Pouco a pouco, para oeste das planícies intermináveis salpicadas de adegas sofisticadas e das suas vinhas, a província de Mendoza eleva-se ao domínio arranha-céus da cordilheira dos Andes.
O minúsculo Ford Ka era o carro mais desaconselhado para nos conduzir por terras tão cruas e imponentes. Também estava listado como mais barato. O factor financeiro voltou a falar mais alto. Sobrecarregamo-lo com as mochilas já gastas com que andamos e deixamos para trás a capital homónima da província.
Ladeira atrás de ladeira, o motor do Ka ruge furibundo, em progresso na Ruta Nacional 7 (RN7), a via argentina que atravessa os Andes em direcção ao Chile.
O rio Mendoza acompanha-nos das terras mais planas até à Cordilheira del Limite. Serpenteia por uma panóplia de expressões dramáticas da natureza.
E atravessa algumas das localidades mais pitorescas daquela Argentina desafogada.
A Impressionante Vastidão Andina de Uspallata
A primeira a chamar-nos a atenção é Uspallata, um povoado que, em meados do século XV, se situava nas imediações no Camiño del Inca usado pelos Incas para cruzar os Andes.
A vila surge num vasto planalto, no geral, árido mas que acolhe um oásis de enormes alámos beneficiários de correntes de água tímidas. Neste cenário refrescante encontramos as abóbadas caiadas das Bovedas, fornos de adobe do século XVIII em que os colonos hispânicos fundiam os minerais extraídos da região incluindo o ouro subtraído aos Incas e outros povos indígenas.
Não vemos vivalma em redor. O lugar permanece entregue às cabras e vacas que devoram a erva junto ao ribeiro mais próximo. De acordo, não nos tardamos.
Seguimos à descoberta por uma estrada secundária erma, de asfalto gasto. Vários quilómetros depois, paramos junto a um núcleo de rochas arredondadas em que uma placa identifica os petróglifos do cerro Tunduqueral.
Com paciência, identificamos as figuras antropomórficas: um rosto com grandes olhos, homenzitos de linhas simples, estranhas criaturas com três dedos e um outro homem, lagarto.
São só exemplos de múltiplas ilustrações que se crê terem sido deixadas por habitantes pré-históricos da região que esboçavam as suas primeiras crenças xamânicas .
Subimos a uma crista geológica destacadas do cenário.
Do cimo, confirmamos como não tinha fim aquele deserto pintado e apreciamos-lhe o perfil multicolorido de Western Spaghetti sul-americano. Detectamos ainda o cerro local das Siete Colores elevações com inspiração de arco-íris que abundam no país das pampas.
Já no seu sopé poeirento, absorvemos as explicações de um professor geólogo que forma um grupo de adolescentes interessados.
Ponte e Rio Picheuta: um Cenário Emblemático da América do Sul
Alguns minutos depois, damos com a ponte miniatura de pedra que cruza o rio Picheuta, com o Torreão da Sentinela vizinho e os vestígios do fortim com o mesmo nome do rio.
Nas imediações, o exército liderado pelo General San Martin triunfou, em 1770, na primeira de várias batalhas libertadoras da Argentina contra as forças da coroa espanhola. Ali se começou a concretizar a independência da Argentina e, ao mesmo tempo, se forjou a nova história da América do Sul.
San Martin, esse, transformou-se num herói nacional, uma espécie de Simon Bolivar do cone sul. Hoje, estátuas e ruas em sua honra abundam um pouco por todo o país.
As Polvaredas e o Longínquo Cerro Tupungato
Viajamos a 2050 metros de altitude quando damos entrada em Polvaredas, uma de várias estações ferroviárias andinas que a construção da via asfaltada que ligou Mendoza a Santiago do Chile tornou fantasma.
Já nas redondezas de Punta de Vacas, vislumbramos o distante Cerro Tupungato, um vulcão com 6.500 metros de altitude.
Os panoramas andinos revelam-se avassaladores. Sucedem-se outros vales amplos com leitos que os caudais do degelo primaveril escavaram profundos, mesmo se, naquela altura, exagerados para os rios diminuídos que os percorriam.
Em redor, como gigantescas forças de opressão, impõem-se outras das montanhas majestosas da América do Sul que a geologia dotou de uma impressionante paleta de tons, do cinza ou preto gastos aos avermelhados e ocres garridos.
A Puente de Inca que Charles Darwin de Dignou a Visitar
Estamos a 2580 metros acima do nível do mar quando, para lá da beira do caminho, identificamos a Puente del Inca, uma formação rochosa natural amarelada esculpida pela passagem da água do rio Vacas sob sedimentos ferruginosos.
Em 1835, também Charles Darwin ali se deixou intrigar. Como era seu hábito, esboçou desenhos da ponte e das grandes estalactites.
Não pôde, no entanto, mimar o corpo saturado das suas intermináveis explorações terrestres nas agora conceituadas águas termais. As infra-estruturas de SPA mal-amanhadas que servem actualmente o lugar só surgiram no início do século XX.
Continuamos a submeter o motor urbano e débil do Ford Ka à sua já longa tortura. Após novo esforço mecânico hercúleo alcançamos a entrada para o tecto das Américas.
Monte Aconcágua. O Cenário Majestoso do Tecto das Américas
Estacionamos. Fazemo-nos ao trilho que conduz ao monte que lhe empresta o nome.
Passamos a lagoa Horcones até que, no cimo de um morro, uma placa nos sugere um miradouro privilegiado e identifica a visão longínqua que dali tínhamos : Cerro Aconcágua, 6992 metros.
O trilho que prossegue na sua direcção seduz-nos. Mas ainda estamos longe do fim do trecho argentino da RN7 e viajávamos com o tempo contado.
Fosse como fosse, mesmo que os especialistas considerem o Aconcágua a montanha não técnica mais elevada do mundo (por o seu cume ser conquistável sem qualquer tipo de equipamento de escalada) nunca a desafiamos de ânimo leve.
Descobertas arqueológicas surpreendentes de 1985 parecem sustentar a acessibilidade relativa da montanha. Nesse ano, o Clube Andinista de Mendoza encontrou uma múmia inca na vertente sudoeste, a 5300 m.
Ficou assim provado que até mesmo as montanhas mais elevadas dos Andes eram usadas para ritos funerários pré-columbinos.
Partilhado pela Argentina e pelo Chile, o monte Aconcágua destaca-se das montanhas vizinhas pelo seu cume amplo. Por norma, cobre-o um manto espesso de neve eterna que atrai alpinistas, ou andinistas – como os argentinos fazem questão de chamar – de todo o mundo.
Apesar da atenção que lhe é dedicada e da altitude recordista do continente sul-americano, do hemisfério ocidental e do hemisfério sul, muito graças à supremacia dimensional da cordilheira dos Himalaias, o Aconcágua não está sequer entre as 400 montanhas mais elevadas do mundo.
A Estação de Inverno e Final de Las Cuevas
Conformados, damos por encerrada a contemplação e retornamos à linha condutora do percurso. Em vez do Aconcágua, continuamos a subir os Andes ainda e sempre pela RN7.
Já na iminência do Chile, chegamos ao vale do rio Las Cuevas e à povoação deserta homónima. A pouca neve que encontramos decora o castanho-escuro das encostas com padrões aleatórios de branco que parecem passados de validade.
Como então aparentavam estar desfasadas as construções de arquitectura nórdica moderna, mais adequadas ao Inverno da zona, época de intensos nevões e de milhares de esquiadores e snowboarders argentinos, chilenos e de outras paragens mais longínquas que ali acorrem para se divertirem e aperfeiçoarem as suas acrobacias.
Las Cuevas confirmou-se a última marca de civilização argentina antes da aduana.
Em breve, começaríamos a descer a vertente oeste dos Andes e a embrenharmo-nos no território chileno.