Ao examinarmos o mapa, percebemos que eram dois os caminhos que nos permitiam ir de Porto Novo, a capital, até à segunda cidade.
Um deles, o da Estrada da Corda, fazia-se ao interior e às montanhas de Santo Antão. O outro, seguia para nordeste e flectia para noroeste, sempre pela beira-mar não menos vertiginosa.
Dotados de uma pick-up poderosa, decidimo-nos por nos estrearmos pela Estrada da Corda.
Mesmo se exigente, em termos de condução, uma das mais incríveis recompensas do percurso revelou-se a descida íngreme do cimo do Delgadinho para a Povoação, que é como quem diz Ribeira Grande.
A Ribeira Grande, como Recompensa Visual da Estrada da Corda
Aos poucos, por sucessivos esses, cada vez mais apertados, o calçadão passa para a vertente norte das montanhas. Curva atrás de curva, desvenda-nos um inesperado casario multicolor.
Vamo-lo disposto sobre a entrada do vale. Sobre o delta aluvial em que, após as chuvas, se encontram os caudais da Ribeira da Torre e o da Ribeira Grande, esta, a que empresta o nome à, desde 2010, cidade, vizinha da Ponta do Sol.
Inaugura-a uma estranha correnteza de edifícios, alguns, do cinzento característico do reboco, alternados com vizinhos das suas cores. Como os vislumbramos, parecem pairar sobre o Atlântico azul-profundo.
A aproximação acaba por os revelar a coroarem a crista da montanha do bairro da Penha de França que, a ocidente, veda a cidade ao mar.
Continuamos a descer. Do cerro do Segundo Espelho, rumo ao leito arenoso, acima de incontáveis telhados e terraços improvisados.
Daquela perspectiva, pareciam-nos uma composição experimental de lego, abençoada pelas cruzes e torres perdidas no todo polícromo.
Um derradeiro U da via, deixa-nos lado a lado com os derradeiros metros da Ribeira da Torre, e sobranceiros ao leito, então seco, de cascalho vulcânico.
Percorremos a marginal ribeirinha. Estacionamos junto a uma estação de serviço nas imediações da rotunda central da Povoação.
A Descoberta Pedestre da Povoação (Ribeira Grande)
Desentorpecemos as pernas. Passamos a um já ansiado modo pedestre.
A pé, procuramos o âmago urbano do Terreiro, uma das seis zonas bem demarcadas de que é feita a Ribeira Grande, a que acolhe as instituições que fazem funcionar Santo Antão:
o banco, os correios, lojas e lojinhas, algumas, dos sempre presentes expatriados chineses, armazéns, mercearias, uma ou outra tasca, a boutique Chierry, no rés-do-chão de um prédio amarelo torrado que combina com o azul-claro, coroado de cruz, do da igreja do Nazareno.
Entre ambos, há ainda um candeeiro de estilo parisiense, como os que abundam na distante ex-metrópole portuguesa.
Ribeira Grande: a Povoação Pioneira de Santo Antão
A ilha de Santo Antão foi descoberta em 1462, desabitada, como o restante arquipélago de Cabo Verde. A primeira tentativa de colonização só se deu em 1548.
E o assentamento que viria a dar origem à Povoação, é já do século XVII, levado a cabo com gente chegada das ilhas do Fogo e de Santiago a que se juntaram colonos embarcados no norte de Portugal.
A escolha da zona por que continuávamos a deambular obedeceu a uma lógica inequívoca de abundância de água e fertilidade do solo. Neste âmbito, Santo Antão tem o seu quê de bipolar.
Boa parte das vertentes viradas a sul e situadas mais a sul, na sombra das grandes elevações, são áridas e inóspitas. Por ali, onde a colonização foi esboçada, uma combinação fortuita de vantagens, desde cedo augurou sucesso.
A costa norte da ilha retinha a humidade soprada, em contínuo pelos Alísios. Como se não bastasse, os colonos ditaram a Povoação sobre a foz dupla de duas das principais ribeiras de Santo Antão.
À época, de acordo com as marés e a direcção e força do vento, o mar subia mais ou menos pelos seus leitos e formava uma enseada. Com o passar do tempo, estima-se que durante o século XIX, a foz das ribeiras assoreou.
Só quase durante a época das chuvas, em Agosto e Setembro, as ribeiras Grande e da Torre, chegam ao Atlântico com um caudal digno dos desfiladeiros amplos e profundos por que fluem.
Esta secura e parcimónia fluvial permitiu que, com o mesmo passar do tempo, a Povoação se espraiasse por boa parte do delta aluvial.
Da Penha de França ao Terreiro e ao Tarrafal da Ribeira Grande
Sempre sobre o calçadão histórico e perpétuo, exploramos mais de outras zonas da cidade. Cruzamos uma ponte para o bairro do Tarrafal que a largura do leito ressequido da Torre mantém isolado.
Àquela hora, decorre uma partida aguerrida sobre o pelado do Santo Crucifixo Futebol Clube que, veja-se lá a estranheza, tem, a poucos metros, a companhia de um tal de “Mastur Bar”.
A falta de espaço entalou o campo entre o casario, a brita da ribeira e a estrada de saída para costa nordeste da ilha.
O pelado ficou situado tão próximo do areal basáltico que um qualquer pontapé forte e mal direcionado, entrega a bola ao oceano.
Também por ali nos deixamos perder no encanto da Ribeira Grande.
Quatro jovens convivem à entrada de um outro bar, todos de chinelo no pé, dois rapazes de gorros, duas raparigas de cabelos em distintos estilos crioulos.
Os Murais Exuberantes que Decoram a Ribeira Grande
Do lado de lá da rua, um outro grupo de moradores, com mais idade, convive sentado em bancos, na base de um dos grandes murais que enfeitam a cidade.
Vários deles, são da autoria de Ozmo, heterónimo de Gionata Nesti, um artista de rua italiano que tem deixado obras impressionantes ao Mundo, incluindo a estes confins ocidentais de Cabo Verde.
Cruzamo-nos com outras das suas pinturas. Algumas, inspiram-nos fotos em que as fazemos interagir com os moradores, em que as tornamos elementos vivos da velha Ribeira Grande.
Um grupo de miúdos, diverte-se a posar contra o perfil de uma crioula de olhos de mel que repousa com um guarda-rios cabo-verdiano (Passarinha) pousado num braço.
Com a tarde a meio, percebemos a sombra a apoderar-se da parede respectiva. Decidimos regressar à pick up e aventurarmo-nos leito da Ribeira Grande acima.
Pela Ribeira Grande Acima, rumo à Fajãzinha
À imagem do vale da Ribeira da Torre, também este se revela amplo, esculpido por milénios em que a água por ali fluiu em torrentes e muito maior abundância.
A espaços, damos com plantações que preenchem socalcos criteriosos, a meio de encostas que se elevam com cumes serrados que parecem rasgar o céu. Passamos sob um aqueducto erguido numa curva em que o vale estreita em forma de garganta.
Em redor, abundam a cana-de-açúcar, a mandioca, o milho e feijoca, fulcrais da Cachupa, o prato nacional cabo-verdiano.
O vale volta a abrir. Força-nos a subirmos para terras mais altas e para dentro da serrania, por uma estradinha que, perdida em tal enrugada monumentalidade, se poderia chamar “da Insignificância”.
Do lado oposto da vertente, abrigado dos Alísios, o solo volta a secar. A penumbra apodera-se dos fundos dos talvegues. Num deles, a silhueta de uma mini-floresta de coqueiros recorta a face ocre-esverdeada das falésias.
Sem que o esperássemos, o caminho revela-nos um ou dois lugarejos destemidos. Num deles, há uma mercearia com donos conscientes que, em jeito de aviso, a baptizaram de “Na Medida do Possível”.
Passamos Coculi e várias Bocas, em que ribeiras afluentes, caso da Chã de Pedra, vindas de mais acima na montanha, se unem à Grande. Primeiro, a Boca de Curral.
Logo, a Boca de Ambas as Ribeiras.
Por essa altura, sentimos o coração geológico de Santo Antão a palpitar. É tão forte o seu ribombar que nos deixa intimidados.
Nas imediações de Garça de Cima, um meandro amplo da estrada, manda-nos de volta para o cimo da ilha. Flectimos para o seu litoral nordeste, ao longo do canhão profundo de uma terceira Ribeira principal, a da Garça.
Encontramo-la já no último terço do seu percurso abrupto de 8km, desde os 1810m do Lombo Gudo.
Como acontece com as restantes ribeiras de Santo Antão e, por toda a parte na ilha também macaronésia da Madeira, desde cedo, os colonos desenvolveram um sistema complexo de levadas que, como o nome indica, permitem levar a água onde quer que as plantações e gado dela careçam.
Foi, em boa parte, este sistema que viabilizou a formação de povoações remotas de dimensão já considerável, envoltas de minifúndios, casos de Chã de Igreja e da vizinha Fajãnzinha.
Malgrado a iminência da foz recortada e, uma vez mais do Atlântico, o anoitecer e o breu obrigaram-nos a decretar Fajãnzinha o destino final do dia.