derivação limítrofe do rio.
Um deles, oferece-se como guia. Agradecemos, mas lembramos que estava quase a anoitecer. No dia seguinte não podia. Ainda assim, esclarece-nos algo que, só em parte, viríamos a comprovar.
Por estrada, o outro lado das quedas d’água distava quase uma hora.
Durante a época mais seca, quem conhecia bem o rio, conseguia atravessar para o lado de lá, a pé, pelo seu cimo.
Meia-hora depois do ocaso, recolhemos à pousada. Jantamos como príncipes, com vista de lareira e aroma reconfortante a lenha.
Adormece-nos o ressoar das cataratas, acompanhado pelo coaxar das rãs residentes.
Samuel já nos tinha também alertado: após despertarmos, quando abrimos as janelas para reapreciarmos as quedas com o sol acabado de nascer, quase não as vemos.
Névoa gerada pela concentração de humidade em redor da bacia fluvial, envolvia-as numa brancura errática, mais ou menos densa, consoante o capricho da brisa e do turbilhão emergente de aspersão.
Era a mesma humidade que mantinha a savana circundante ainda verde, que preservava viçoso, o reduto de selva imediato.
Kalandula: a Longa Viagem para o outro Lado das Cataratas
Fartamo-nos de aguardar pelo sol. Metemo-nos no carro. Apontamos ao miradouro do lado de lá do rio, decididos a pararmos, sempre que o caminho o justificasse.
Os buracos na estrada faziam com que passássemos pelas aldeias a ritmo contemplativo.
Em cada uma delas, ao ouvirem a aproximação do carro, magotes de crianças precipitam-se para o asfalto: “Amigo, bolachas!!” gritam-nos quase em coro, alguns, com tom de exigência, decididos a receberem as prendas saborosas a que anteriores forasteiros os habituaram.
A harmonia de adobe das aldeias e, em particular, um reduto pejado de cabras que dormitavam, justifica uma escala imediata. Em três tempos, os moradores da Aldeia do Meio envolvem-nos e ao carro.
Enquanto deambulamos entre as casas, mulheres e moças em trajes tradicionais posam para nós com uma simpatia e à vontade que nos encanta.
Decorrida quase uma hora de convívio, ao regressamos ao carro, percebemos que dezenas de crianças o cercavam e fitavam.
Quando lhes perguntamos o que faziam, um ancião apresta-se a explicar: “estão admirados com a sombra.
Esses pequenitos não estão habituados a vê-la.” Com “sombra”, referia-se ao reflexo na chapa.
Entregamos a umas mães mais próximas as bolachas e outras dádivas com que a comunidade contava. Logo, prosseguimos para o miradouro.
Quando lá chegamos, já o sol tinha dissipado a névoa matinal.
Da supremacia panorâmica que nos concedia o abrigo adiantado sobre o precipício, admiramos as quedas d’água, o arco-íris cintilante sobre o reinício do rio Lucala.
E o caudal bravio, de margens verdejantes, que ziguezagueia savana fora, na senda do irmão mais velho, rio Kwanza.
No parque de estacionamento das quedas, uns poucos guias dão-nos as boas-vindas.
Educado e cortês, Marcos Dala acompanha-nos e informa-nos de tudo um pouco.
Convence-nos ainda a descermos à base das cataratas, de onde, assim nos assegura, a perspectiva e a proximidade do arco-íris nos espantariam a dobrar.
Do Cimo à Base das Cascatas de Kalandula
Seguimo-lo e a um colega, rampa abaixo, a falarmos de tudo um pouco, incluindo o passado colonial, a guerra civil e a complexa evolução político-social de Angola.
À beira do Lucala, damos com um pescador enfiado na água, a estender uma rede na iminência dos rápidos furiosos.
O colega de Marcos compra-lhe uns peixes, em jeito de recompensa daquele insólito arriscar de vida.
Instantes depois, sobre um fim de trilho enlameado, ficamos de frente para as quedas.
A direcção da brisa prenda-nos com uma vista encharcada, sem sinal do arco-íris, que nos fez antecipar o regresso ao miradouro.
Com os kwanzas que lhes pagamos, Marcos e o colega tinham ganho o dia. Podiam regressar a casa.
Damos-lhes boleia para a cidade de Kalandula em que moravam.
Incursão à Kalandula Povoação
Aproveitamos para espreitarmos a povoação, à imagem das quedas, conhecida até à independência angolana de 1975, por Duque de Bragança, velho baptismo homenageante do rei D. Pedro V que ostentava, em simultâneo, esse outro título nobiliárquico.
Na Kalandula cidade, murais em edifícios exacerbavam a nacionalidade angolana.
E, logo ao lado da sede local do MPLA, retratos pintados numa longa parede creme, as principais figuras do partido: Agostinho Neto, José Eduardo dos Santos e o actual presidente João Lourenço.
Alguns murais decoravam ruínas das casas coloniais. O seu colorido dissimula a realidade histórica.
Pouco depois da independência, durante largo tempo, toda esta zona foi controlada pela UNITA.
E disputada pelo partido rival em batalhas de tal forma destrutivas que deixaram a região e muita da província de Malange em cacos, boa parte da sua população forçada a refugiar-se nos confins de Angola e até do estrangeiro.
O Regresso da Velha Pousada Calandula
Também a Pousada Calandula, construída em 1950, em plena era colonial, foi votada a um longo abandono, apenas reaberta, em 2017, graças ao investimento do empresário Francisco Faísca.
Ainda lá passámos uma segunda noite. Uma espécie de confirmação do deslumbre em que as quedas nos mantinham.
E de extensão providencial do trabalho que lhes dedicámos.